sexta-feira, 10 de julho de 2015

NO MOU TEMPO! (II)

No artigo anterior sobre este título, falamos de alguns tempos que marcavam e marcam as gentes simples do campo e de episódios mais ou menos violentos da Humanidade Contemporânea.
Nas nossas andanças a palmilhar o «País das Castanhas», que é como quem diz a Terra Fria ou Serrana ou de Montanha, encontramos pessoas e factos singulares. A maioria da gente do «País das Castanhas» e do mundo rural não mede o tempo como os que se regem pelo relógio do tempo urbano, fluindo o cronos, na ruralidade, como um rio pachorrento que vai seguindo o seu percurso. E para conseguirmos ler as primeiras páginas do livro da vida das regiões castanícolas temos de mergulhar com estas pessoas na viagem do tempo e percorrer, de revés, cinquenta ou sessenta estações invernosas.
Na Caramenta, concelho de Marvão, o Valentim, grande castanhicultor da região, tomou-nos como do grupo de um «finório» da universidade transmontana que, a coberto dum programa financiado e atapetado de euros, por lá terá andado, com um viveirista, no negócio de vender castanheiros, prometendo pés imunes às doenças e que, afinal, vão morrendo como outros. Para nós, os agricultores são sagrados e enganá-los é uma monstruosidade.
Em Freitas, no Gerês, o solitário Vilarinho parou o velho relógio do tempo e ligou um grande disco que, só depois de muito tempo, quando o relógio do Sol se escondeu, conseguimos desligar.
Mas, na Lapa dos Dinheiros, no coração da Serra da Estrela fomos nós que desligamos o relógio e ficámos encantados por gente muito encantadora e afável, que nos tocou a felicidade como o lendário Ulisses perante as sereias. O encantamento foi um caso sério e a felicidade angelical do João, pastor nonagenário, era tal que, mesmo com o aviso dos raios solares a procurarem aconchego nas longínquas ondas atlânticas, não nos apetecia descolar para mais uma longa viagem de regresso.
Nesse dia, que começou pelas 05H30, paramos o relógio biológico, enganamos o estômago com uma bucha enquanto os resquentados pneus deslizavam pelas nacionais e municipais, recolhendo informação pelos Centros de Dia das aldeias de Arganil, Oliveira do Hospital e Seia. Regressámos à cidade dos arcebispos, pelas 22H00, sem resposta por não sentirmos fadiga, quando no dia-a-dia, depois de almoço, temos que recobrar forças. O tempo deve ter parado.
Em Rossas, concelho de Vieira do Minho, o alfaiate e barbeiro local, que tinha ainda um banco para contar as histórias, foi-nos dizendo que «de tempos a tempos repetem-se os mesmos tempos». Pensamos nós que queria falar os tempos da moda ou os grandes tempos cósmicos e dos seus fenómenos astrais.
Um dos marcos nas nossas aldeias era o tempo dos rapazes irem «às sortes» e se fazerem homens, havendo algumas mães mais protectoras que encomendavam os filhos a Deus e aos Santos e até o cancioneiro popular regista:

«Santos Mártires de Marrocos,
Consolai a triste mãe;
Livrai-lhe o filho das sortes,
Pra não ir servi-lo rei!»


