quarta-feira, 29 de abril de 2015

As Ceifas

Há muito tempo, no mês de Julho, quando os homens ceifavam o cereal à mão, com a foice na mesma e se perdiam no ermo das searas sem telemóvel para comunicar com alguma antena erigida sobre o monte, ou no meio da neblina - dizia mais tarde o Rui Veloso.
Mas, isto vem por quê?... Não é de saudades dos tempos sem tecnologias de ponta. Não é que não houvesse civilização. O respeito pela ecologia existia. Não faziam ideia da existência de semelhante palavra, por isso não havia maldade contra a mesma. Quando se contava da passagem do primeiro avião pelos céus sossegados da aldeia, as preces multiplicaram-se rumo à igreja para que o fim do mundo ainda não estivesse breve. A vinda do primeiro automóvel, o povo reúne-se e o regedor aparece à frente que diz: “Calma povo qu'emos de agarrar vivo”
Coitados dos homens que passavam o dia a ceifar o trigo, o centeio, as gametas (lentilhas), ou a cevada, as sogras a levar-lhe as sopas, as moçoilas e os rapazolas a apanhar as espigas que ficavam e as mulheres a parir. Eram felizes. Os brotinhos dos animais ainda hoje o são, mau grado a intervenção de outros animais que se entremetem nas suas vidas.
Uma larga quinzena ou novena a apanhar o centeio da ladeirica para ainda poder ir “à ceifa dos senhores feudais” da terra. Não existia revolta do proletariado, divertiam-se inventando até ao ponto de nos terem deixado uma grande riqueza cultural, sentimental... que hoje é tão esquecida e que devia estar registada em “cancioneiros”, que as memórias existentes ainda as podiam contar. Era todo um ritual de sonhos copos e rezas com a energia da essência do ser humano no seu autêntico, em que nada era de plástico ou embalado em saco de papel, que depois voava pela rua.
Depois das ceifas com todos os seus pormenores, que iam sendo interiorizados pelos mais novos que engrenavam no trabalho a sério, como que emancipando uma maioridade, mais ano menos ano, até chegar a ser o “maioral”, ou simplesmente andar a atar o pão que os outras ceifavam, havia mérito, ou menos astúcia. Nesta temporada dormiam fora de casa, no campo, junto ao corte da ceifa, pois de madrugada havia que juntar os molhos do cereal, que era quando menos se estragava, pois estava menos quente “ menos áspero”. Ao meio-dia (talvez mais tarde), depois de comer as sopas, dormiam a sesta, pois as horas lá se iam sabendo, se o vento ajudasse a ouvir o relógio da igreja.
Depois disto havia as “eiras”, que esperavam vazias, o ano inteiro por este tempo e então aí sim, a festa vinha aproximando-se de casa. A “acarreja”. Depois das terras ceifadas e feitos os “relheiros” nas terras, havia que fazer o transporte do cereal para as eiras. O gabarito “a proa” dos melhores vinha mais uma vez à evidência. O que melhor carregava o carro de bois, o que carregava mais à sua junta, o que mais cedo tinha o carro já descarregado nas eiras, etc. Os carros de madeira chiavam. A sinfonia orquestrada pelo romper do dia, comandada pela batuta-aguilhada do lavrador que picava a junta, rumo ao festival do verão. As colheitas. Nas eiras, havia que fazer o ”bornal”, bem feito, que não entrasse a água, se houvesse uma trovoada, que não caísse ao chão, o que seria uma vergonha, que fosse o maior e que se visse ao longe.
Também a criançada, tinha o seu lugar nas brincadeiras. Os buracos por entre os bornais junto ao chão serviam para a canalha passar de um lado para o outro, ou seja de uma rua de bornais para outra rua, fazendo alguns jogos como a “lerta”, por exemplo. Outros jogos e divertimentos a canalha fazia nas eiras, enquanto esperavam os pais que vinham com outro carreto, que é como quem diz, com outro carro carregado de pão “cereal”. O comportamento e educação eram medidos com a aguilhada nas costas daquele que pisava o risco, fazendo às vezes insultos menos próprios para os animais em que estes faziam mexer o carro e consequentemente quem estava em cima a descarregar. Muitas vezes também a brincadeira podia acabar, sendo requisitados para ajudar a fazer o bornal.
