sábado, 8 de janeiro de 2022

Memórias do Velho Liceu

Por: Fernando Calado
(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")


Bragança sempre viveu à volta dos seus estudantes que muito cedo povoaram o imaginário desta cidade pacata, como um relicário de ditos e feitos que se vão transmitindo de gerações em gerações, constituindo um património indelével desta terra.
O velho Liceu, foi o meu Liceu, nos anos sessenta. Estava sediado no velho Colégio dos Jesuítas, na Praça da Sé. Paulatinamente, este espaço tornou-se pequeno para receber os alunos do Liceu Nacional de Bragança, e por isso, houve a necessidade de criar a Secção Liceal, para acolher os alunos do 1º e 2º anos.
A Secção Liceal situava-se na Rua de São Francisco, num edifício que se encontra paredes meias com a Igreja de São Bento e fazia lembrar uma escola monástica, pela proximidade beatífica com a envolvência religiosa e também pela austeridade do regime escolar, acentuado pelo facto dos seus alunos serem somente rapazes.
Os alunos desta escola, na sua maioria, tinham deixado há pouco tempo a calmaria das suas aldeias, para demandarem a grandiosidade de Bragança ornamentada com a imponência do seu Castelo, povoado de lendas e mistérios. A mata de São Sebastião, desde logo, se transformou num espaço mítico-mágico, cenário de fantásticos combates entre mouros e cristãos, desafiando o tempo e o espaço, mas tendo sempre a duração exacta do toque do intervalo e o início da nova aula em que a sala cheirava sempre ao suor da refrega gloriosa para os cristãos e a derrota humilhante para os mouros.
Mas neste tempo, o acontecer da cidade escrevia-se em paralelo com o acontecer do Liceu, da Escola Industrial e do Magistério Primário.
Por Outubro, chegavam os estudantes, bronzeados do rigor das segadas e da poeira das malhas. Os estudantes mais abastados ficavam à pensão em casas de famílias que recebiam rapazes ou meninas vindos de longe para os estudos, a troco duma mensalidade a combinar. Os outros, na escassez do dinheiro, mas na abundância de produtos da terra, ficavam à merenda, pagando a sua estadia, no Inverno, com presunto, alheiras, toucinho e salpicões, depois pela Páscoa com ovos e folares e finalmente na abastança do Verão com outros amanhos que a fartura das colheitas oferecia para contentamento de todos.
Logo por Dezembro, a cidade engalanava-se na fidalguia da Academia, guardava as galinhas da ameaça duma pilhagem quase consentida e depois, ia às magníficas récitas teatrais que enchiam de glória o velho Teatro Camões para finalmente se deliciar na exuberância dos vestidos e fatos exibidos no baile de gala.
Então sim, começava-se a estudar. Os rapazes à tarde bebiam dois copos nas tabernas, passeavam os livros pela Praça da Sé e à noite, entre a serenata às colegas recatadas, o poema enviado à namorada em grande segredo pela criada da casa e a boémia sobejamente Bragançana, esperavam que os anos terminassem.
Depois, os que terminavam o 5º ano podiam ascender a um prestigiado lugar na Função Pública, ou ir para a Escola do Magistério. Os que terminavam o 7º ano, ou optavam por ocupar lugares superiores na Administração do País, ou em Empresas privadas, ou então, se a bolsa do pai o permitia demandavam até Coimbra, Porto, ou Lisboa para frequentar um almejado Curso superior, regressando depois de cinco os seis anos a casa, aureolados com o elevadíssimo estatuto de Doutores.
O tempo passou neste viver do presente que já se consola com as saudades do passado. E hoje, o velho Liceu é a prestigiada Escola Secundária Emídio Garcia que resistiu aos medos e ao confronto ideológico do período pós-revolucionário. Que fez a guerra e fez a paz. Que aprendeu e ensinou à sociedade o viver e o sentir democrático.
O sistema educativo Português também se democratizou para hoje podermos ter escolas para todos, onde se combate a exclusão social e se promove a cidadania.
E a Escola Secundária Emídio Garcia, a exemplos doutras escolas da cidade, abriu as suas portas às novas tecnologias da informação, modernizou-se, aboliu as diferenças classistas, fez as pazes entre o sexo masculino e feminino abolindo as redes que no recreio separavam os rapazes das raparigas, dignificou e diversificou o saber, tornou-se numa mais valia para a cidade que desde sempre se reviu no seu Liceu.


Fernando Calado nasceu em 1951, em Milhão, Bragança. É licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto e foi professor de Filosofia na Escola Secundária Abade de Baçal em Bragança. Curriculares do doutoramento na Universidade de Valladolid. Foi ainda professor na Escola Superior de Saúde de Bragança e no Instituto Jean Piaget de Macedo de Cavaleiros. Exerceu os cargos de Delegado dos Assuntos Consulares, Coordenador do Centro da Área Educativa e de Diretor do Centro de Formação Profissional do IEFP em Bragança. 
Publicou com assiduidade artigos de opinião e literários em vários Jornais. Foi diretor da revista cultural e etnográfica “Amigos de Bragança”. 

1 comentário:

  1. Um texto construído com a qualidade a que o Fernando Calado já nos habituou. Fez um percurso pela evolução do conservadorismo que esta cidade era exemplo.
    Uma análise social do mundo estudantil Brigantino realista.
    Bragança, considerada nos meus tempos como a segunda Coimbra tinha uma tradição académica forte a partir do 6º e 7º ano em que a capa já cobria o corpo dos estudantes.
    No sentido social houve uma evolução positiva, no sentido do conhecimento, do rigor e da exigência regredimos.

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