quarta-feira, 3 de agosto de 2022

Uma Lenda do Rio Sabor, que o meu avô me contou

É uma felicidade ter avós! E ela é ainda maior quando se passa a infância com eles, a ouvir-lhes contar lendas e histórias. Vem isto a propósito do meu último livro, “Homenagem ao Rio Sabor”, que me trouxe à memória uma Lenda sobre o Rio Sabor que o meu avô me contava na horta de Salgueiros, sentados ao luar a ouvir cair os últimos pingos de água da nora. Era assim:
«Uma jovem, muito formosa, chamada Florbela, pastoreava as ovelhas junto a um moinho onde vivia um rapaz da sua idade, órfão de pai e mãe, chamado Benjamim, que era moleiro. Os pais dele tinham-se afogado numa noite de temporal, quando caíram ao rio, tinha ele dezassete anos. Um belo dia meteu conversa com ela e perguntou-lhe o nome. Ela disse-lhe que se chamava Florbela. Ele sorriu e disse-lhe que só lhe ia chamar “Bela”, por ser tão bonita... Mas ela também lhe perguntou o nome a ele, e ele disse-lhe que se chamava Benjamim. A partir daí passaram a ver-se todos os dias. Conversa puxa conversa, concluíram que tinham nascido no mesmo dia e à mesma hora, num quarto virado a Nascente. E mais, ainda: que ambos eram filhos únicos e os pais tinham os mesmos nomes e morrido afogados nessa noite de temporal. Com tanta coincidência, acabaram por se apaixonar um pelo outro e casaram. Nove meses depois, nasceram dois gémeos tão parecidos que só a mãe os diferenciava. Nesse dia, disseram que os meninos se iam chamar Abel e Joaquim, e assim foi.
Eram duas crianças lindas! Mas no dia em que faziam sete meses, estava a mãe a dar-lhe banho no rio, foram-lhe arrebatados do colo e levados na corrente, como por encanto. Ela, desesperada, correu para o marido e contou-lhe o sucedido. Então ele, a chorar, disse-lhe: ó, mulher, não os voltamos a ver, foi o “Espírito do Rio” que os levou! Eu ouvi uma Lenda assim ao meu pai, quando estávamos no rio a observar peixinhos que subiam na corrente.
A mágoa deles imensa! Mas nessa noite ambos tiveram um sonho. Mas ela, a pedido do Anjo, não contou o seu sonho ao marido. Mas ele contou-lhe o dele: “apareceu-me um Anjo vestido de branco e disse-me: Benjamim, os vossos filhos agora pertencem ao rio, já não são vossos. Mas não estejais tristes, porque eles estão bem.  Diz isto à tua mulher, e pede-lhe para que não chore por eles; senão eles também choram e as suas lágrimas fazem subir as águas do rio e arrastam-vos, a vós e ao moinho, para o mar. Mas não contes este segredo a mais ninguém”.
Florbela ia todos os dias para o local onde os filhos foram levados pela corrente e levava farinha para dar a dois peixinhos que apareciam sempre que ela se abeirava da água. Mas eles não a comiam. O marido, atendendo ao sonho, tinha-a sempre junto dele e conformavam-se um ao outro. Mas uma noite voltou a aparecer a Florbela, em sonho, o Anjo vestido de branco que lhe disse: “Florbela, amanhã, quando o Sol estiver no pino, vai para o local do costume, que os teus filhos vão falar contigo. Mas vai sozinha e não contes este segredo a ninguém, senão eles morrem e não os voltas a ver!”. Ela assim fez. Ao meio dia estava junto da água e apareceram dois peixes, pequeninos, a chamarem por ela: ”mãe Florbela!, mãe Florbela! Somos nós, os teus filhos!” Ela, incrédula, olhou para eles e reconheceu-os. Eram os peixinhos que lá via todos os dias, e à frente dos quais metia a mão na água, com a farinha na concha da mão para eles comerem, mas eles mergulhavam e beliscavam-lhe as costas da mão, como quem pede a bênção, e não a comiam. Nesse instante, num impulso maternal, quis agarrá-los, mas eles disseram-lhe: “não, mãe Florbela! Foi o Anjo vestido de branco que nos mandou vir falar contigo, para te dizermos que te vemos todos os dias... Nós sabemos que já não choras por nós, e nós também não choramos por ti; por isso  não chores mais, senão quebras o nosso Encanto. Para a próxima vez que o Anjo nos mandar vir falar contigo revelamos-te o resto do segredo. Agora vai para junto do nosso pai, mas não lhe contes isto” E, dito isso, desapareceram. Mas ela, enquanto os escutava, via-os como quando lhe desapareceram do colo, e ficou contente por não se terem afogado...
A partir desse dia, Florbela passou a andar alegre. Mas continuava a ir todos os dias a chamar pelos filhos, e eles não apareciam. Um dia não se conteve e começou a chorar. Nesse instante as águas do rio começaram a subir e ela, assustada, disse: “perdoai-me meus filhos, mas tenho tantas saudades vossas!” Dito isso, as águas baixaram e ela ouviu um coro de anjos a cantar e, de seguida, apareceram-lhe os filhos e disseram-lhe: ”Mãe, nós ouvimos-te chamar por nós, mas estamos encantados e ninguém nos pode ver! Por isso, tu não nos vês a nós; que vamos permanecer no Rio até ao dia em que apareçam duas irmãs gémeas, como nós, e tenham nascido num dia igual àquele em que  nós nascemos, e à mesma hora. Uma, tem que se chamar Maria, e a outra Ester, e os seus pais têm que se chamar Benjamim e Florbela. Então, nesse dia, quando estiverem a nadar no rio, à hora em que nasceram, nós aparecemos-lhe e pegamos na mão direita de cada uma delas. Se elas, quando nos virem, não tiverem medo nem gritarem o nosso Encanto termina e vamos casar com elas e ser felizes para sempre. Mas, pelo contrário, se tiverem medo e gritarem, então quebram o nosso “Encanto” e nunca mais ninguém nos volta a ver até que chegue o fim do Mundo! Este é resto do segredo que tínhamos guardado para ti, e o Anjo nos mandou revelar-to hoje. Não contes este segredo a ninguém”.
E, dito isso, desapareceram no Rio com esperança que um dia lhe aparecessem duas irmãs e  não gritassem, quando lhes pegassem nas mãos para as pedirem em casamento e casarem com elas...»
Esta é uma Lenda do Rio Sabor, que o meu avô materno me contou. Mas haverá outras, certamente, sobre o Rio, com outro encanto e beleza. Mas esta é a que eu sei, e aqui a deixo aos vindouros. Na esperança que haja Rio Sabor, e avós para a contarem aos netos, e ela não se perca.

João de Deus Rodrigues
in:jornal.netbila.net

1 comentário:

  1. Impressionante esta lenda sobre o Rio Sabor.
    Esta era uma verdadeira forma de convivência com os nossos avós dos quais tenho saudades das lendas que também me contavam.
    A imaginação, a crença e o poder de descrição e o entusiasmo com que o faziam, tornavam-nas para nós histórias reais.

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