sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Trás-os-Montes - Mistérios, maravilhas e curiosidades de Vila Real


Vila Real foi, tal como outros centros urbanos da terra portuguesa, uma vítima recente do descontrolado surto construtivo, muito alicerçado na especulação e na mediocridade, mas, todavia, é visível na cidade o seu desejo de reabilitação. Entretanto, Vila Real esconde em si alguns enigmas.
O princípio da cidade foi a Vila Velha, que deveria agora presidir ao destino administrativo da vasta Terra de Panóias, que, com limite sul no Douro, se estendia para nascente até ao Tua, para além de Murça, bem para além de Alijó. Mas o começo da nova póvoa não foi fácil. A sua criação, tentada primeiro por Afonso III, acaba por ser melhor alicerçada, alguns anos mais tarde, por seu ilho Dinis (forais de 1272 e de 1293). E assim Vila Real nascera – praticamente do nada. 
Implantada num promontório, rispidamente cortado pelos vales dos rios Corgo e Cabril, a localização de Vila Real faz lembrar um pouco o posicionamento da Conímbriga romana, também apertada em bico, mas esta, apesar de tudo, assente em terra menos fragosa e já virada aos ares e ao sonho das terras do litoral.
Vila amuralhada, no seu interior situaram-se a igreja dedicada a S. Dinis, que havia de ser a sede paroquial, e ainda, acoplada a ela, a capela de S. Brás, esta um pouco mais recente que a primeira, com a igreja mãe a revelar ainda memórias da época românica.
Templos, ambos, que nos dias de hoje – e desde 1841 – se encontram integrados no cemitério municipal e participam ambos da decadência que tomou posse da Vila Velha, agora quase integralmente despovoada.
Apertada entre as duas ravinas, a do Cabril a poente e a do Corgo, a nascente, a vila, a cidade teve que tomar o caminho do norte para realizar o seu desejo de expansão. Desmontada, e feita cómoda pedreira de pedra já lavrada, a muralha, o aro da Vila Velha tem sido objeto de pesquisa arqueológica e veio a beneficiar da presença do novel Museu (da Vila Velha – 2008).
À expansão urbana verificada logo no século XV (Convento de S. Domingos, desde os anos de 1420), veio somar-se o grande surto expansionista, já oitocentista, que se manifesta pela existência dos edifícios contemporâneos, o da actual Câmara Municipal (1817) e o do antigo Governo Civil. A rotura, ao modo de boulevard, da Avenida Carvalho de Araújo (1916), que desfez o tradicional terreiro do Campo do Tabolado, veio a ter como contraponto a expansão da cidade para a margem esquerda do Corgo (Ponte Metálica, em 1904; Estação de Caminho de Ferro, 1906).
Já os passados anos 80 vieram semear a anarquia urbana em Vila Real, anarquia que nos dois últimos decénios se tem tentado camuflar ou compensar através da execução de edifícios públicos de prestígio, como os bem conseguidos museus de Arqueologia e Numismática (reinterpretação de 1997) e da Vila Velha (2008), o Conservatório (2004), e, já mais «modestos», a Biblioteca (2006) e o menorizado Teatro (2004), um edifício sem «rosto», a deixar-se esmagar e a servir de «pau de cabeleira» ao impante novo-rico vizinho, o centro comercial.
Para além disto, diante das mais marcantes edificações antigas, torna-se também quase inalienável a sensação de falta de autenticidade presente em alguns dos mais emblemáticos edifícios da cidade, como a Câmara Municipal (acrescida, em prótese, já no século XX, com a escadaria do Convento de S. Francisco), a retocada Sé, o alterado Palácio dos Marqueses de Vila Real, a enganosa casa dita de Diogo Cão, o falsificado Pelourinho. Isto, quando não evocar o abandono de algumas peças de arquitetura, menores mas muito significativas, como as duas esventradas residências góticas, fronteiras à Casa dos Brocas.
