domingo, 22 de janeiro de 2012

Um inverno - take 4


A minha avó Elvira afadigava-se, junto ao louceiro, num frenesim de esfrega aqui e lava ali... "Avó, quer ajuda?" "Não filha, já está." Lá vem ela, cabelo loiro escuro, olhos azuis, nariz judeu, magra, muito magra, sorriso malandro de menina travessa, pele tisnada pelos muitos sóis que já tinha vivido. Traz na mão o dito lato, muito limpo por dentro, que por fora era quase impossível visto o fumo que recebia, pendura-o, atiça o lume com mais alguma lenha... "Vai buscar um cântaro de água à bica. A água que temos em casa não chega para encher o lato." 
A minha tia assistia divertida à cena e ria-se com as minhas caretas. Não entendi nada, ou quase nada do que a minha avó havia dito e preparava-me para lhe perguntar o que é que eu tinha de fazer. "Anda comigo. Vou mostrar-te o que a avó te pediu para fazer." 
Salva, finalmente, da minha profunda ignorância desta língua estranha! Saltei do escano e segui a minha tia, célere como uma lebre a fugir aos caçadores.
Acompanhei-a até onde estava o móvel a que eles chamavam louceiro e eu armário e vi, junto à banca, quatro utensílios de plástico azul, cada qual com a sua asa. Ela pega em dois e eu imito-a. Levou-os até à mesa, onde os pousou, vestiu o casaco, calçou uns sapatos velhos que ali tinha e disse-me: "Agasalha-te. Veste este casaco, não quero que te constipes."
Saímos para a rua onde ainda chovia. Um nevoeiro denso cobria a paisagem que eu ainda não tinha podido ver. O dia estava triste, tão triste que quase convidava ao desassossego, permitindo tristezas várias, daquelas que por vezes atacam sem razão. Eu tinha tantas razões para estar triste que não era difícil o contágio.
A "bica" ficava mesmo ali ao lado do nosso terraço, era só descer as escadas e contorná-lo. Era inverno e, por isso, não havia falta de água. A torneira estava aberta e a água transbordava do tanque enlameando ainda mais o caminho.
"Ó raparigas! Que estais a fazer? Espera, tu és a minha neta! És parecida com o teu pai, ora aí está!" "Olá tio Zeca! Pois é, é a Maria." "Estás pimpona! Dá cá um beijo..."
Deixei-me beijar e abraçar pelo pai da minha mãe de quem ela pouco falava. Quase não fora pai. A minha mãe só tivera a sua mãe que tudo provera. O que era inequívoco é que eles eram extremamente  parecidos. Não havia dúvidas nenhumas em relação à paternidade.
O meu avô Zeca falava muito, muitíssimo. Enchemos os quatro cântaros e encaminhámo-nos para casa. Ele segui-nos, ajudou-me a levar um cântaro, assim como à minha tia. 
"Ó Videira, com quê então, cá temos a nossa neta!" Tonitruou com a sua voz grave. O meu avô vinha do quarto onde fora desfazer a barba e com o seu sorriso fino, escondido por um bigode chaplinesco, acenou com a cabeça concordando. "Entra Zeca, chega-te ao lume."
Despejámos dois cântaros de água para dentro do lato. Sentei-me, observadora. Senti-me observada.
A conversa estava animada embora eu não entendesse metade do que ali se dizia. Olhei para o lato que começava a ferver e ouvi-me dizer: "Avó, acho que a água está quente. Como faço agora?" "Já vou filha. Espera que eu trato disso." Vi-a pegar numa caneca de alumínio e deitar água para dentro de dois cântaros. Pegou neles e dirigiu-se para a casa de banho. Despejou a água na banheira e eu vi que a água estava amarela, tão amarela que quase parecia sumo de laranja. 
"Avó, a água está suja! Como é que eu vou tomar banho com essa água?" "A água não está suja, está assim por ter sido aquecida no lato, ao lume." Vai buscar um cântaro de água fria para temperar esta.
Para mim, a água estava suja. Disso não tinha dúvidas mas, depois de todo o trabalho da minha avó, entendi que tinha de tomar o meu banho, mesmo que ficasse mais suja do que estava. Assim fiz. Numa casa de banho sem água nas torneiras, fria como uma geladeira, com o ar a entrar pelas frinchas da janela, banhei-me. Foi o banho mais rápido da minha vida. 
Saí do banho a cheirar a fumo. Vesti-me o mais rapidamente que me foi possível e corri para a lareira para me aquecer. O avô Zeca ainda lá estava. A minha avó e minha tia faziam o almoço. Eu estava meio anestesiada, meio adormecida como se sonhasse um estranho sonho. Sentia-me personagem de um qualquer filme, pronta para assistir à próxima cena.

Mara Cepeda
in:nordestecomcarinho.blogspot.com

1 comentário:

  1. Obrigada, Henrique

    Que todos os invernos possam ser tão inocentes e descontraídos como esse que me calhou viver.

    Mara

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