sábado, 23 de maio de 2015

Património Arqueológico da Terra Fria Transmontana

A ocupação humana do território da Terra Fria é longínqua, tendo deixado marcas evidentes nos abundantes sítios e achados arqueológicos que contribuem hodiernamente para o engrandecimento de um riquíssimo património cultural, marca indelével da memória colectiva do Homem Transmontano. De entre o património arqueológico regional são sobejamente referenciados, pela sua visibilidade na estrutura paisagística ou pelo simbolismo que emanam, a arte rupestre de ar livre, os povoados fortificados datáveis da Pré-História Recente e da Proto-História, os sítios romanos e medievais, estes muitas vezes reconhecíveis por vestígios de necrópoles, em redor dos quais gravita recorrentemente um conjunto apreciável de lendas e tradições, fundo antropológico de inesgotável fabulação. 
 As recentes descobertas de arte paleolítica de ar livre no Alto Sabor, nomeadamente nos sítios de Sampaio, Milhão, Bragança, Pousadouro, Grijó de Parada, Bragança e Fraga Escrevida, Paradinha Nova, Bragança, vêm documentar uma ocupação antiga deste contexto geográfico, entendendo-se esses locais como marcas delimitadoras de uma monumentalização do território através da arte rupestre. 
Por ora, não são conhecidas jazidas relacionadas com as comunidades de caçadores-recolectores que produziram estas gravuras de auroques e cavalos com mais de 20.000 anos, integráveis no Gravettense.
Os vestígios de ocupação relacionados com a Pré-História Recente são mais abundantes, mas insuficientes para estabelecer um quadro coerente de povoamento. Algumas mamoas, apesar de raras e quase sempre isoladas, pontuam em alguns locais, como o Tumbeirinho de Donai, Bragança, as mamoas do Marcão e da Coroa, Travanca, Vinhais ou as mamoas da Marmolina e da Campina, respectivamente, em Malhadas e Genísio, Miranda do Douro, integráveis no Neolítico Final-Calcolítico. Alguns povoados e grutas foram também ocupados no Calcolítico e Bronze Inicial. Nas Grutas de Ferreiros, São Pedro da Silva, Miranda do Douro, que podem ter sido usadas como locais de enterramento e de habitat, foram recolhidas cerâmicas calcolíticas. 
A Lorga de Dine, Fresulfe, Vinhais, que parece ter funcionado como necrópole e armazém de alimentos, ainda que também não se exclua ter sido habitada, teve uma ocupação que pode ser balizada entre o Calcolítico e a Idade do Ferro. Conhecem-se alguns povoados não fortificados da Pré-História Recente, como o do Raio, Miranda do Douro ou o da Urreta da Malhada, Duas Igrejas, Miranda do Douro, mas também povoados fortificados, como o Castro de Sacoias, Baçal, Bragança e o Castro de S. João das Arribas, Aldeia Nova, Miranda do Douro, que parecem ter sido ocupados neste período, como demonstra o achado de fragmentos de cerâmica calcolítica, ainda que ambos também tenham ocupações posteriores, romana no primeiro caso e da Idade do Bronze à época romana no segundo. No Castelo de Algoso, Vimioso, recentes escavações também revelaram uma lata cronologia de ocupação que remonta ao Calcolítico, passando pelas Idades do Bronze e do Ferro e épocas tardo-romana, medieval e moderna. À Idade do Bronze parecem associar-se povoados abertos, como o de Barigelas, Parada de Infanções, Bragança, e fortificados, como o Castelo Seixão, Santalha, Vinhais, e o Castelo, Matela, Vimioso, mas sobre os quais os conhecimentos são incipientes.
Estações rupestres, em rochas de ar livre, como o Rebolhão, S. Martinho de Angueira, Miranda do Douro, e em abrigos sob rocha, ilustrados por diversos sítios do concelho de Miranda do Douro, com destaque para o abrigo da Solhapa, Duas Igrejas, integram também esta fase cronológica. Contudo, a maioria das rochas com insculturas não foi ainda objecto de estudo aturado, inviabilizando, à partida, uma avaliação cronológica segura: sendo certo que algumas podem ter cronologias recentes, medievais e modernas, outras são provavelmente da Pré-História Recente. Mais raras parecem ser as manifestações artísticas de ar livre imputáveis à Idade do Ferro, como a que recentemente se detectou na Fraga do Puio, Picote, Miranda do Douro, mostrando figura semi-esquemática de arqueiro, em posição de lançamento.
