sábado, 13 de junho de 2015

O SR. ARTUR MIRANDELA

Corriam placidamente os dias naquele mês de Maio de 1958. Numa manhã descubro, colada na parede da casa do vizinho e comerciante Milo, uma enorme fotografia de um militar em traje de gala. No peito muitas medalhas, dragonas douradas nos ombros, e um cinto largo de seda aperta-lhe o dólman.
No rosto ressaltam dois olhos inquiridores, protegidos por sobrancelhas espessas. Fixo o nome do militar: General Humberto Delgado.
Tal fotografia não passava de um cartaz, estando mais três muito bem pregados na padaria existente junto às bombas de gasolina da Mobil.
Eu lia habitualmente o “Primeiro de Janeiro” e o “Comércio do Porto”; por isso, sabia quem era o General.
Não sabia quem era o Sr. Artur Mirandela. Passei a sabê-lo logo depois, quando num dia de feira vejo o General em carne e osso, a percorrer apressadamente a Praça da Sé, acompanhado de alguns senhores, estudantes, miúdos e muitos polícias. Junto ao General ia, risonho e contente, um sujeito seco de carnes, olhar firme e decidido. Era o Sr. Artur Mirandela.
Desde sempre manifestei apetência pela história, pela política e pelas personalidades ou figuras controversas. Sendo assim, e é, naturalmente procurei saber ao certo quem era este Homem intimorato, saliente pela coragem, capaz de afrontar o ditador.
Aqui e acolá disseram-me ser ele conhecido como um notório reviralhista, deram realce à sua faceta de notável e afável companheiro de Miguel Torga, do Ti Blôso, do Tenente Bramão, do nosso Arquitecto e de seu pai, em esplendorosas caçadas, não se esquecendo de me referirem o facto de ser contagiante a sua alegria de viver.
O seu filho Manuel, há um carro de anos, destacou-me outras facetas de seu pai, onde a honradez, a exaltação e a prática da solidariedade não eram palavras vãs.
Escreveu centenas e centenas de páginas a retratar gentes, animais e paisagens da sua amada terra, enfrentou adversários e sentiu na pele o seu apego aos ideais democratas. Decidido defensor de a justiça igual a todos deve ser dispensada, não hesitou em colocar a feminina figura da República, algemada, na montra da casa onde a sua mulher fazia uns enchidos de truz. A ousadia trouxe-lhe inúmeros dissabores.
Polemista de mérito, o solicitador Abílio sentiu os efeitos da sua caneta, pois nunca se coibiu de enfrentar os poderosos e os empalhados, pejados de bazófia intrometida.
O prazer da conspiração anti-salazarista pagou-o com altos sacrifícios. A PIDE tentava apanhá-lo, a propósito de tudo e de nada. O engenho e os amigos ajudavam-no a escapar-se para a casa que tinha na Candaira.
Numa altura de presente gravidade, o guarda Teodoro, pai da minha amiga Madalena, esquecendo tremores e temores, apressou-se a avisá-lo do iminente cerco da dita casa, onde ele estava escondido, pelos figurões da polícia secreta.
O Sr. Teodoro, além de amigo do seu amigo, também pertencia à confraria do Santo Huberto.
Nesta breve evocação do Sr. Artur Mirandela, propositadamente deixei para o fim o acto definidor e definitivo da cabal demonstração do seu superior carácter. Um carácter de eleição, sublinhe-se!
Este Homem sentiu como poucos o horror da guerra civil espanhola. Sentiu, viu e cheirou a morte, a mesquinhez e a venal traição, a transformação dos homens em raivosos animais.
Varado pela sujidade humana, teve a coragem de destrancar as portas de sua casa para acolher uma menina vítima da malvadez das feras humanas, nessa guerra fraticida.
Ele, descendente de judeus em fuga, acolheu-a, agasalhou-a, mimou-a, educou-a. Dela fez sua filha, tal como filho era o Manuel. A ,menina, felizmente, fugiu ao destino de Anne Frank e de outras, como a judia de Amesterdão.
A menina salvou-se devido a Artur Mirandela não ter ladeado o facto: ela corria o maior dos riscos, o risco de perder a vida. Só por isto, o exemplar cidadão que foi Artur Mirandela merecia ser estudado e enaltecido nas escolas. Por tudo, este ilustre bragançano merecia (merece!) a mais alta das condecorações existentes no País.
PS. Ainda tive a felicidade de chegar à fala com o Sr. Artur Mirandela. Copiosa e divertida a conversa!
Nas eleições de 1958, apesar de todas as trapaças, Humberto Delgado teve 6306 votos no distrito de Bragança e 1713 em Bragança.

in: Figuras notáveis e notórias bragançanas
Texto: Armando Fernandes

5 comentários:

  1. Amigo Henrique:
    Parece-me que conheço este Teodoro de que fala o texto... É o meu pai!
    E é verdade. O meu pai, além de Homem de carácter e honrado, era amigo do seu amigo!

    Beijinhos
    Maria José

    ResponderEliminar
  2. João Soeiro da Costa24 de março de 2017 às 23:43

    Sou um velho e reformado aviador, neto de Artur Leal das Neves mais conhecido por Artur Mirandela e gostei de ler sobre ele. Tenho saudades da minha querida terra, que visito de quando em vez e muitas mais do meu querido avô. Dizem que só se morre duas vezes. Uma quando deixamos de respirar e outra quando deixam de se lembrar de nós. Vejo que o meu avô não morreu graças a vós. Bem hajam!

    Cumprimentos,
    João Soeiro da Costa

    ResponderEliminar
  3. Sou uma alegre e trabalhadora bisneta de Artur Mirandela, filha do também Artur das Neves (de primeiro nome Ernesto), adorei ler sobre este ilustre familiar que tanto nos honra pela sua coragem e ousadia. Desde muito pequeno que o meu filho (ainda no berço) - também Artur das Neves - ouve as minhas leituras do livro Pessoas e Bichos, por Artur Mirandela escrito. Continuaremos por isso a fazer com que se mantenham vivas as recordações, dos Artur desta grande família. Obrigada por nos darem o prazer destas leituras. Feliz 2018! Ana das Neves Fleming

    ResponderEliminar
  4. Pelo o que eu li parece que somos primas. Eu sou sobrinha do Artur Mirandela, será que somos primas? Sou a Maria neves filha de América Mirandela.

    ResponderEliminar
  5. É destes vultos que se faz a História da nossa terra, parabéns pela divulgação.

    ResponderEliminar