sábado, 28 de janeiro de 2012

Um inverno - terceiro dia


A noite chegou depressa. O frio que se fazia sentir, anunciava geada. O meu avô colocou mais um pau na lareira e atiçou o lume. Eu e a minha avó lavávamos a louça do almoço. Uma bacia com água e detergente, outra com água limpa para a passar. Convém dizer que a água tinha sido aquecida no lato, o que para mim era muito estranho. 
A minha tia e o meu avô conversavam sobre o azeite produzido nesse ano. A avó Maria já se tinha escapulido. 
"Ó de casa?" "Quem vem lá?" "Sou o Graciano, venho ver a Maria." "Entra rapaz, entra!"
Ao ouvir falar em mim, deixei a louça e vim ver o sobrinho da minha avó. Era um homem pequeno, rijo, dos muitos trabalhos a que a vida o tinha obrigado. Desde tenra idade, órfão de mãe que o pai nunca o conheceu, trabalhou como criado em algumas casas mais abastadas, cresceu, casou, teve sete filhos e nenhum sobreviveu. Perdeu a mulher, pensou desistir mas, o amor da tia conseguiu trazê-lo de volta à vida, à terra.
Desde então trabalhava o pouco que tinha e sobrevivia. Ajudava e era ajudado pela minha avó. Era bastante mais velho que a minha mãe que considerava irmã.
Viu-me e abraçou-me como quem não lida com afectos há muito tempo, sem jeito, atabalhoadamente. Falava muito e eu não entendia nada. O calão funcionava como uma bengala, o que me escandalizava. Nunca me consegui habituar a este jeito de ser do povo das nossas aldeias. 
"És quase tão bonita como a tua mãe, c... a tua mãe era a rapariga mais pimpona destas aldeias todas ao redor, c..."
Bem, pelo menos fiquei a saber que a minha mãe fora uma bela rapariga, pesem embora as palavras mais castiças que usava com esmero. 
"Queres um copo, Graciano?" "Se mo dá, não digo que não, c..."
Lá bebeu o seu copito de vinho, perguntou pelos meus pais e irmãos e prometeu voltar amanhã com um "cibo de lombo da adóba dos salpições." 
"Amanhã não Graciano, vamos pra Bragança." - diz a minha tia. "E quando vindes?" "Na quinta." "Então será na quinta..." 
Despediu-se. Fez-se silêncio. O silêncio é bom.
"Ó de casa?" "Entre tia Engrácia." "Estou zangada convosco, que ainda não me fostes ver!" "E tempo? Isto, por causa da garota, tem sido um corrupio".
"Então Maria, como estás filha? Viste a minha rapariga antes de vir?" "Sim. Ela mandou-lhe uma lembrança. Vou buscá-la."
Saí, aliviada por poder tomar fôlego por breves segundos. De imediato me arrependi ao receber no corpo um frio tão denso que quase me paralisou. A casa estava bem feita, tinha paredes grossíssimas, janelas com vidros e portadas mas, mesmo assim, a aragem era quase palpável. Enchi-me de coragem e continuei para o meu quarto a fim de ir buscar a encomenda da tia Engrácia. Abri a mala e depressa a encontrei. Já mal sentia as mãos de tão geladas que estavam eu, que me considerava uma pessoa com boa resistência ao frio.
No lar, falavam animadamente. Apercebi-me que combinavam a matança do porco para sábado, logo a seguir ao Ano Novo. Lá ia participar num ritual de inverno que já conhecia de tantas vezes o ouvir contar aos meus pais.
Longe da terrinha, as lembranças são mais vívidas, tão nítidas que o seu relato se revela um filme que visualizamos na perfeição.
Estava cansada. Tinha comido uma sopa e um pedacinho de pão com chouriça e uma maravilhosa maçã que, mesmo enrugada, sabia a mel, a sol...
Abriu-se-me a boca. O lume estava quase apagado. "Até amanhã para todos. Durmam bem."
"Tu também. Se precisares de mais um cobertor diz." "Não, que quase não me consigo mexer.
Findo o terceiro dia, aguardo, ansiosamente, que venha o próximo.


Mara Cepeda
in:nordestecomcarinho.blogspot.com

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