Moléstias que, porém, não desfazem, por exemplo, numa admirável Capela Nova… Nem nos enigmas e curiosidades de que a cidade não é nada avara e dos quais, agora, enunciamos alguns…
O cão de S. Domingos
Com a fachada canonicamente virada a poente, a exibir os três panos verticais de muro que correspondem às suas três naves, com os dois gigantes a enquadrarem o pano central em que se rompe o portal em arco quebrado sobreposto por um óculo, a quatrocentista igreja do convento dominicano de Vila Real serve hoje de casa episcopal, de Sé. A moldura do óculo enquadra um vitral de desenho complexo, que só de dentro do templo, através da luz do exterior, coada pelo próprio vitral, será possível entender. Na parte superior do pano que enquadra o portal, dois nichos terminados por frontão triangular, clássico, albergam os dois fundadores das ordens mendicantes: Francisco de Assis, à esquerda, Domingos de Gusmão, à direita. Delimitando o adro da igreja, a norte, um muro rasgado por dois portões quase contínuos, que davam acesso às áreas de mais restrita vivência monástica.
Encimando o portal principal, um animal, um cão, estendido, segura nos dentes um objeto longo e estreito, com uma aparência de flauta. Mas não, não se trata de qualquer canídeo amestrado, superdotado, capaz de extrair e espalhar sons, a partir do manuseamento de um instrumento de sopro. Aquele cão, ali, simboliza sim o patrono da Ordem Dominicana. Espanhol de Calahorra, onde nasce em 1170, prenhada dele, a mãe de Domingos visionara o futuro do próximo futuro rebento, com uma estrela vermelha na testa e, a seus pés, um cão malhado, de branco e preto (assim Domingos haveria de ver o mundo…), segurando nos dentes uma tocha acesa. O ilho da dama prenhada estaria, portanto, destinado a defender a fé dos ataques dos heréticos.
E assim haveria de ser, assim haveriam os dominicanos de sustentar impiedosa e impenitentemente a luta contra os inimigos da fé. O seu papel no brutal desempenho que viria a ter a Inquisição, o Santo Ofício, foi crucial – inúmeras iriam ser as fogueiras de esturrar hereges, ateadas pelos membros da Ordem Dominicana ao longo dos séculos… Quanto ao canídeo, o leitor visitante de Vila Real há de reparar como ele figura no nicho da fachada, que antes referimos, estirado aos pés do fundador da Ordem…
Os vitrais da sé
Acabámos de falar no óculo aberto no alto da fachada principal da igreja de S. Domingos, na rosácea, no vitral colorido. Do interior do templo o leitor turista visitante há de ver passar a luz através de outros vidros em que se desenham formas e cores. Por exemplo através de uns retângulos alongados, postos na vertical.
Todas estas, formas e cores, têm o seu significado. O mais curioso dos visitantes, para procurar entendê-lo, poderá recorrer a um livrinho, a um guia de leitura de «Os Vitrais da Sé de Vila Real» (2005).
Por exemplo: podemos adiantar que o que está grafado no óculo circular da fachada é: «Eu - sou – o Al – fa e o O – meg – a O – pri – nci – pio – e o – im». E mais não dizemos. A não ser que os modernos e notáveis vitrais da Sé de Vila Real estão datados de 2003 e que o seu autor foi o pintor João Vieira (1934-2009), um artista bem conhecido da nossa arte da 2ª metade do século XX.
Adão e Eva
Adão e Eva. Só duvidosamente se tratará do Adão e da Eva bíblicos. Mas há que dar um nome de gente a este par de criaturas desnudadas que figuram como timbre ao brasão dos Teixeira de Macedo, sobrepujando o elmo do escudo. Nem claro é se se trata de um casal ortodoxo (macho e fêmea), se – como parece poderem aqui figurar – de dois homens machos. Exibem-se ali, discretos embora, mesmo junto da Capela Nova, ao nível do segundo piso de uma casa brasonada. Mistério ou enigma, seguramente, pelo menos para a presente testemunha, que não tem sabedoria que baste que lhe permita decifrá-lo.
Senhora de Almodena
Pergunta-se a gente que vem fazer a estes arredores da cidade de Vila Real a famosíssima padroeira da cidade de Madrid, capital de Castela e de Espanha, a Senhora, Almudena de seu nome original. Deixa o paciente turista a cidade de Vila Real por poente, bordejando o edifício do antigo Governo Civil, fiado nos prometidos, mas mais que ilusórios, 15 minutos pedestres de caminho.