Muitos achados esporádicos documentam ainda a ocupação do território na Pré-História Recente, quer sejam instrumentos líticos, sobretudo machados, quer metálicos, designadamente alabardas. Outros achados de cronologia mais recente, nomeadamente do Bronze Final, como os do esconderijo de fundidor de Valbom-Deilão, Deilão, Bragança, constituído por seis braceletes e um machado de talão com argolas, contribuem também para o conhecimento, ainda que incipiente, da Idade do Bronze.
Os dados disponíveis não permitem avaliar com segurança como evoluiu a ocupação do território entre a Pré-História Recente e a Idade do Ferro, embora se possa supor que uma parte dos povoados fortificados deste período seja testemunho de uma continuidade de povoamento, pelo menos desde o Bronze Final, a exemplo dos testemunhos do Castelo de Rebordãos, Bragança, da Cigaduenha de Picote, Miranda do Douro, ou do Castro de S. João de Arribas Aldeia Nova, Miranda do Douro, nos quais se identificaram materiais que justificam esta perspectiva de arranque da sua ocupação na fase final da Idade do Bronze. São povoados que têm em comum o gozo de posições topográficas que permitem amplos controlos territoriais ou de corredores naturais de circulação, esboçando um certo ordenamento territorial.
Durante a Idade do Ferro, a rede de povoamento adensa-se e, em castelos graníticos, nos cumes altos dos contrafortes montanhosos, em cabeços destacados no interior de planaltos ou nos relevos em esporão distribuídos ao longo dos vales fluviais, surgem povoados fortificados (castros), desfrutando quase sempre de razoáveis condições naturais de defesa, tal como de privilegiada visibilidade e controlo geo-estratégico. São, de uma forma geral, povoados de dimensões médias ou reduzidas, com sistemas defensivos mais ou menos elaborados, integrando muralhas, construídas em alvenaria seca ou integrando areias e argilas, associadas, em alguns casos, a torreões, fossos, parapeitos e barreiras de pedras fincadas, mas aproveitando sempre que possível as possibilidades de defesa oferecidas pela própria topografia. 
O território destes povoados abrange uma diversidade de recursos naturais que permite aos seus habitantes reunir as melhores condições para a prática de uma economia autárquica, de base agro-silvo-pastoril. Em termos culturais, as evidências arqueológicas, nomeadamente ao nível do espólio cerâmico, parecem documentar influências mesetenhas, da cultura do Soto de Medinilla. Os influxos da Meseta são ainda patentes noutras realidades arqueológicas, como sejam a utilização das pedras fincadas nos sistemas defensivos dos povoados fortificados (Monte de Santa Comba, Ousilhão, Vinhais; Castro da Sapeira, Babe, Bragança; Terronha de Vimioso, Vimioso; Castrilhouço de Vale de Águia, Miranda do Douro…), actuando como barreira a ataques-surpresa de guerrilhas, ou a presença de esculturas zoomórficas, ordinariamente chamadas de berrões (Bragança [porco]; Parada de Infanções, Bragança [touro]; Picote, Miranda do Douro [porco], Coelhoso, Bragança [porco]; Faílde, Bragança [porco]), mas que representam porcos e touros, de pedra, podendo ter tido no contexto proto-histórico uma função apotropaica, como protectoras de povoados e do gado, mas também de demarcação de pastos, ao mesmo tempo que simbolizariam a proeminência de determinadas elites sociais - envergando, assim, um carácter heráldico -, para ganharem posteriormente, já na época romana (Duas Igrejas, Miranda do Douro [porco]; Picote, Miranda do Douro [porco]; Malhadas, Miranda do Douro [touro]), um sentido funerário fundamental.