Nos tempos rurais, faziam-se planos de dias melhores e de abundância. «Prá matança» renovava-se a dispensa dos mimos ou das carnes e fumeiro. Vinha mesmo a calhar «no tempo dos grelos», em Fevereiro ou Março, assavam-se umas alheiras ou umas chouriças azedas. Mas, petisco, mesmo, era cozer-se um chouriço azedo e depois pô-lo na grelha a tostar um pouco, servindo-se com grelos e batatas «Rambanas» ou «Ranconceles», comidos ao crepitar da lareira, com a parte alta do escano caído por mesa!... Não haveria melhor lugar no Céu!...
«Pra Maio» ou «Prás Maias» era um tempo incerto, podia haver uns rasões de centeio ou umas arrobas de batatas, mas também, podia a tulha estar limpa e não haver sequer um cibinho de pão para enganar o estômago. Ainda somos do tempo, em que alguns pequenos agricultores ceifavam uma pequena embelga de pão com as espigas mais secas, fazendo uma pequena malha braçal, com os malhos a arrebimbar, quatro contra quatro, que se iam arrouçando, desenhando um círculo na eira, e gemendo um alongado «hã!..». e os outros quatro respondiam um seco e duro «hã!» que terminava quando o malho caía nas espigas. E o trigo lá ia saltando das espigas, colocando-se as benditas mulheres com um bragal a servir de parede para não se perder um grão.
Para amenizar o sufoco cadenciar dos malhos, num suado rebimbar, as canções arrastadas e revigoradoras da árdua faina.
Depois, era recolhido e passado na limpadeira de manibela manual (ainda não havia malhadeiras) e, acto contínuo, seguia para a azenha para se transformar em farinha esperada pela dona da casa e pelos estômagos angustiados.
Por meados de Março ou princípio de Abril, era «o tempo da tosquia» em que as canhonas e as cordeiras despiam o capote com os tosquiadores de Cabanelas. Alguns deles, anestesiados pelo bandulho abarrotado e bem regado pela cabaça, indolentes, inábeis e insensíveis ao sofrimento dos animais que gemiam pelas posições incómodas a que eram submetidas. Revolviam-se-nos as entranhas, porque as ovelhas, para nós, faziam parte da casa e mereciam ser bem tratadas. Quando víamos algum tosquiador fazer deslizar as velozes tesouras deixavam-nos felizes.
Não muito longe aparecia «o tempo das cerejas». Vinham de Mascarenhas as primícias nos raminhos de pauzinhos! Uma magia proibitiva para muitos!
E, «prás segadas», a que sucedia «a acarreja» ou «a acarreta», uma labuta igualmente árdua e esgotante que fechava o ciclo «prás malhadas».
Fechava, não era bem assim, porque «no tempo da arranca» os batatais tinham de ser colhidos. Com a seitoura segava-se a rama e as ganchas punham-nas ao léu, vindo atrás o sacudidor e as apanhadeiras erguiam sacas de batatas que se apertavam bem pelas pontas e empoleiravam-se no carro de bois. Depois, uma chiadeira cantarolada de fartura acompanhava a carrada até à loije.
«No tempo das melancias e dos melões» só a rega do renovo e dos mimos da horta quebravam uma rotina indolente. A seguir, vinha «o tempo dos figos» que se apanhavam ao início da manhã, pela fresquinha, ou ao fim da tarde por que no pino do calor, as figueiras ficavam bravas. Enchia-se a cesta e despejava-se no cesto ou na canastra e os figos mais das pontas e das croas colhiam-se torcendo as galhas com o cambito de marmeleiro ou de lodão.
As figueiras apanhadas, carregavam-se os cestos ou canastras de fita de castanho, bem acolados, um de cada lado da albarda, como se fosse uma carga de lenha ou de ferrenha. Estendiam-se nos sequeiros de palha colmeira ou em cima de lonas para secarem e se guardarem, depois de escaldados e enfarinhados para o tempo de míngua ou de invernia que se iniciava pela sementeira e se prolongava até Maio.
Vinha no calendário, juntinho, «o tempo das uvas», e no final de Setembro preparavam-se os lagares, as dornas e as pipas «prá vindima».
No início de Outubro, «prás sementeiras», cheirava a adubo do dezoito e o nitralusal, embelgas mais embelgas, andava tudo a sementar e a acobilhar o pão e o trigo.
«Prós Santos» pensava-se nas castanhas de Suçães que os meus tios-avós maternos nos faziam chegar uns taleigos. Vendia-se alguma cria ou um reco cebado e «pró Natal» vinha a apanha. Na feira dos 23 (25 era dia de Natal) definia-se o preço do quilo da azeitona que marcava ou não um bom ano agrícola.
Ainda havia outro tempo mais específico e mais curto, consante os mimos do campo e os animais a que se destinava.

Por: Jorge Lage
in:jornal.netbila.net

1 comentário:

  1. Um texto marcado por uma realidade entre dois mundos,o rural e o urbano.
    o tempo rural decorre a um outro ritmo, em vivências, embora duras, carregadas de simbolismos e interacções marcadas pela solidariedade, pela convivência e pela alegria do fruto colhido.
    Um outro mundo, livre das teias contemporâneas que a vida nos põe.

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