quarta-feira, 9 de outubro de 2019

Memórias de Outra Cidade

Por: Fernando Calado
(colaborador do Memórias...e outras coisas...)

- O caixeiro do Rocha e Cruz, não sei por onde andará e temos falta de chita para os aventais das mulheres, pano dos lençóis e mais umas miudezas.
Comentava a taberneira, naquela gestão rigorosa de quem sabe o que tem e o que lhe faz falta no seu Soto onde havia um pouco de tudo.
- Para remediar, enquanto não vem o caixeiro do Porto também se compra uma peça, ou duas, nos Coelhos em Bragança...que eles não fazem descontos a ninguém, mas para remediar...
Comentava solícito o taberneiro sempre pronto para se fazer ao mundo comprando e vendendo.
No dia de feira, num cerimonial obrigatório de quem vai à cidade, partia o taberneiro para Bragança, fazia as compras, enchia as alforjes do macho que ficava guardado no Américo da Estacado e em paz consigo e com os negócios ia almoçar à Pensão da tia Caridade, mulher gorda, mãe do Cura que na sua bondade matriarcal gostava dos seus clientes como se fossem filhos. Uma vez, quando o taberneiro esteve preso na cadeia de Bragança por causa da compra duma pistola sem licença, nunca a tia Caridade lhe faltou com o almocinho e com os melhores petiscos do mundo, levando-lhe, de vez em quando, um chouriço de mel, assado na braseira, para lhe adoçar as agruras da vida. Por isso, a tia Caridade, tinha o nome mais perfeito do mundo e o taberneiro sentia-se na obrigação de ir almoçar à casa desta mulher, sempre que ia a Bragança, mesmo que não tivesse grande fome.
Aos dias de feira, lá se juntavam todos os taberneiros e comerciantes da Região, falando alto dos negócios e combinando o casamento para as filhas. O almoço era sempre o mesmo aos dias de feira, trazendo a criada grandes travessas de feijoada com feijão branco, orelheira, pernil, chispe de porco e pedacinhos de chouriça, tudo apaladado com pimenta espanhola. Para os que gostavam, a criada trazia também arroz branco para misturar à feijoada. Às vezes e enquanto esperavam por este prato soberbo os mais atrevidos nas lides gastronómicas sempre iam entretendo o estômago com um congro ensopado que a tia Caridade fazia por cortesia para os seus clientes mais íntimos. Então, cozia o congro, enquanto fazia um refogado com cebola picada fininha, louro, pimenta e alho. Num ritual de anos a fio, ia ao armário da sala, trazia a terrina de louça inglesa, com cavalinhos puxando a uma carroça, e depois juntava o congro partido aos bocadinhos, o refogado e a água da cozedura e ali estava uma sopa de congro que até se iam os dentes atrás dela num louvor mágico à alquimia misteriosa guardada no segredo e no aconchego da terrina.
E assim, o dia de feira era como um dia de festa cheio de cumplicidade e de encontros onde o almoço tinha aquele sentido ritual de dar força aos contratos celebrados com comida e vinho da adega do António Júlio. Sim, o almoço era isto tudo pois para comer o taberneiro não dava um passo e se tivesse apetite bem lhe servia uma isca de capatão na taberna do Francês, com meio quartilho de vinho e um molete. Mas quê, era no almoço que estavam os seus amigos e a Tia Caridade a quem devia mil favores.
Finalmente, o taberneiro regressava a casa naquela fartura de homem de negócio a quem nunca se lhe acabou o dinheiro, por pouco que fosse.
O filho mais novo corria a puxar o macho pela arreata com a pergunta sacramental:
- Meu pai, que me trouxe da feira?!.
E como por magia o taberneiro tirava do bolso da samarra um chocolate pequenino em forma de guitarra:
- Hoje trouxe-te uma guitarra!
E a guitarra tinha o fascínio dum tesouro brilhando pela noite fora naquela luxúria da prata vermelha que depois de esticada iria ornamentar o livro da 3ª classe.
O taberneiro nessa noite já não queria cear e mais para matar a sede pedia à mulher que lhe fizesse umas sopas de cavalo cansado. Então, a taberneira, com o carinho que lhe merecia o seu homem que veio cansado de Bragança, adoçava o vinho, mistura-lhe água e junta-lhe o pão de trigo, sem côdea, para que o seu companheiro de mil tormentos visse que era tratado como um rei.
Antes de ir dormir o taberneiro ia deitar uma mão de cevada ao macho, queixando-se sempre, por desfastio, que o macho é que leva boa vida.
Depois deita-se com a sua mulher e dorme como um justo sabendo que amanhã novos fregueses chegarão na esperança da mesa, da cama e da roupa lavada.

Fernando Calado nasceu em 1951, em Milhão, Bragança. É licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto e foi professor de Filosofia na Escola Secundária Abade de Baçal em Bragança. Curriculares do doutoramento na Universidade de Valladolid. Foi ainda professor na Escola Superior de Saúde de Bragança e no Instituto Jean Piaget de Macedo de Cavaleiros. Exerceu os cargos de Delegado dos Assuntos Consulares, Coordenador do Centro da Área Educativa e de Diretor do Centro de Formação Profissional do IEFP em Bragança. 
Publicou com assiduidade artigos de opinião e literários em vários Jornais. Foi diretor da revista cultural e etnográfica “Amigos de Bragança”.

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