segunda-feira, 18 de maio de 2015

Frieira - Bragança - A História de Um Antigo Carpinteiro

De geração em geração, há saberes que se vão aprendendo, mas também há aqueles que se vão perdendo. Em tempos idos, eram poucos os trabalhadores que sabiam tratar a madeira por tu, mas eram reconhecidos pelo seu talento. Hoje, a modernidade leva
Em Frieira, reside um antigo carpinteiro que combate os novos tempos, tentando fazer subsistir uma arte que, para muitos, não será mais que um pedaço de madeira, mas para outros, os que decifram a persistência, o trabalho árduo, o suor aí impregnado, perdurará, nem que seja apenas pelo simples existir desses objectos.
Daniel Morais, 76 anos, vive em Frieira, no concelho de Bragança e, na sua garagem, vai passando o tempo. Faz todos os tipos de utensílios, desde jugos, arados, dobadouras, serelheiras, garlopas manuais e peleiras.
O Mensageiro decidiu visitá-lo. Numa viagem abençoada pela chuva, às 10h30, em ponto, lá estava Daniel Morais à nossa espera. Cumprimentou-nos com a simpatia típica de um transmontano e desde logo avisou: “sabe, eu sou um pouco surdo!”. Rimo-nos. Da entrada da garagem era bem visível que ali residia algum saber tradicional: as serras, os ferros, as ferramentas usadas no “tratamento da madeira”. Tudo no seu devido sítio, perfiladas e à vista de todos. “Durante toda a minha vida fui carpinteiro”, começou por contar. Desde petiz que se apaixonou por esta arte, embora trabalhosa. “Eram tempos difíceis, mas a paixão foi crescendo.” O ofício foi transmitido pelos conhecimentos de seu pai que, desde cedo, o pôs a par da forma como se construíam os jugos. “Foi o meu pai que me ensinou. Aprendi e continuei sempre até à data”, mencionou, orgulhoso do seu saber.
As mudanças dos tempos:
Antigamente, o aparato nas aldeias era bem diferente daquele que hoje se sente. As correrias dos carros de bois, de um lado para o outro, o chiar tão característico que era utilizado como sinal de que era tempo para sair e levar, por exemplo, o almoço aos homens que trabalhavam as terras. Hoje, vê-se meia dúzia de pessoas que vão resistindo à evolução, ao desenvolvimento e, acima de tudo, à perda das tradições mais típicas.
Daniel Morais é o exemplo de não querer deixar morrer um ofício que tanto prazer lhe dá. “Quando era mais novo, havia muitas crias e chegava a fazer 30 jugos por ano”, sublinhou, sorrindo ao recordar esses tempos. “Tinha ali, colado na parede, um papel, onde assentava todos os nomes das pessoas e as moradas com os seus pedidos”, afiançou. Ao mesmo tempo que acedia a todas as encomendas, Daniel Morais continuava com a sua profissão, a de carpinteiro. “Ia trabalhar para as obras e não perdia um dia. Só se estivesse a chover ou se ficasse doente”, garantiu.
Vai contanto com um pouco de tristeza e saudade esse período da sua vida, mas alegre por deixar uma herança artesanal. “Tenho até aqui algumas ferramentas que, outrora tinham utilidade, mas que agora já não servem”, exemplificando com os ferros utilizados para fazer as portas e seus feitios.
Auto-didacta por persistência:
“Agora tenho pouco para mostrar, mas daqui por um mês, ou assim, vou ter uns arados”, justificou. Mas a visita não se perdeu. Pendurados nas paredes estavam algumas das suas inovações, objectos com características idênticas, mas ao mesmo tempo tão diferentes. A beleza, essa, era a mesma, com desenhos perfeitos, símbolo de quem vive o ofício há décadas. Os jugos grandes, que aprendeu com o seu pai e que eram utilizados para prender aos animais, já não faz, porque os arados foram-se perdendo.
Mas um dia, contou Daniel Morais, um casal do município macedense fez-lhe um pedido: um jugo, mas em tamanho reduzido, dado que agora são requisitados, ora para embelezar a casa, ora para pendurar lá objectos. O problema para o antigo carpinteiro residia sobretudo no tamanho que pediam. “Antes, ao fazer os grandes, já tinha os moldes, mas para estes não. Bati muito na cabeça para encolher isto. Lá andei, lá andei, continuei a teimar até que consegui”, adiantou.