A distribuição dos povoados fortificados mostra formarem aglomerados, ficando entre eles áreas rarefeitas ou vazias, que têm sido interpretados como correspondentes a um nível de organização social designado de gentilitates, unidades organizativas cimentadas por laços de parentesco fictício, considerando-se os seus membros descendentes de um antepassado comum, além de outros de natureza territorial. De acordo com fontes epigráficas e literárias antigas, o território englobado na Terra Fria, teria sido ocupado na Idade do Ferro pela etnia dos Zelas, cujo território, no quadro da ocupação romana, virá a corporizar a civitas Zoelarum, integrada no conventus Asturum. Aquele tipo de organização social é veiculado pela celebérrima tabula de Astorga, documento maior para o tratamento destas questões, datado já do séc. II d.C.; de acordo com o texto é possível entender que existiriam no seio da gens Zoelarum, diversas gentilitates, pois noticia-se a renovação de um antigo pacto de hospitalidade, em 27 d.C., entre duas gentilitates integrantes da gens Zoelarum: a dos Desoncos e a dos Tridiavos. O alargamento do pacto em 152 d.C. a três indivíduos particulares demonstra que a organização social indígena continua a permanecer no seio da realidade político-administrativa romana.
O processo de romanização, para além da instauração de um quadro administrativo formal, implicou também mudanças estruturais na organização indígena do espaço e na economia. A partir dos finais do século I a.C., terminada definitivamente a ocupação do território pelos romanos, alguns dos antigos castros foram abandonados e surgiu uma rede diversificada de habitats, incluindo vici - como, eventualmente, o Castro de Sacoias, Baçal, Bragança -, inúmeras aldeias - de que são bons exemplos os sítios de Lagoa do Castro, Sobreiró de Baixo, Vinhais, do Medorro de Grijó de Parada, Bragança, do Logoaço, Pinelo, Vimioso ou de Faceira da Granja, Duas Igrejas, Miranda do Douro, entre muitos outros -, povoados mineiros - como se sugere para o Castro de Coelhoso, Bragança -, villae - registando-se três possíveis exemplos associados aos sítios bragançanos de Santa Eulália, Izeda, Muradelhas de Paredes, Parada de Infanções e Trás-do-Souto, Salsas -, bastantes casais - vejam-se, entre outros, os sítios do Monte da Picota, Alvaredos, Vinhais, do Souto da Capela, Pinela, Bragança ou de Trampas Carreiras, Sendim, Miranda do Douro que assim têm sido classificados-, além de mansiones, mutationes e stationes, estações viárias associadas à principal via de comunicação (via XVII do Itinerário de Antonino) que sulcava este território, e que estabelecia a ligação entre duas capitais conventuais do Noroeste Peninsular: Bracara Augusta e Asturica Augusta. No território da Terra Fria situar-se-ia a mansio Roboretum, não sendo por ora pacíficas as propostas para a sua localização concreta, tendo-se, recentemente, também defendido a localização de Compleutica no sector da via que atravessa este espaço. As estações menores são de mais difícil identificação, mas não serão de excluir as hipóteses aventadas de o povoado de S. Pedro Velho de Babe, Bragança, local onde entroncaria com a via XVII um possível eixo secundário, ter sido uma statio e o sítio do Vilar, Soeira, Vinhais, uma mutatio.
A nova rede de povoamento está em relação com a intensificação das actividades agrícola e mineira, associadas à implementação de uma agricultura e economia de mercado, e com a criação augustana da via XVII do Itinerário de Antonino, que atravessa transversalmente os actuais concelhos de Vinhais e Bragança, à qual também se associam alguns ramais secundários que servem, concretamente, o Planalto Mirandês (Carril Mourisco), o vale da Vilariça-vale do Tua e o planalto de Argoselo-Outeiro. A depressão de Bragança parece ter tido um papel importante, considerando-se frequentemente ter sido na Torre Velha de Castro de Avelãs a sede da civitas Zoelarum, embora o xadrez arqueológico também possa indiciar a ausência de uma verdadeira caput civitatis, ao assumir-se que tiveram papel preponderante as formações sociais aristocratico-clientelares regionais no controlo territorial, polarizado em três áreas de concentração populacional a que se associam os núcleos centrais de Castro de Avelãs (Torre Velha), Picote (Castelar) e Villalcampo (Castro), como demonstra a descentralização da organização espacial do povoamento.