Passa-se a Rotunda do Chinês (Shop 7), descortinam-se finalmente as barracas dos oleiros de barro preto de Bisalhães (perguntada pelos oleiros, a prestabilíssima adolescente, desentendida do termo meio erudito utilizado pelo peregrino, acaba finalmente por apontar, logo ali, as improvisadas tendas. E, sem sombra de malícia, explica-se pelo seu desconcerto: «É que a minha mãe chama-lhes paneleiros»). Visitadas as tendas dos fazedores de panelas, tachos e outros artefactos pretos de fumo e utilitários, inteira-se o visitante de que, «figuras» de barro, quem as fazia era a «canalha»; que, com a proibição do trabalho infantil, extinguiram-se (ou quase) os modeladores do barro em forma de bichos e de gente. Passado então o duplo cruzeiro do Senhor do Bom Caminho e da Senhora da Boa Ora (sic.), bordejada a modestíssima Rua Nova de Almodena, lá se chega ao sítio da capela.
No terreiro, entretanto refeito, o templo, sabe-se, vem já de meados de Oitocentos. Junto a ele, um imponente chafariz de espaldar regista uma quadra: «O límpido cristal desta água pura / Que a Virgem fez brotar desta colina / As flores vivifica da campina / O corpo refrigera, as dores cura» - é a Fonte dos Milagres. Encima o espaldar a Sr.ª da Saúde. Capitão de couraças no Reino da Flandres, região e teatro de guerra do império hispano-castelhano, D. Pedro Taveira Souto Maior, mandou aqui erguer, no século XVII, na época do Portugal filipino, decerto por livração de golpe de arma branca ou de arcabuzada, se não de queda de cavalo, a capela dedicada à Sr.ª de Almudena, que, aqui, em Vila Real, passou a grafar-se com um o. Demolido o templozinho primitivo, a invocação manteve-se, apesar de, decerto, ter passado a ser patrioticamente olhada de soslaio depois de 1640.
Simão, o voador
Pedro era um judeu que pescava na Palestina, em Cafarnaúm, no Mar da Galileia, e chamava-se, sim, Simão. Este Simão tinha poderes mágicos, de taumaturgo. Lembre-se, a este propósito, o leitor, como este Simão conseguiu ressuscitar um arenque morto, já deitado de conserva em salmoura, obrigando-o a nadar num tanque de água doce. Pois um dia, em Roma, pôs-se o nosso Simão/Pedro, perante um grupo de sábios, a disputar artes de magia com outro Simão (este, Simão, o Mago). 
Pois bem, mago de fama, o Mago dispõe- se a demonstrar a sua superioridade na matéria. Sobe, no Capitólio, a uma alta torre de madeira e, lançando-se no espaço, põe-se tranquilamente a voar. Perante isto, porém, Simão/Pedro, arguto, não se deixa ludibriar. Começa a rezar, e com suas rezas faz com que o Mago se estatele rapidamente no chão.
É que Simão, o Mago, contava, para exercer as suas artes, com a ativa cumplicidade dos Diabos. Para fazê-lo voar, por exemplo, os seus aliados colocavam-lhe invisíveis asas nas pernas e nos braços. Porém, diante da força das rezas de Pedro o poder dos Diabos revelou-se completamente ineficaz. Diabos que tiverem então que – literalmente – deixar cair o seu protegido. Pedro e Simão, o Mago voador, mais os sábios juízes, estão representados no interior da Capela Nova.
Figuram num painel de azulejos setecentistas, num silhar, do lado esquerdo de quem entra. O Mago ali está, serenamente voando, perante a estupefação de Pedro.
O santuário de panóias
É, decerto, um dos sítios arqueológicos mais misteriosos de Portugal. Fica também junto a Vila Real, passando por Mateus. Um campo aberto de volumosas fragas onde foram rasgados entalhes, aplanadas lombas, abertas caixas, escavados cilindros, traçados degraus, definem um misterioso santuário cuja área se estende para além do campo circundado.
De origem pré-romana, há de, em tempo de Roma, ter integrado um vasto espaço marcado pela Chaves / Aquae Flaviae e, ao sul, pela zona mineira de Três Minas e de Jales. Dedicado quer a deuses locais, quer a cultos orientais (de ali, onde nasceu também o Cristianismo), entre os quais Serápis se destaca, beneficiou também da fé e dos dinheiros e das obras de piedoso senador romano, de seu nome Calpúrnio Rufino…
S. Pedro e a orelha de Malco
De jornada até Vila Marim, vamos com o fito de descobrir as recuperadas pinturas a fresco existentes na Igreja Paroquial. Pertencem, creio, aos séculos XV-XVI. A degradação que ainda sofreram, já posterior à sua recuperação, ocultou em parte a ilustração dos milagres devidos ao santo S. Brás. O Menino de ossinho a sair-lhe da garganta, a cabeça do bacorinho assadinha no forno e trazida numa bandeja pela pobre velha, ainda lá se vislumbram. 
