segunda-feira, 12 de julho de 2021

Em Defesa do Zé Luís

Por: Fernando Calado
(colaborador do Memórias...e outras coisas...)

Quem não se lembra do Zé Luís, o polidor ministerial do Café Chave d’ Ouro.
Viveu e morreu como sempre quis, morreu silenciosamente, mas acompanhado pelo sonho de chegar mais longe levado pelas vitaminas que se escondiam miraculosamente, secretas, no fundo das mágicas garrafas de cerveja.
O tempo passou e o imaginário de uma cidade com as suas grandezas e misérias perdeu-se no sufoco duma trágica e imperativa cultura de massas.
O Zé Luís fazia parte da cidade e um dia de má sorte foi expulso do seu Café, do seu reino.
Nesse tempo saí em sua defesa, na defesa da causa da humanidade que habitava no coração de ouro do rei dos polidores.
O texto da defesa que tem alguns anos aqui fica como preito de gratidão e de memória:
Pois é, às vezes bebe de mais, diz o que não quer, naquele seu jeito de falar, como se a palavra tivesse a magia de ascender aos altos mistérios onde as coisas acontecem para além da pobreza da humanidade.
Naquele dia bebeu...bebeu...até que a alma deixou de lhe doer na magnificência daquelas vitaminas feitas de excessos que o levam a transcender-se a si mesmo, rumo à filosofia onde a essência da humanidade é pequena em comparação com a grandeza da sua arte de polidor de calçado.
Depois olhou ao redor e viu que aquele Café era o seu reino de polidor Ministerial, onde por deferência ia engraxando este e aquele, que na sua pequenez humana aspiram aos altos desígnios expostos num discurso magnífico elaborado pelo Zé Luís, afeito ao convívio banal de doutores, engenheiros e outros quejando.
Sem querer, naquela tarde de má sorte, sonhou alto e levado aos altos mistérios do seu conhecimento, insultou meio mundo...disse coisas que não devia...e a sua caixa da graxa tornou-se no seu trono donde olhava os seus súbditos com desprezo, como quem entende que ele era o coração daquele Café onde se gasta há imensos anos como as caixas da sua graxa.
Os donos do Café não gostaram daquela exuberância do Zé Luís e por isso perdeu o seu lugar no aconchego do salão, vagueando agora, tristemente, pelos cantos mais soalheiros da Praça da Sé.
Encontrei-o há dias...penosamente chamando os clientes, oferecendo um banco que traz consigo...sorrindo, naquele sorrir heróico de quem é capaz de vencer a negrura e as vicissitudes da desgraça.
Como a vida é cruel devolvendo o Zé Luís à sua condição de trabalhador mendigo que oferece timidamente os seus préstimos no desconforto da rua!
Sem saber porquê senti um desconforto enorme em relação àquele homem que meio mundo conhece, e que tem o dom de alegrar os que estão tristes, de emprestar um alto estatuto a todos os seus clientes, de falar de altos mistérios como quem sabe que ele é o rei dos polidores de calçado de todo o Universo.
O Café, onde o Zé Luís era uma presença diária, está sem alma, como se o sonho tivesse dado lugar a um quotidiano medíocre, feito de café e cerveja, igual a cem mil Cafés existentes por toda a parte.
O Zé Luís já foi rei...gente famosa ia de propósito ao Café do Zé Luís para matar saudades daquele homem bom...que dizia coisas fantásticas e nos fazia acreditar que a vida pode ser bonita e alegre se for perfeita, como era perfeito o magnífico desempenho do Zé Luís que na sua mestria manejava a escova e o pano do lustro como nenhum outro profissional do seu ramo.
Hoje, o Zé Luís perdeu o seu reinado de fidalgo bragançano, de ex-libris do seu Café e instala-se modestamente à beira do passeio, com resignação, sem lamúrias, como quem sabe que a vida é assim mesmo...não entendesse ele bem os contornos do seu mundo imaginário, tão dado à reflexão filosófica.
Contudo, eu não me conformo da desgraça do Zé Luís, pois ele é o último reduto das figuras típicas desta cidade, faz parte da cidade, faz parte dum universo onde termina a tristeza e começa a alegria e na sua pobreza é um grande senhor, pois, no aprumo da sua profissão sempre sonhou que era o melhor, para privilégio dos seus clientes.
Por isso, achamos que o Zé Luís merece uma outra oportunidade de voltar ao seu mundo, ao seu canto, aos seus amigos, às suas vitaminas que o hão-de levar um dia ao Café mais bonito do mundo, feito de anjos polidores de calçado e com uma placa enorme que diga: “Zé Luís – polidor de calçado ministerial”.
A tarde cai, o Zé Luís implora para me sentar no seu banco da rua...O Zé Luís perdeu o seu estatuto...e na sua pobreza de graxa perdeu a alegria e a cidade está mais triste!
Não tenho palavras para consolar este homem que tantas vezes falou comigo e me fez acreditar que a vida pode ser uma coisa tão simples!...
Onde estão os amigos do Zé Luís?! Não sei...o Zé Luís é um pássaro ferido que perdeu a grandeza dum mundo fantástico por onde voava à mercê do acaso e da sua imaginação.
Por favor devolvam o Zé Luís ao seu mundo...ao seu Café. Ele às vezes diz coisas que não deve...Também é verdade!...Mas se não fosse assim se calhar não era o Zé Luís...não era este homem que se contenta com tão pouca e que é capaz de se regalar até ao infinito na insignificância duma cerveja que um amigo, vindo de longe, lhe pagou ainda à pouco.

Nota: O Zé Luís regressou ao seu Café até ao dia que partiu para os seus altos mistérios.



Fernando Calado nasceu em 1951, em Milhão, Bragança. É licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto e foi professor de Filosofia na Escola Secundária Abade de Baçal em Bragança. Curriculares do doutoramento na Universidade de Valladolid. Foi ainda professor na Escola Superior de Saúde de Bragança e no Instituto Jean Piaget de Macedo de Cavaleiros. Exerceu os cargos de Delegado dos Assuntos Consulares, Coordenador do Centro da Área Educativa e de Diretor do Centro de Formação Profissional do IEFP em Bragança. 
Publicou com assiduidade artigos de opinião e literários em vários Jornais. Foi diretor da revista cultural e etnográfica “Amigos de Bragança”.

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