No quadro territorial da Terra Fria, de acordo com as condições edafo-climáticas de cada local, fez-se produção cerealífera, de vinho e de azeite, de castanha, de hortícolas, etc. Seguramente, esta matriz agrícola coadunava-se com a pecuária. Pelas fontes antigas, sabe-se que um dos produtos regionais que chegou a granjear fama na capital do Império foi o linho, que era utilizado no fabrico de redes para a caça.
A exploração do ouro está documentada na serra de Montesinho (França, Bragança) e nos Pinheiros (Pinheiro Velho, Vinhais), mas há no Nordeste outros conjuntos relacionados com a mineração aurífera, nomeadamente no sul do distrito de Bragança. Possivelmente, houve em Guadramil (Rio de Onor, Bragança) exploração de ferro, ao passo que no Portelo (França, Bragança), em Coelhoso (Coelhoso, Bragança) e em Argoselo (Argoselo, Vimioso) é plausível que tenha sido explorado estanho. Recursos geológicos, como o granito e o mármore, foram igualmente explorados, quer para produção de elementos arquitectónicos, quer para a produção lapidária. No caso dos mármores, merecem referência os de Santo Adrião (São Pedro da Silva, Miranda do Douro), matéria muito usada nesta última actividade.
De facto, esta região é uma das de maior concentração de achados epigráficos, sobretudo funerários, mas também votivos e honoríficos. Os textos gravados nessas inscrições mostram o predomínio de população indígena, a qual revela índices de aculturação peculiares, patentes nos seus nomes, na iconografia desses monumentos, nos deuses que veneram.
Aernus assume-se como divindade tutelar do povo zela e da sua civitas, mas também Bandua e Laesus são divindades indígenas aqui documentadas. Do conquistador romano, a população adopta incontestavelmente Júpiter, que, até agora, parece ser a única divindade do panteão clássico registada na região. Também alguns imperadores - Augusto e Cláudio, por exemplo - foram objecto de veneração pelas gentes que habitaram este território.
A ocupação germânica parece ter desarticulado a organização administrativa romana, deixando esta região entregue ao seu isolamento e favorecendo a consolidação dos laços comunitários que permitiram a sobrevivência de algumas comunidades a que se refere a documentação medieval mais antiga. A partir do século V, de acordo com a informação do Cronicon de Idácio, o território transmontano terá sido integrado no Reino Suevo, que dois séculos mais tarde os Visigodos viriam a conquistar. De acordo com recentes interpretações do Parochiale suévico, ao território da Terra Fria teriam correspondido os pagi de Brigantia e Astiatico. Estes pagi teriam correspondido a aglomerados de recorte urbano integrantes das dioceses suévicas, presumindo-se ter tido o de Astiatico ligação com o que viria ser a terra medieval de Miranda, hipoteticamente sediado em Picote, e o de Brigantia com o restante território da Terra Fria, associado a Castro de Avelãs ou ao local da actual cidade de Bragança, ambos integrantes da Diocese de Bracara.
A ausência de vestígios arquitectónicos e a escassa intervenção arqueológica em sítios directamente relacionados com esta fase dificultam a reconstituição dos quadros de povoamento, embora as referências das fontes escritas e a toponímia indiciem a concentração de alguma população em vilares.
O avanço muçulmano, a partir de 711, foi rápido, e a subjugação da totalidade do território actualmente português terá ficado concluída em 716, ano em que se terá dado a ocupação do território transmontano. A presença dos berberes no território transmontano não deixou grandes marcas para além das toponímicas e, concretamente, na área setentrional do Nordeste Transmontano desconhecem-se vestígios desta presença, até porque terá sido temporalmente limitada e pouco efectiva. De facto, logo em 757, o território transmontano deve ter voltado a mãos cristãs por intermédio de Afonso I, continuando a monarquia asturo-leonesa a dirigir o processo de reconquista até ao século XI.

in:rotaterrafria.com

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