terça-feira, 4 de março de 2014

Os Aglomerados Rurais na Terra Fria Transmontana

Montesinho
O povoamento em aglomeração, ainda hoje a expressão concreta da forma como o homem se fixou no nordeste transmontano, tem as suas raízes na proto-história, com o estabelecimento das primeiras comunidades urbanas organizadas e sedentárias e com os arroteamentos romanos e bárbaros que se lhe seguiram. E também a deficiência das comunicações, a escassez de solos úberes e o rigor do clima impuseram a concentração urbana, ajustaram o homem às exigências do meio e despertaram-lhe sentimentos de solidariedade e de partilha que bem cedo conduziriam à materialização de práticas comunitárias.
Nas áreas montanhosas de Bragança e Vinhais as aglomerações primitivas alcandoraram-se em posições defensivas e desceram apenas à proximidade dos campos férteis e dos caminhos mais movimentados com a institucionalização da pax romana e a concertação das identidades ibéricas mas, assim mesmo, sujeitas como as demais na raia seca e no planalto aberto, a algaras e pilhagens que muito as arruinaram. Com o correr dos tempos, alguns destes povoados, poucos contudo, terão mantido o seu assento primitivo. Muitos , de todo desapareceram, restando apenas um vago topónimo ou um registo arqueológico e outros ainda, transferiram a posição para local próximo, mais protegido ou mais expansível.
Estes povoados e os que lhe sucederam constituíram, como ainda hoje, centros sociais onde se congrega o esforço de organização das actividades e o estabelecimento das funções que lhe estão associadas, desenvolveram relações de afinidade e de concertação comunitária e atraíram clientelas interessadas na qualidade dos seus produtos. Edifício e edificado moldaram-se às necessidades da população, aos hábitos e costumes que foi criando, às tradições que pouco a pouco se sedimentaram.
A introdução de novas culturas (centeio na Idade Média, milho com as Descobertas, batata com as Invasões Francesas), o desafogo que nos trouxe o ouro brasileiro no séc. XVIII e o recrudescimento demográfico que se viria a saldar, afinal, já nos nossos dias, numa terrível sangria migratória, tudo tem contribuído para a redefinição do perfil urbano de cada povoado, sem prejuízo da tipologia do habitat, que mantém características muito semelhantes desde a ocupação castreja. No geral, uma localização preferencial nas proximidades de uma linha de água que alimenta um lameiro afolhado em bocage com courelas e cortinhas, ou na vertente soalheira do planalto, protegida da nortada e com amplas vistas que previnam surpresas e ameaças. Um anel de policultura, trigais e centieiras em afolhamento bienal com pousios para pastagem, soutos e montados a perder de vista.
Os aglomerados dispõem de um ou mais núcleos gerados em diferentes oportunidades de desenvolvimento, constituindo bairros acoplados mas individualizados pela toponímia, que cresceram de forma orgânica em função das acessibilidades ou enquistaram à margem da teia viária que se foi urdindo.
A fisiografia e a propriedade fundiária determinam a estrutura e as casas vão surgindo no encosto umas das outras, em frentes compactas, de onde a onde interrompidas por um eido ou uma travessa. Frentes volvidas às ruas em alinhamentos contínuos, com as hortas e cortinhas nos tardozes.
Nas áreas planálticas de Miranda e Bragança, onde se cria gado grosso e os assentos de lavoura excedem a dimensão usual, as unidades desenvolvem o seu edificado em torno de um terreiro ou pátio - a curralada, geralmente descoberto(total ou parcialmente coberto em Uva), com acesso por uma porta carral rasgada no alinhamento da fachada.
Na montanha, as explorações agro-pastoris, que se limitam ao gado miúdo, prescindem desta organização ou assumem-na a uma escala reduzida.
Guadramil
A povoação é cerrada e densa, não perde espaço no espaço público. Ruas estreitas e entrecortadas, de terra batida, raramente calçadas e bem estrumadas. No miolo, quasi sempre em lugar central, destaca-se a Igreja, com adro fronteiro, cerrado ou integrando a via pública e fazendo dela a sua "praça maior". É aqui que se sente o palpitar do povo, reunido para as funções e preceitos dominicais, no lazer do fim de semana e no render do dia de trabalho. Afora estas ocasiões, tudo é deserto, com a população reduzida e avelhentada entretida na sua lavoura. Além da Igreja, uma ou outra capela sem culto permanente, com orago da devoção local. Se for à entrada, é por certo S. Sebastião, que livra a estrada da guerra, da peste e da fome.
Os edifícios não ultrapassam o segundo piso quando são para habitação, reservando o andar a esta função. Quando se limitam a um apenas, este é térreo e de apoio à lavoura ou à vida doméstica - arrumos de alfaias e lenha, cortes, galinheiro, adega, lagar, celeiro, palheiro, forno,...