De um lado para o outro, pegava nos objectos para nos mostrar. “Ora, com licença, com licença”, dizia. “A senhora já não conhece aquilo, é de antigamente”, referiu, com saudosismos, apontando para os objectos colocados no cimo de uma das paredes. “Esta é a dobadoura, esta a serelheira, esta a garlopa manual e esta a peleira”, enumerou, mencionando os inúmeros pedidos que tem em mãos. “Agora, vou fazer mais umas quantas. Interrompidos pela chegada de um vizinho, Daniel Morais continuou dizendo que “em arrumos tinha também um arado grande”, mas que não o podia mostrar, porque “não está a modos de o tirar”. “Tem muitos fardos, senão trazia-o aqui.”
Pelo meio da conversa, notámos a chegada de um vizinho. Era António Neves. Chegou e lá ficou. Ao mesmo tempo que apreciava a forma de trabalho de Daniel Morais, ia contando histórias da aldeia, do que passou, das diferenças do antigamente para o agora. “Sabe, agora já não se faz disto. São só máquinas.”
A dedicação e a vontade que mergulha nos seus trabalhos vislumbram-se sem muito esforço. “Aprendeu como?”, questionamos, ao que responde imediatamente e sem rodeios: “Então, a cabeça serve para quê? Fui pensando, desenhando, tentando até chegar ao que queria. Eu queria sempre aprender, de tudo, até pipas fiz pela minha mão. O que não me ensinaram, eu via fazer e fazia mesmo.”
A importância do “bem-fazer”:
Agora que já não trabalha “de sol a sol ou, depois, as oito horas”, a construção destes objectos vai ocupando-lhe os dias. “Faço isto para me entreter. Quando está muito frio, não se pode estar aqui, por isso deixo e recomeço depois”, salientou. O tempo que lhe leva a fazer um destes objectos já não é o mesmo. “Antes, fazia num dia, fosse grande ou pequeno, mas agora que já não ando à jeira de ninguém, vou fazendo”, considerou.
Nos tempos em que os pedidos eram muitos, Daniel Morais chegou a fazer, durante algum tempo, “dois jugos de vaca num dia”. E para exemplificar contou uma pequena passagem. “A minha filha andava na escola em Izeda e, com ela, andavam também umas raparigas de Sendas. E elas diziam assim: o teu pai está sempre com aquele jugo! E ela respondia: é que ele faz dois num dia, um até ao meio-dia e outro do meio-dia até à noite.” “E era certinho”, concordou.
O que importa para este hábil trabalhador é a “perfeição”. “Para mim, todas as peças são iguais. Se me puser a fazer qualquer objecto, prezo-me que fique o melhor possível. Toda vida assim foi”, afincou. E a vontade nunca faltava. “Se pudesse fazer em dois dias, não guardava para três. Não estava para empatar tempos.”
Perdurar no tempo com um museu:
Já que não vai poder seguir as pisadas de seu pai, em termos de ensinamentos, Daniel Morais quer manter vivas as tradições. “Tenho uma filha e um neto. A ele já não poderei ensiná-lo, porque ainda é pequeno. O que quero é que fiquem com recordações de tudo o que faço. Uma peça de cada. Quero fazer aqui um museu.” Uma lição de vida e de vontade. A vida foi-lhe dura. Trabalhava durante o dia e quando chegava a casa, ao entardecer, pegava nas mulas e ia “lavrar até ao escurecer”. “Trabalhei muito. Regressava do trabalho, comia qualquer coisa à pressa e ia para as terras. Isto não é a gabar-me, foi certinho. Às vezes diziam: não sei como este bicho aguenta tanto trabalhar. Faz ver a todos.” E não é que faz mesmo…

Por: Ana Teixeira

1 comentário:

  1. É de tirar o chapéu a um homem com esta vitalidade.

    Agarrado às tarefas árduas que a vida lhe impôs alia o talento que faz a madeira tomar a forma que lhe vem do interior.

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