O trabalho árduo do verão consistia no fazer das colheitas para futuro armazenamento, em tempo record de dois meses a passar. Pois de resto já tínhamos tido o resto do ano como preparação do terreno e produção do cereal até chegar aqui.
Debulha com Trilho
 Chegou a hora, vamos às trilhas.
Triturar o cereal, melhor a planta de onde vai sair o grão, pois ele está lá, não todo, pois já se perdeu muito nas voltas atrás. Depois de ter feito o monumento, bornal, há que o destruir. Cada passo seguinte é a destruição do anterior. Uma trindade, uma tríade, enfim, um ritual, nem profano, nem divino, mas que ambos se misturavam. As rezas existiam pois, as bênçãos também, que se misturavam com blasfémias, aos animais, às crianças, às mães destes, sem poupar as sogras.
O bornal era em forma circular, ou melhor, um cilindro com um cone de chapéu.
No chão ao lado do bornal começava a esboçar-se a parva, onde em forma circular se iam desatando os molhos e colocados à passagem do trilho. Este utensílio era puxado por uma junta de vacas ou de mulas com alguém em cima que as guiava, insistindo nas passagens sempre à volta e para o mesmo lado. O cereal ia sendo cortado com este trilho que tinha na parte inferior objectos cortantes que em alguns casos eram pequenos pedaços de seixo cravados no madeiro do trilho, em outros eram ferros. O trilho tinha uma forma rectangular, que deslizava longitudinalmente, com a forma dianteira ligeiramente levantada, para a palha não se prender na frente, tendo logo atrás um pau vertical que servia de apoio ao condutor e às guias, no caso das mulas. A palha ia sendo cortada, volta após volta. Cortando a palha à superfície, pois era necessário virar a palha para toda ficar triturada. Os homens com vendos em punho se encarregavam de o fazer, pois tinha que ser e já nessa altura o que tinha que ser tinha muita força. O dia todo a dar-lhe, a dar-lhe e a burra a fugir, pois os animais também suavam. Os miúdos também tinham aqui o seu papel importante, que era andar com a “sanita”, uma cortiça extraída de um nó do sobreiro, em forma de concha, atrás dos animais, para quando tivessem necessidades fisiológicas, estes não sujarem o cereal. De manhã até à noite sem relógio no pulso, só na barriga, que às vezes tinha que esperar, adiar ou suprimir, aí estava a gente toda na labuta, até transformar as palhas grandes em pequeninas, ou pó até, com o grão ainda misturado.
Faltava agora esperar. Esperar até quando? Só Deus diria. O vento, precisa-se.
Podiam esperar vários dias até haver um dia de vento para limpar a parva. Consistia em atirar ao ar com os vendos de madeira, a palha para o vento a levar algo à frente e o grão cair logo ali, pois é mais pesado e assim fazer a separação. Havia situações de chover antes de limpar a parva o que era uma chatice, pois a seguir era preciso enxugar. Em seguida procedia-se à recolha do grão para as tulhas e a palha para os palheiros, que os animais comiam durante o ano. Pois mais uma vez a sinfonia dos carros de bois se ouvia, com a recolha da palha e do grão. Contam os mais velhos que trilhavam com as mulas que quando estas ouviam tocar os sinos às Avé-Marias, ao meio-dia, ninguém mais pegava nelas fugindo em direcção ao repouso da hora das sopas.
Mais tarde veio o motor a diesel que fazia trabalhar uma máquina cheia de correias que comia os molhos de cereal inteiros, já não reagia por estímulos, cagando a palha por um lado (a traseira) e o grão por outro (a frente). Eram movidas de um lado para o outro por tracção animal. Logo em seguida vieram os tractores que passaram a fazer algo mais. Hoje estas máquinas apodrecem, um pouco por todo o Nordeste Transmontano, sob pena de nenhuma ficar como relíquia de museu.

(A vida de outros tempos, contada por Manuel Falcão)

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