O acesso a esse segundo nível é exterior, por escada de pedra, adossada à fachada e lançada a um patim ou a uma varanda longitudinal coberta com o avanço do beirado, que toscas colunas de madeira, raramente de pedra, sustentam. Em alguns casos a varanda é fechada com tabique e até com tapumes entrançados de varas e barro e até de palha (Guadramil) e quando as pedreiras locais facilitam a esfoliação porque a clivagem é favorável, utilizam-se na sustentação monólitos laminares ou longuíssimos esteios de xisto (paelas), como pode ver-se em Vilar Seco da Lomba e em Rio Frio.
Casos há também e não são tão poucos assim, da sobrevivência de interessantes balaustradas barrocas em cantaria de granito com remates de volutas, coevas do áureo séc. XVIII, importadas por casas pouco menos que modestas e em plena região de xisto. Vimo-las, por exemplo, em Vilarinho, em Cova de Lua, em Rabal e em Deilão.
Contudo, na sua maioria estas varandas de acesso apresentam guarda-corpo simples em barrotes ou ripas de madeira fincados a prumo, tabuado corrido entre o guarda- chapim e o corrimão, para protecção do vento (Rio de Onor, Guadramil) e, mais raramente, em reixas (Mora) e em tábuas recortadas com curvas e contracurvas.
Palaçoulo
As varandas de sacada são pouco comuns, mas merecem referência alguns exemplares com a forma de balcões apoiados em longos cachorros de pedra, à boa maneira espanhola, como vimos nas proximidades de Miranda do Douro, designadamente em Picote (mais rebuscadas) e em Palaçoulo (mais rústicas).
As paredes são, regra corrente, construídas no material disponível nas imediações - o granito ou o xisto, reservando-se às igrejas e capelas e às casas de lavoura mais ricas a opção de importar boa cantaria quando o xisto das pedreiras locais não garantia obra acabada.
Em quasi toda a TFT o xisto foi o recurso corrente e com ele se alçaram paredes e muros, pardos quando nus, variando a intensidade da cor entre o ocre amarelo e o vermelho crestado, assumido pela pedra e pelo barro das argamassas.
A exclusividade do granito regista-se apenas nalgumas povoações das serras de Montezinho, Coroa e Nogueira, do flanco nascente da serra da Nogueira, no Douro Raiano e numa boa parte do planalto mirandês. Nestas situações, e em muitos casos, a quantidade e qualidade da pedra permitiu mesmo o corte local de grossos silhares com que se alçaram paredes de perpianho de junta seca (Pinheiro Novo, Moimenta). Mas o efeito mais surpreendente surge da aplicação mista das duas rochas, o xisto no empilhamento e o granito nas travações de contrafiamento e nas molduras dos vãos. É o caso corrente nas áreas de contacto geológico das formações metamórficas com as intrusões plutónicas. Têm-se interessantes exemplos pela diversidade cromática e pela própria estereotomia em Ifanes, Cércio, Caçarelhos e Rebordainhos.
Vale a pena, também, atentar nos processos construtivos que a sabedoria popular pôs em prática para obviar a falta de qualidade de algum xisto que ocorre muito fragmentado ou friável. Nestas situações, o empilhamento é feito com lascas pacientemente sobrepostas alçando paredes duplas com travação transversal, estendendo horizontalmente caibros de madeira que distribuem as cargas impedindo a deformação dos arcos de descarga que escarçoam os vãos ou aliviam as vergas quando aqueles não estão presentes (Babe, Paçô de Rio Frio).
Nestas alvenarias, em que não há recurso a elementos resistentes de granito, a contenção dos vãos é feita com alizares de madeira (Rio de Onor, Guadramil, Ousilhão) ou, menos frequentemente, com placas de xisto colocadas transversalmente como tranqueiros, peitoris e padieiras (Atenor).
As molduras propriamente ditas dos vãos de portas e janelas raramente são elevadas, uma vez que esta opção decorre da necessidade de se rematarem os embuços e rebocos, pouco utilizados nesta região, pelo menos até ao séc. XX. Contudo, conservam-se molduras muito interessantes pelo recorte e lavor das cantarias, que remontam ao séc. XVIII, como pode ver-se em Moimenta em S. Martinho de Angueira ou em Quintanilha; janelas que apresentam o peitoril em cornija saliente (Santa Comba de Rossas, Paçô, Sortes); portas carrais que ostentam cronograma relevado ou insculpido no centro da torsa.
Merece ainda referência pela sua decoração ingénua, a decoração que ostentam algumas placas de lousa, com motivos e legendas gravadas.
As coberturas são quasi sempre em duas águas, justapondo-se as casas pelo encosto das empenas e com uma só água têm-se os cobertos e outras dependências agrícolas de pequena dimensão, quer isoladas, quer integradas no conjunto edificado. Coberturas com quatro águas são muito menos frequentes, registando-se, geralmente, em edifícios isolados.
