terça-feira, 8 de novembro de 2011

RAÍZES CULTURAIS - Usos e Costumes - Costume ancestral de levar o comer ao monte

Nestas manhãs amenas de principio de Outubro, era um bálsamo a carne entremeada da pá, curada na salgadeira e seca na cozinha, comida crua e cortada a canivete sobre uma côdea de pão. Ou os pimentos cabaçudos fritos no pingo da fritura da carne de porco. Ou uma isca de bacalhau acompanhada com salada de cebola e pimentos cabaçudos do vinagre, ainda mal curtidos. Ou um naco de presunto, ou uma rodela de linguiça ou salpicão que em casa bem governada chegavam de matança a matança. E o vinho da colheita, um palheto peculiar porque sendo mais graduado que o vinho verde, não tinha a estaleca dos maduros da Terra Quente - um verdasco.
Este costume ancestral de levar o comer ao monte bem se compreende, atenta a economia de meios que representava: uma pessoa apenas evitava a deslocação de várias, e o ritmo do trabalho não se interrompia, senão pelo tempo suficiente para homens e animais se retemperarem.
Justamente pelo facto de ser um costume tão corrente e insuspeito, serviu, no tempo difícil da guerra civil da vizinha Espanha, para esta gente raiana do lado de cá prestar a sua solidariedade aos nossos vizinhos em dificuldades, perseguidos pelo regime franquista ou simplesmente fugidos dos horrores da guerra.
Contava-me a minha avó, sem sombra de vanglória, com a serenidade de quem tinha feito a coisa mais natural deste mundo, que muita da comida levada ao monte, depois dos "vermelhos" se terem refugiado nas terras da raia, não se destinava aos trabalhadores da aldeia, mas a matar a fome aos refugiados.

Entre as mulheres dos lavradores estabelecera-se um pacto secreto de, à vez, simularem levar a comida aos seus obreiros, deixando a canastra com os alimentos em sítio previamente combinado e recolhendo a canastra com  a loiça usada no dia anterior. Heroicamente corriam o sério risco de serem interceptadas pelas autoridades portuguesas, com consequências que decerto não seriam agradáveis. Heroínas silenciosas.
De início, por precaução, apenas um elemento do grupo, e sempre o mesmo, aparecia para combinar o ponto de entrega, no dia seguinte. Foi assim durante intermináveis meses.

A cumplicidade da aldeia e o fechar de olhos do próprio cabo da polícia foram encorajando esses foragidos a, pela calada da noite, se aventurarem a descer à povoação, pernoitando nos  palheiros espalhados pelas eiras, na periferia  do povo. O primeiro habitante que se apercebesse da aproximação da Guarda Republicana, dava o alarme, permitindo-lhes colocarem-se a salvo.
Era este o sentido de humanidade que esta gente iletrada e rude praticava: ajudar quem precisasse, independentemente de ideologias, nacionalidade ou relações de proximidade. Era esta mesma filosofia de vida que mandava colocar na mesa da refeição um talher a mais, porque o caldo se repartia sempre com quem chegasse.
(...)                        

in Quem me Dera Naqueles Montes

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