domingo, 22 de janeiro de 2012

Um inverno - segundo ato


Depois do desfile de todas as pessoas da aldeia pela casa dos meus avós para ver a criatura estranha que tinha regressado a casa, finalmente, sosseguei. Tinha frio no corpo e na alma e uma vontade desmesurada de falar com os meus pais.
Não havia telefone, não tinha como falar com eles. Restava-me escrever. Nessa mesma noite iniciei um período de escrita laudatória que não tinha limite de páginas. Apenas pegava no papel, corriam as palavras a preencher os espaços delimitados pelas linhas da folha fina e pautada.
A noite estava fria e puseram-me a dormir num quarto existente na parte nova da casa que havia sido feita pelo meu pai, numa das suas vindas a Portugal. O quarto era espaçoso, ficava perto da casa de banho e os cobertores que tinha na cama pesavam como todas as minhas dores e angústias. 
Deitei-me, saquei do papel e da caneta e comecei  a escrever com uma ânsia, com uma avidez que quase parecia um alcoólico a correr para a última garrafa.
Gelei-me. Apaguei a vela e tentei dormir... tinha os pés tão frios que foi impossível conciliar o sono. O dia raiou e encontrou-me desperta, sem vestígios de cansaço apesar da noite mal dormida. Chovia desconsoladamente enquanto, triste, me vestia.
Cheguei à cozinha e encontrei a lareira acesa. Sentei-me num tripé muito perto do lume e esperei. Tudo era novo, único, quase irreal, quase medieval... parecia o cenário de um filme, dos muitos que eu havia visto, de princesas e príncipes onde tudo acaba bem porque sim.
Entrou o meu avô, vindo da rua, vestido com um impermeável a escorrer água. Nas mãos trazia alguns paus para o lume.
"Bom dia avô." "Bom dia filha. Já matabichaste?" "Já o quê?" O meu avô riu-se. "Já comeste?" "Não, levantei agora. Tinha frio. Não consegui esquentar."
Lentamente, comecei a aquecer e a sentir-me bem. O meu avô pôs um pequeno pote ao lume para fazer café e começou a partir um pão enorme com a sua faca palaçoulo e entregou-me uma fatia. Foi  à arca de madeira que estava junto ao louceiro e tirou queijo e um bocado de presunto. Partiu o presunto e deu-me um pedaço. "Come. Vais ver que bom é! Vai buscar uma faca para o partires. É mais fácil de comer." Sem saber muito bem onde poderia encontrar uma faca, dispus-me a procurá-la lá para os lados do armário onde o meu avô tinha ido buscar o presunto e o queijo. "Traz um bocado dessa chicha gorda que está na mosqueira. Vou assá-la." "O quê avô? O que é uma mosqueira? O que é chicha? Onde está isso?" 
"Estamos bem arranjados contigo rapariga..." Riu-se e veio, com a calma de um bom professor, mostrar-me o que era cada uma das coisas que me havia pedido.
Quem se ria agora era eu. Como era possível que a mesma língua fosse tão diferente de um país para outro?
Abriu-se a porta que dava acesso à sala e aos quartos e lá apareceu a minha tia, ensonada ainda, mal disposta pelo barulho que fazíamos.
"Que não se calam! Já uma pessoa não pode dormir descansada nas férias! Já há café? Tenho fome. A mãe?"
"Já vem. Foi dar alguma coisa à porca parida."
"Então? Dormiste? Tiveste frio?" Finalmente, olhou para mim com um sorriso e chegou-se ao lume. Viu que eu já tinha na mão um naco de pão com presunto, que ainda não tinha começado a comer pois estava a tentar compreender o que se passava à minha volta. Estava a assimilar todas as coisas que havia ouvido e a tentar compreender a última frase do meu avô. Devia ter uma expressão perplexa no rosto o que despoletou uma gargalhada da minha tia.
"Anda, come que isto vai aos poucos. Com o tempo entendes tudo."
Entrou a minha avó Elvira, muito magrinha, muito leve, muito risonha e doce. "Bom dia avó!" "Bom dia filha. Dormiste bem?"
Acenei que sim com a cabeça e levantei-me para que ela se chegasse ao lume. Vinha gelada e molhada. Sentou-se e olhou para mim como se fosse a primeira vez. O meu avô pôs uma grelha nas brasas e cortou um bocado generoso de carne gorda em cima da grelha. O silêncio reinava. O meu pensamento corria veloz.
"Ó de casa?" "Entre tia Maria" - disse ligeira a minha avó Elvira.
Uma figurinha pequena e magra, de cabelos brancos e sorriso pronto assomou à porta e entrou timidamente. Era a minha outra avó, mãe da minha mãe que, depois de dar os bons dias, me abraçou e beijou repetidamente. "Sente-se tia Maria, sente-se...vai matabichar connosco." Insistiu a minha tia, fazendo com que se sentasse junto ao lume.
Ali se encontrava o meu núcleo familiar de então. Estava prestes a começar o terceiro ato.

Mara Cepeda
in:nordestecomcarinho.blogspot.com

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