O material tradicionalmente utilizado nas coberturas era a palha colmaça atada ao ripado da tosca armação e com o reforço de arjões estendidos e bem presos à estrutura, que impediam o vento de a levantar. Sistema realmente eficiente quanto à impermeabilização e, sobretudo, ao conforto térmico, esta opção, que vem da pré-história tinha, como desvantagem, a necessidade da substituição periódica da palha, que apodrecia e, sobretudo, o perigo dos incêndios e da sua propagação incontrolável.
Nos Pinheiros, por exemplo, ainda hoje é possível encontrar algumas casas colmaças, mas a maioria delas são já dependências não habitadas.
Mofreita
Nas áreas onde o solo é xistoso e permite retirar placas finas e largas, a palha é preterida por este recurso, muito mais estável e seguro, mas menos eficaz no isolamento térmico. Neste caso, as placas são simplesmente colocadas sobre o ripado da armação, em disposição regular ou sem regra alguma definida, numa sobreposição em escama descendente e entrecruzando-as alternadamente na cumieira. Na Lomba (Vinhais) e na Lombada (Bragança) as placas engrenam alternadamente na cumieira, formando uma crista que as ajuda a firmar.
Na Mofreita (Vinhais), por exemplo, era costume cobrir a parte mais elevada das águas e a mais baixa com lousa, até aos beirais, que se firmavam com o peso de alvos blocos de quartzo, criando um efeito muito decorativo.
O prolongamento dos beirados sobre os panos de parede é curto, mesmo quando a cobertura recorre á telha, não sendo comum a utilização de telhão nem a sobreposição sucessiva de telhas, como se vê, por exemplo, na cidade velha de Miranda do Douro. Esta circunstância e a grande proximidade dos vãos de janela do capiamento das paredes, que muitas vezes se resume apenas à altura da própria verga, implicam infiltrações, com a saturação permanente das alvenarias e o apodrecimento dos madeiramentos. A varanda, ao prolongar a cobertura para além da fachada respectiva, se por um lado dificulta o arejamento e a iluminação interior, por outro, contraria estas infiltrações e diminui o desconforto provocado pelo excessivo teor de humidade.
Deve porém inferir-se que há muitas soluções interessantes de protecção das fachadas pelo prolongamento dos beirados. Uma delas consiste no apoio em cachorros de pedra de pequenas escoras de madeira que suspendem a projecção da cobertura, como pode ver-se em alguns portais das aldeias de Ifanes e Duas Igrejas.
Ainda no que respeita às coberturas, deve referir-se que a evacuação dos fumos da lareira se fazia naturalmente pela Telha-vã, sem recurso a chaminés e, quanto muito, com pequenas trapeiras nos telhados conseguidas com o alteamento de algumas telhas.
Contudo, há exemplos de engenhosas chaminés em coberturas de lousa - os bueiros, certamente não muito antigas, mas que tiveram alguma generalização como pode ver-se, por exemplo, em Rio de Onor e noutras aldeias das serras da Coroa e de Montezinho.
Outra questão interessante é a cor e a integração do aglomerado na paisagem.
A preocupação de ajustar os edifícios ao perfil morfológico do terreno, por um lado por uma questão de custos e de reforço estrutural e por outro para que o embasamento maciço da cozinha reduzisse o risco de incêndio, valorizou a dimensão linear das construções e contribuiu decididamente para que a sua integração volumétrica se fizesse de forma equilibrada. É neste aspecto que as intervenções recentes causam geralmente mais perturbação. A volumetria exagerada, a proeminência vertical e a localização isolada causam roturas irreversíveis no conjunto onde se inserem.
Mas o equilíbrio não resulta apenas da geometria. A inexistência de perímetro rígido que o coberto vegetal, por si só, já torna difuso e, sobretudo, o recurso a materiais de construção proporcionados pela geologia local, com texturas e cores que não agridem a serenidade do cenário, contribuem para uma integração harmoniosa.
Cova de Lua
Aliás, o custo elevado da cal, obtida por calcinação do calcário em meia dúzia de fornos que serviam uma grande região (Dine, Cova da Lua, Picote, etc) e que a reduzia ao seu papel de ligante nas argamassas (muitas vezes apenas de barro), tornava proibitivo o seu uso comum na preparação de rebocos e na caiação. Só os locais de culto religioso e as casas mais ricas recorriam á caiação plena das fachadas, sobre rebocos grosseiros ou directamente sobre o próprio aparelho da alvenaria. Por questões higiénicas, podiam debruar-se com faixas alvas os vãos de portas e janelas e respingar o telhado para melhor o conservar. Assim, os aglomerados quasi passavam despercebidos na paisagem, confundindo-se com a própria natureza e apenas ressaltavam a igreja e um ou outro edifício mais cuidado, já que própria cal das coberturas se apagava com a humidade do inverno.
Mas a arquitectura rural não se esgota no edificado destinado à habitação e aos seus anexos. Há outras construções rurais, simples, que pela sua tipicidade merecem particular referência. Referimo-nos concretamente aos pombais, aos lagares, aos moinhos de água, aos pisões e às forjas, expressão viva do espírito comunitário que caracteriza este povo.

in:rotaterrafria.com

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