segunda-feira, 20 de abril de 2015

O "TI BLOSO"


Lembro-me dele, curvado pelo peso dos anos, a caminhar na Rua do Loreto.
Carão grande, feições expressivas, mãos potentes presas a pulsos grossos. Mãos habituadas a malharem e retorcerem o ferro, de acordo com os seus ditames e desejos.
No entanto, estas poderosas mãos também consertavam sensíveis mecanismos das espingardas.
No seu quotidiano de trabalho as facécias resultantes do seu modo despachado de resolver os problemas granjearam-lhe fama e admirações de várias proveniências.
Uma dessas facécias respeita a um rapazola incumbido de, em determinado dia, ir levantar uma espingarda entregue aos seus cuidados. De posse da espingarda, o moço perguntou-lhe quanto custava o conserto. “São vinte escudos” respondeu o Sr. Veloso. O rapaz deixou cair o pedido de um recibo, a fim de entregar ao dono da arma. “Bom, com recibo são quarenta escudos” atirou o sabido artesão.
A vertiginosa subida do preço da reparação levou o rapazote a desistir do pedido.
Esta reviravolta provocou o espanto do seu velho amigo Artur Mirandela, que assistia ao desenrolar dos acontecimentos. Não se conteve e interpelou-o: “Como é? Sem recibo vinte escudos, com recibo quarenta escudos?!”. A resposta, lapidar, surgiu de pronto: “Então o rapazelho tinha alguma necessidade de saber que eu não sei escrever?!”.
Os seus trabalhos de ferreiro encontravam-se – talvez ainda se encontrem – espalhados pelas aldeias das redondezas.
No decorrer de uma actividade venatória vislumbrou na aldeia de França uma grade de varanda em ferro. Susteve o passo, apreciou a obra e desabafou: “Que coisa feia! O raio da grade até está torta”. Ante tão contundente crítica o compincha Mirandela logo lhe avivou a memória dizendo ter sido a grade feita por ele. Impávido e sereno, o émulo de Hefesto atribuiu ao desnivelamento do terreno as culpas pelo modo em que se encontrava a grade.
O Sr. Manuel Veloso gostava da profissão. Mas, verdade, verdadinha, do que ele gostava era de caçar.
Fazia parte de um temível e bem humorado grupo de caçadores, onde pontificavam o já referido Artur Mirandela, o poeta Miguel Torga, o Domingos Bramão, o arquitecto Manuel Ferreira e a D. Mimi Pinto de Azevedo.
O intrépido ferreiro não se deixava impressionar pelos currículos dos companheiros de caça. Daí dizer ao autor dos “Contos da Montanha” ser-lhe impossível iniciar a sublime arte de caçar sem primeiro ter refeiçoado de faca e garfo. Na dele, tal falha seria igual a caçar com cartuchos sem pólvora.
Na condição de viúvo, namorou determinada rapariga atreita a pedir. Ela, um dia, arriscou a lembrar-lhe o longo período de namoro sem ele nunca ter tido uma lembrança para ela, nem ao menos um par de meias. A resposta, afiadíssima, soltou-se da boca: “Olha, rapariga, se me falas em dinheiro perdes o cliente!”.
A experiência e uma peculiar visão do mundo levavam o Sr. Manuel a tudo relativizar de maneira a não se deixar amofinar pelo fluir do tempo. Deixou saudades.

in:Figuras notáveis e notórias bragançanas
Texto: Armando Fernandes
Aguarela: Manuel Ferreira

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