sábado, 16 de maio de 2015

Quando a Água Chegava ao Moinho - Frieira - Izeda

Foto: Carla A. Gonçalves
O grão é despejado na tramóia e depois cai pela calha para o buraco da pedra da agueira para a calha e desta para o rodízio. Depois as pedras giram, esmagam o grão e a farinha cai, mas raramente, pois poucos são os moinhos que resistem à modernidade. O de Frieira é um deles.
“Quando tem água bebe vinho, quando não tem água bebe água”. 
Assim se contava antigamente da profissão de moleiro, dito justificado no leito de água que fazia o moinho trabalhar, que quando secava não permitia que o grão passasse a pó e deixava o moleiro sem rendimento. Os moinhos, engenhos hídricos introduzidos por romanos e árabes em diferentes períodos na Península Ibérica, proliferaram em Trás-os-Montes, utilizados na moagem do cereal. Actualmente, as pequenas construções do nordeste transmontano encontram-se maioritariamente em ruínas, sendo escassos os que ainda funcionam, de que é exemplo o moinho de rodízio, na aldeia de Frieira, concelho de Bragança.
Inicialmente propriedade de famílias de Frieira, Sanceriz e Izeda, denominados de “herdeiros”, a partir da década de 60 passa a “moinho do povo” e ainda hoje alguns populares utilizam o engenho para moagem de cereais, principalmente para alimentar os animais que criam. Situado à beira da ribeira Vale de Moinhos, assim denominada devido ao número de construções que existia na aldeia, com a ponte medieval no horizonte, o moinho de Frieira emerge de cara lavada, pois o antigo edifício foi objecto de recuperação em 2005. A acompanhar, um e outro habitante que vai usufruindo dos primeiros raios de sol de Março. “Antigamente vinha muita gente aqui moer, de Izeda e assim, os herdeiros. Vinham com carradas de sacos e traziam os criados. Estavam aqui aos dois dias seguidos a moer. E, às vezes, os de Morais estavam cá às semanas, porque moíam para todo o ano. E não dava muito trabalho, porque é só botar a pedra a andar e ela roda e mói. A água é que faz tudo”, lembra Ana Maria Branco, que vai conversando com as vizinhas que acenam que sim, que dantes era outro movimento numa terra que “quase não vê ninguém e só tem meia dúzia de velhos”.
Maria de Jesus Martins vai contando que “o moinho estava sempre aberto, pois tinha sempre gente. Muitos faziam fogueiras, levavam merendas e vinho e dormiam lá toda a noite. Nunca parava e eram uns atrás dos outros. Faziam farinha para todo o ano, que depois guardavam em arcas de madeira e iam cozendo conforme precisassem”. Apesar de o rodízio (roda de madeira com as palhetas em forma de concha que se movimenta com a força da água, fazendo rodar as pedras que moem) hoje em dia rodar pouco, ainda há quem utilize o engenho para moer o cereal, seja por hábitos antigos, por gosto ou seja por questões economicistas, uma vez que, como explicou Maria Augusta, “o pão do padeiro é caro”. Com um olhar azul profundo, orgulha-se de ainda fazer o pão à moda antiga: “eu ainda cozo o meu pão. Sai moreno, mas sabe bem, pois é sumento. O meu pão dura uma semana e nem seca nem apodrece. O do padeiro põe-se logo duro e áspero. Moer, moo pouco, pois não tenho que moer, mas ainda há quem moa para as galinhas e animais”.
Ao lado, Maria do Céu Rodrigues corrobora e sublinha que “o pão à moda antiga é muito melhor. Mesmo comprando a farinha. E rende mais um pão que nós cozemos do que três dos comprados. Esses, em tirando duas ou três torradas vai-se embora”. Acrescenta, satisfeita, que “agora a gente com as arcas mete-os lá, congela e depois vai comendo. Tenho um filho em Torres Novas que quando cá vem cozo-lhe uma fornada de pão para levar, que ele não compra pão. Até porque o pão comprado leva muito fermento”. Na mesa de granito à sombra, Cândido Ramos elogia o pão das senhoras, adiantando ser o único que consome: “eu só como o pão cozido pelas mulheres daqui e não do padeiro. Mas a maioria já compra a farinha e não mói, porque fica mais barato e não dá trabalho. Agora o pão é melhor e dura mais e não é como o do padeiro que vai embora de repente”.


