sábado, 7 de janeiro de 2012

As Alheiras


                   Por: A. M. Pires Cabral
Com licença dos gurus da especialidade, meto hoje foice em seara alheia, para me aventurar a dizer que das mais acertadas estratégias do marketing moderno é a criação de denominações de origem. É como se passasse dessa forma um certificado de autenticidade a produtos típicos de uma dada região - e um dos valores mais apreciados por esta sociedade do come-em-pé é, talvez paradoxalmente, talvez não, justamente a autenticidade.
As denominações de origem começam pois a proliferar e oxalá aquelas regiões que obtêm o seu reconhecimento possam resistir a tentações de adulteração, de contrafacção e de lucro fácil e fraudulento, por forma a não as desacreditar. 
Vinhais, por exemplo, não sei se já obteve denominação de origem para os seus estupendos salpicões e linguiças.
De Mirandela sei que já viu as suas alheiras reconhecidas dessa forma.
Assim se consagra uma longa tradição de chamamento: alheiras de Mirandela. Nas charcuteries finas de Lisboa, como nos hipermercados e nas mercearias de bairro, alheiras há só umas, as de Mirandela e mais nenhumas.
Apenas uma vez me lembro de ter visto, há mais de trinta anos, numa confeitaria da Rua da Sofia, em Coimbra, alheiras anunciadas como sendo de Macedo de Cavaleiros. E não imaginam como o meu ego macedense inchou nesse momento glorioso !
Esta denominação não sei a que se deve. A um qualquer acaso histórico, porventura comezinho e insignificante, ou então ao rasgo de um qualquer fabricante pioneiro, que resolveu introduzir as suas alheiras nos circuitos comerciais. Digo isto porque alheiras de Mirandela, sendo sem dúvida boas - as que o são -, não são melhores do que as que se confeccionam em Bragança, Macedo ou qualquer outro lugar do Nordeste. Sant'Anna Dionísio refere-se algures, muito apreciativamente, à «formidanda travessa das alheiras» - e não estava a falar das de Mirandela, especificamente. Eu compro em Macedo alheiras que não ficam nada a dever às de Mirandela.
Às vezes as minhas cunhadas oferecem-me meia dúzia delas feitas à boa maneira artesanal, segundo segredos antigos que infelizmente se hão-de perder com esta geração que é a última que ainda faz fumeiro. E - descontando o que vai nisso de sentimental - nunca comi alheiras que chegassem aos calcanhares das que fazia minha Mãe.
Mas pronto, a cidade do Tua ganhou essa corrida, e ainda bem. Creio que estamos todos de parabéns por isso. Possa Bragança, possa Macedo, possa Moncorvo e possam todas as terras onde há coisas típicas e boas, provadas pelos séculos, conseguir para elas o mesmo estatuto. Será sem dúvida um factor de riqueza.
Havia qualquer coisa de festivo no dia de fazer as alheiras. A minha Mãe - o general - e seus ajudantes de campo (em que eu me incluía gostosamente) talhavam fatias estreitas dos grandes pães de trigo para dentro dos alguidares de zinco, enquanto as carnes (sobretudo de porco, mas também um troçozito de vitela, acaso peru ou gorda galinha poedeira e se houvesse uma perdizita ou duas - meu Pai era caçador - tanto melhor...) coziam ao lume em potes de ferro - e rescendiam. Alguém entretanto tratava das tripas, que se haviam comprado às bicas na loja do sr. Zezico. Depois, o trigo era amolecido com a água da cozedura, as  carnes misturadas. E passava-se ao enchimento, com pequenos funis de lata, justamente chamados enchedeiras. Alheiras medianas, nem muito grandes nem muito pequenas; mas, nalgum naco de tripa sobrante, minha Mãe nunca se esquecia de encher um "reizinho" para nós, as crianças.
Postas nas varas, sobre a lareira, as alheiras eram um lindo e apetitoso sobrecéu. No dia imediato já havia quem gostasse delas, embora uns diazinhos de estágio nas varas do fumeiro lhes apurassem o gosto.
Uma alheira bem temperada é de facto uma festa para o paladar. Mas com a sua guarnição natural: a batata cozida e os grelos. Porque aqui há dias, num programa infantil da RTP-2, uma locutora motivava as crianças a comer alheiras de Mirandela - com um ovo estrelado e batatas fritas ! Credo ! É o come-em-pé a adulterar a gastronomia tradicional.
Para programa infantil, que devia ser pedagógico, a senhora cometeu um duplo desacato: atropelou as normas da dietética e insultou as alheiras.


Repórter do Marão, 26 de Novembro de 1996
in Aqui e Agora Assumir o Nordeste
in:jornal.netbila.net

2 comentários:

  1. Vou dizer uma coisa polìticamente incorrecta...as alheiras de Mirandela não chegam aos calcanhares das alheiras de Vinhais...mas boas mesmo, as que se fazem em casa, grandes , tripa larga , carne com fartura , a saber a alho e levemente picantes...acompanhadas de boa batata cozida e grelos.
    M.A.A.

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  2. Todos puchamos a brasa à nossa alheira, neste caso, às do concelho de Bragança, onde destas, as mais maravilhosas são as da minha mãezinha. Claro que o acompanhamento, tem de ser batata cozida e legumes, de preferências, os grelos. Choca-me, nas grandes cidades, a alheira com bata frita e arroz! não poucas vezes, me insurgi contra esta prática que, foge de todo, à tradição, ao ritual de bem saborear uma boa alheira, mas para os que praticam esta atrocidade, parece que falo chinês

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