terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Homilia do bispo de Bragança-Miranda na noite de Natal

A Luz e a beleza da Esperança

Caríssimos Presbíteros, Párocos da Cidade
Acólitos da Catedral
Coro da Catedral
Irmãos e Irmãs

«Não temais, porque vos anuncio uma grande alegria para todo o povo: nasceu-vos hoje, na cidade de David, um Salvador, que é Cristo Senhor» (Lc 2, 10-11).
1. Desde o início do Ano litúrgico, o convite constante é à alegria: «Alegrai-vos sempre no Senhor: Novamente vos digo: Alegrai-vos». Pensando bem, devemos admitir que a alegria é uma palavra-chave do léxico cristão. Do Antigo Testamento, com a alegria de Deus e do homem na criação, ao Apocalipse, com a promessa da alegria sem sombras, um rio pleno de alegria percorre a Bíblia.
Alegria de Deus pela criação, a tal ponto que, vendo a beleza do mundo e especialmente da criatura humana, a pupila de Deus, dizem os rabinos, se dilatou, até fazer escorrer uma lágrima de extrema alegria divina e de prazer divino. A alegria é ao mesmo tempo uma realidade interior e uma manifestação exterior do abraço de Deus à humanidade.
S. Leão Magno, pregava assim para a festa do Natal do Senhor: «o nosso salvador, caríssimos, nasceu hodie (hoje); alegremo-nos. Não há lugar para a tristeza no dia em nasce a vida, uma vida que destrói o medo da morte e doa a alegria e a esperança da eternidade. Nenhum está excluído desta felicidade…».
Hoje contemplamos o presépio, Maria e José e o menino Jesus. A alegria de que se fala não é mero sentimento passageiro fruto de uma emoção e de uma exaltação momentânea; é uma realidade profunda que procede da certeza de termos sido salvos e de sabermo-nos em paz com o Deus da Paz. Esta intimidade de Deus determina a alegria autêntica e inaugura verdadeira festa que não conhece ocaso. Somos, portanto, servidores da alegria! No Natal, «tudo a rir se doura, de inocente luz» como escreveu Guerra Junqueiro.
2. A Liturgia de hoje concentra-nos no essencial do cristianismo. De facto, o ponto de partida do cristianismo e por consequência da Igreja, não são as Escrituras, mas é Jesus Cristo. A nossa fé tem a ver com a vida, com o nascimento de uma criança, o menino Jesus, e com a vitória definitiva sobre a morte com a cruz e a Páscoa do jovem-adulto, Jesus Cristo. «Nele é que estava a Vida de tudo o que veio a existir. E a Vida era a Luz dos homens» (Jo 1,4).
O Natal não é uma simples recordação, mas é uma profecia única. Natal não é uma festa sentimental, é a maior conversão da história. A luz que irradia desta festa é o abraço de Deus aos homens. O que se pensava impossível aconteceu. Natal é, por isso, a possibilidade do impossível. Deus visitou o seu povo e fez-se carne no seu filho doado ao mundo. Viver o Natal é ultrapassar qualquer imobilismo que o medo da crise pudesse causar.
Na celebração do Natal proclamamos solenemente: «O Verbo fez-se carne» e renova-se a esperança no coração. Para os cristãos a esperança é o encontro com Jesus Cristo. Nele, a carne da nossa fragilidade encontra-se com a beleza de Deus. Ele próprio fazendo-se homem quis amar-nos com um coração de carne e o seu coração continua a bater de amor por todos. O Natal, ainda antes das tão necessárias e urgentes medidas económicas, impele-nos a mudar o coração e a sermos construtores da justiça e da paz.
Convido todas as pessoas de boa vontade e de coração sincero a dar luz à esperança na vida quotidiana. A pessoa humana é o único ser vivo que espera. Ninguém está excluído da Esperança. Neste Natal dê uma luz à Esperança.
«Porque, pela sua encarnação, Ele, o Filho de Deus, uniu-se de certo modo a cada homem. Trabalhou com mãos humanas, pensou com uma inteligência humana, agiu com uma vontade humana, amou com um coração humano. Nascido da Virgem Maria, tornou-se verdadeiramente um de nós, semelhante a nós em tudo, exceto no pecado» (GS 22).
O tempo do Advento-Natal – adventus (tradução do grego parousía ou também epipháneia),  Adventus, Natale, Epiphania exprimem a mesma realidade fundamental – Deus em nós.
«Quem é que ainda consegue viver o Natal na sua dimensão de mistério, de evento de fé?» [E. BIANCHI] Enfim existe uma ideologia do Natal e tudo concorre a que não se escandalize ou se maravilhe mais, não se ponham as perguntas, não nos sintamos interpelados. Caros irmãos e irmãs, o problema não é esperar ou desesperar, ser otimistas ou pessimistas, mas encontrar fundamento para a Esperança.
Na tradição judaica há um antigo poema chamado «as quatro noites», as quais são: a primeira é a noite da criação; a segunda é a noite da eleição, do sacrifício e da aliança com Abraão; a terceira noite que Israel nunca esquecerá é aquela do Êxodo, que para nós é a figura da Páscoa; a quarta é a noite em que a humanidade espera o Messias, que para nós é a noite em que se manifestou o Salvador, qual luz do mundo.