(Rodízio de Moinho de Água)

As saudades do tempo em que os moinhos de Frieira traziam gente levam as mulheres a recordar, em conversa, os herdeiros, os destinos, a vida que a aldeia tinha “antes da chegada das máquinas”. Com Hermenegildo Pires como guia, filho e neto de moleiros, a visita ao moinho de Frieira começa por fora, junto à represa que armazena a água que depois é canalizada pela denominada “agueira do moinho”, que emboca na calha, mais larga em cima, onde a água é conduzida com pressão para fazer mover o rodízio. Já dentro do antigo edifício centenário, actualmente recuperado, Hermenegildo vai explicando como tudo se processa: “uma destas pedras está fixa e a de cima é a força da água no rodízio que a faz andar, no sentido dos ponteiros do relógio. É da fricção de pedra com pedra que se mói o grão. O grão é despejado na tramóia (espécie de funil de madeira suspenso sobre a pedra), e depois cai pela calha para o buraco da pedra, mas o cereal só cai com a trepidação do tarabelo, pequeno pau encostado à calha e que vai estremecendo com a rotação da pedra, com maior ou menor vibração de acordo com o peso, pequena pedra pendurada”. Gesticulando e apontando em pormenor os engenhos que compõem o moinho, o herdeiro dos moleiros de Frieira continua a descrever o processo: “no caso de se querer moer para animais o grão pode cair mais depressa, porque a farinha pode ficar mais grossa. Quando é para pão, tem que ficar mais fina e então o grão corre menos. Depois a farinha moída cai do intervalo das pedras para o farneiro, de onde, com a pá, é retirada e ensacada, com a ajuda das estacas, em forma de fisga, que mantêm os sacos abertos”. E, antigamente, quer os sacos de cereal, quer os de farinha eram transportados em cargas por burros. “Os moleiros iam buscar o cereal e depois voltavam para entregar a farinha.
O seu trabalho era pago em grão. Antes de moerem tiravam sempre a chamada maquia em cereal e depois vendiam ou moíam para si”, explicou. Para Hermenegildo Pires o moinho não esconde nenhum segredo, pois, como recorda, foi criado junto às pedras e dormiu muitas horas aninhado junto à lareira do moinho, presença obrigatória em todos os engenhos hídricos para o moleiro se aquecer nas duras noites de inverno. “O meu pai foi moleiro aqui em baixo durante muitos anos e eu gostava muito de ir moer. Havia aqui muitos moinhos e moleiros. Mas o do meu pai tinha três casais de pedras, dois deles de pedras alveiras, onde moíam o trigo, porque tinha que ser uma farinha mais fina, e um par de cantaria, utilizado para moer o centeio e outras farinhas para os animais. E os três casais de pedras moíam todos ao mesmo tempo”, lembra com orgulho, lamentando que hoje em dia o uso dos moinhos seja esporádico e, maioritariamente, para ração de animais. “Agora já só se mói para animais.
Desde que apareceram as indústrias das moagens, os moinhos movidos a água quase deixaram de funcionar. E também não há pessoas suficientes para dar uso aos moinhos”, concluiu, com saudades do moinho dos avós e pais, “o dos Américos”, como era conhecido. De regresso aos bancos de granito junto à ribeira, as mulheres continuam sentadas, partilhando histórias e memórias. Lamentam não haver moinho, mas sobretudo a falta de “gente que animava a terra, que era tanta que marcava vaga e dormia por aqui”.

Por: Aida Sofia Lima

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