De S. Brás mais não digo, que o leitor mais paciente há de ter-me lido a croniqueta acerca dos frescos alentejanos na última EPICUR; assim, que nada mais acrescento em louvor de Brás. Falo agora de S. Pedro, ainda que não necessariamente em sua louvação. É que, aqui na igrejinha de Vila Marim, em painel também da face interior da parede norte do templo, sobreposta ao fresco de S. Brás, figura a cena da prisão de Jesus no Horto das Oliveiras. Na composição figura um Judas ruivo (no cumprimento do recado que lhe rendeu os 30 dinheiros), soldados romanos, um judeu de nariz adunco.
Já em posição de relevo, empunhando uma alentada cimitarra, um espadão, figura Pedro. No chão, de joelhos, com a mão direita, Malco, servo do Sumo Sacerdote Caifás, ampara o sítio onde estivera a sua orelha, que Pedro lhe acaba de cortar.
O observatório de S. Cibrão
Poderia ter sido dedicado a S. Cipriano (Cibrão é Cipriano, por via popular), o leitor sabe, o autor livro das fórmulas mágicas de desencantar tesouros ocultos, aviar feitiçarias, amestrar Diabos. Do alto desta marquise descortina-se todo o Universo, numa roda de 360 graus. Fica lá para os lados das terras onde imperam o S. Marcos mártir e o deus Serápis. Em S. Cibrão.
O grito
A Capela Nova, Igreja de S. Paulo, Igreja dos Clérigos, Igreja de S. Pedro Novo, assim parece poder (heteronimicamente…) designar-se o notável templo vila-realense que abre em duas (a Rua das Pedrinhas / Rua 31 de Janeiro e a Rua Direita / Rua Dr. Roque da Silveira) a Rua Central / Rua dos Combatentes da Grande Guerra. E, a propósito desta dúplice toponímia urbana, não passe em claro o vaticínio do velho poeta novecentista brasileiro Manuel Bandeira que, num dos seus poemas sobre a sua cidade natal, o Recife, tão justamente escrevia, mais ou menos assim, ao evocar a Rua do Sol (creio que era esta): Rua do Sol – tenho medo que hoje se chame Rua do Dr. Fulano de Tal… Atribuído que é o projeto do templo ao toscano Nicolau Nasoni (1691-1773), pintor e arquiteto que veio a estabelecer-se na cidade do Porto, por volta de 1725, e que deixou uma forte marca da sua personalidade artística no Norte de Portugal, ou de um qualquer seu discípulo, pertença a sua autoria a quem-quer que seja, o certo é que estamos perante uma das melhores peças histórico-arquitetónicas existentes em Vila Real.
Aqui, neste apontamento, queremos apenas chamar a atenção do benévolo leitor para o amplo óculo que se sobrepõe ao portal e à sua extraordinária expressividade. A remeter-nos para o quadro do pintor expressionista norueguês Edvard Munch (1863-1944), O Grito.
S. Marcos, o mártir de Mateus
O palácio de Mateus, nos arredores de Vila Real, é seguramente uma das peças arquitetónicas barrocas mais significativas de Portugal. O contributo de Nicolau Nasoni, que aí terá trabalhado entre 1739 e 1743, parece ter sido decisivo para a sua traça. Como curiosidade, porém, registe-se aqui a existência, na capela solarenga, do corpo de um certo S. Marcos, mártir ignoto, adquirido em 1704, em Roma (ainda que só o corpo, que o mesmo já foi fornecido sem cabeça) por Diogo Álvares Mourão, o Santo Arcediago, ilho do 3º morgado de Mateus. O mesmo Diogo que, ainda de Roma, trouxe uma lauta colecção de milagrosas relíquias, de bentos Agnus Dei, destinados a proteger a mansão de Mateus e os seus habitantes.

Este texto integra a edição nº 12 da Revista Epicur.

Texto e fotos: Fernando-António Almeida
in:cafeportugal.net

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