S. João da Cruz canta este mistério: «A corrente que desta fonte vem é forte poderosa, eu o sei bem, mesmo de noite… De lá está chamando as criaturas, que nela se saciam às escuras, porque é de noite. Aquela viva fonte que desejo, neste pão de vida já a vejo, mesmo de noite».
No Natal celebramos o mistério do Verbo que se fez homem, o qual faz a vontade do Pai, como leremos com solenidade na missa do dia: “o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus” (Jo 1,1). Esta atitude de contemplação, amor, disponibilidade e prontidão para fazer a vontade do Pai faz parte da própria natureza de Jesus Cristo. Nisto se cumpre o mistério total de Cristo, assim a via que parte de Belém procede inevitavelmente até ao Gólgota, vai da manjedoura até à cruz – da estrela natalícia ao sol da Páscoa.
Fazemos memória da primeira vinda (o passado), antecipamos a segunda vinda (o futuro), e fazemo-lo com a celebração de hoje (o presente).
3. «Amigo, neste Natal do Senhor quero vê-lo!». Assim disse Francisco de Assis, no início de dezembro de 1223, voltando-se para o amigo Giovanni Velita, um proprietário rico de Greccio. Francisco explicou ao seu amigo o que queria dizer “ver” o Natal. Daquela compreensão nasceu o presépio como é conhecido na cultura cristã, na piedade e na arte dos países latinos. Francisco é um crente com um coração de criança. Os antigos diziam: «para quem acredita tudo é prova, para quem não acredita nenhuma prova basta».
A sua fé “vê” o que crê; mas ele sentia uma “lacuna” na representação do nascimento do Filho de Deus. Graças às suas peregrinações a Roma, ele conhecia o nascimento representado nos mosaicos das grandes basílicas, mas não lhe bastava. Por isso, criou uma imagem viva do Menino de Belém, feito de carne, de um olhar, um gemido, um sorriso e, ao mesmo tempo, pediu um sacerdote para celebrar na noite a Eucaristia. E isto ainda hoje se pode ver, no fresco da gruta do Presépio em Greccio, próximo de Rieti em Itália.
«Nenhum sacerdote, nenhum teólogo estava junto da manjedoura de Belém. Todavia toda a teologia cristã tem a sua origem no milagre de todos os milagres, no facto que Deus se fez homem», observava Bonhoeffer.
Tertuliano sintetizou em três breves palavras o mistério da beleza e da vida de Cristo (o do Belém e o do calvário, porque o mistério pascal inclui também a encarnação do Verbo): caro salutis cardo (a carne é o eixo da salvação) [«De Resurrectione Mortuorum 8», CCL 2, 931]. De facto, o Pai quer salvar a humanidade através da carne do Filho, o fundamento da Páscoa da nossa salvação. O Senhor fazendo-se homem quis amar-nos com um coração de carne! A Eucaristia é, já, semeada em Belém, casa do pão.
4. Diante do presépio podemos dizer que a fé nasce do amor, isto é, da capacidade de um olhar novo que vem do sentir-se muito amados por Deus. Maria e José fizeram a experiência do que João escreveu na sua primeira carta: «O que existia desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplámos e as nossas mãos tocaram relativamente ao Verbo da Vida, de facto, a Vida manifestou-se; nós vimo-la, dela damos testemunho e anunciamos-vos a Vida eterna que estava junto do Pai e que se manifestou a nós - o que nós vimos e ouvimos, isso vos anunciamos, para que também vós estejais em comunhão connosco. E nós estamos em comunhão com o Pai e com seu Filho, Jesus Cristo» (1Jo 1,1-3).
O mistério do Natal é um mistério de pobreza, de simplicidade e de alegria, tudo o que é pobre, simples e humilde e por isso não é difícil de compreender para quem tem os olhos da fé. A simplicidade da fé ilumina toda a vida e faz-nos aceitar com docilidade as grandes coisas de Deus. Experimentamos como a alegria perfeita é possível também neste mundo, apesar dos sofrimentos e das dores de cada dia.
Uma vida sem reconhecimento é uma vida triste, difícil, que ignora o prazer e a beleza do dom, que acredita que tudo seja sempre devido, e antes de se alegrar pelo que possui, vive na raiva por aquilo que pensa que lhe foi retirado.
Caros irmãos e amigos: a nós foi-nos dada a alegria de poder dizer obrigado, de voltar a descobrir as palavras mágicas que tornam a vida mais leve, os gestos de fineza e de atenção que ultrapassam as tensões mais duras e abre a janela do encontro [Cf. D. Caldirola, Confessioni di un prete, 23].
O Senhor fazendo-se homem, quis amar-nos com um coração de carne! [Cf. Bento XVI, Audiência geral 02.12.2009]
D. José Cordeiro, bispo de Bragança-Miranda

in:Agência Ecclesia

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