sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

O Regresso da Cegonha

Há algum tempo, passados 25 anos de ausência, a cegonha regressou à aldeia de Milhão. De certo que veio de longínquas paragens para matar saudades, devolvendo aos mais idosos os afagos do convívio ameno com esta ave paradisíaca, amiga de mil vidas, companheira dos campos verdes, mensageira da natalidade anunciada.

Os mais novos já não se lembravam do magnífico ninho que a cegonha tinha construído, há muitos anos, no mais alto negrilho do povoado, junto ao ribeiro que ainda então corria, para alegria das lavadeiras e frescura dos campos onde o renovo era prenúncio de fartura e Primavera.

Mas nesse ano, os negrilhos secaram com estranha moléstia e o soberbo negrilho da cegonha tombou numa derrocada medonha, caindo com ele o imponente ninho que durante tantos anos aconchegou esta ave viajante que sempre regressava, majestosa, pelo São Brás.

Durante muitos anos ninguém viu a cegonha que sempre fez parte do património e do imaginário da nossa terra, por isso, na ausência duma árvore digna desta amante das alturas, ergueu-se um poste de ferro e fez-se um ninho artificial. Esperou-se. Mas a cegonha nunca mais vinha da lonjura da sua viagem.
Finalmente, depois desta longa espera, como por milagre, vieram três cegonhas. A Bárbara contou-me que no primeiro dia que chegaram, as cegonhas pintaram a manta, não se entenderam, disputando o ninho tão ambicionado. Mas as cegonhas são muito discretas, não gostam de grandes confusões e duas foram-se embora para outras terras, para outras paragens, para outros ninhos.

No Café da Celeste toda a gente falava na cegonha solitária, sem família, como se dolorosamente afagasse paixões antigas de amores incompreendidos.
Pelo dia, a cegonha voava, num voo lindo de entontar, arranjava o ninho, batia as asas num ritual estranho, fazia longas viagens até aos lameiros trazendo sempre no bico paus e ervas que meticulosamente entrelaçava, construindo uma cesta gigantesca.

Mas, um dia, outra cegonha chegou, não se sabe donde e logo para espanto de toda a aldeia, o casal iniciou um namoro, cheio de rituais, de afagos, cruzando os enormes bicos e fazendo ouvir, na calmaria da aldeia, um grandioso concerto de castanholas.

Já tarde velha, o casal de namorados, regressou com o último pau para o ninho, de novo se ouviram as castanholas, para de seguida, numa dança etérea, acasalarem, num testemunho que a vida é sempre possível, mesmo nas terras desertificadas do Nordeste transmontano.
Este quadro foi ímpar e quase me apeteceu ajoelhar junto da grande Catedral da natureza onde a Páscoa acontece, imponente, no momento rigorosamente certo.

Por isso, tínhamos que falar do regresso da cegonha, foi um momento único, desejado, que nos devolveu a esperança numa aldeia, que como a grande maioria das aldeias do Nordeste, está em ruínas, sucumbindo com a partidas dos donos, ficando só as memórias das casas a regurgitar de gente na azáfama da lavoura.
A cegonha regressou como um milagre da Páscoa para nos devolver o cântico novo da Aleluia e para nos dizer que a terra dos nossos Pais tem que renascer das suas ruínas, pois as memórias do passado são sagradas e os vindouros vão-nos pedir contas das nossas obras, ou omissões.

As nossas aldeias têm paisagens únicas, têm rios antiquíssimos, limpos e cheios de peixes, os nossos montes austeros são ecossistemas perfeitos onde o homem sempre coabitou com as outras espécies vivas. As nossas aldeias têm monumentos, moinhos, pombais, capelas, casas, casebres, pontes romanas, castros, histórias, contas, lendas, folclore, religiões, mitos, magias, bruxas, fadas, mouras encantadas, tesouros secretos, fontes ferradas com água quente no Inverno e fresca no Verão. As nossas aldeias têm presunto, pão, batatas, vinho tinto, aguardente, vitela, cabrito, leite, queijo, mel, alheiras, salpicões, azeite, laranjas, maçãs, peras e sobretudo homens que antes preferem quebrar que torcer.

Por isso, esta terra, se não é o paraíso, está perto do paraíso e os paraísos têm que se preservar, para quando a vida terminar no rebuliço das grandes cidades, os homens destruidores da natureza, possam finalmente regressar a casa no voo ameno da próxima cegonha.
(Por: Fernando Calado)

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