quarta-feira, 28 de outubro de 2015

O Padre da Pena

Por:Maria Hercília Agarez


A língua portuguesa é muito traiçoeira…

Quando Zeferino apareceu na aldeia de S. Miguel da Pena, vinte anos após a ter trocado pelas roças brasileiras, houve quem não o reconhecesse, no seu fato e sapatos claros, no tom moreno da pele outrora pálida, nos trejeitos amaneirados. Não escaparam a ninguém dois dentes de ouro, pequeno indício de uma riqueza suada.
Tinha vindo passar um mês de férias e, com uma cajadada, matar vários coelhos: visitar a família sobrevivente, rever o torrão natal nunca esquecido, espairecer do desgosto causado pela morte da mulher ocorrida havia mais de um ano e de que ainda se não refizera e, quem sabe, arranjar para ela substituta disposta a acompanhá-lo para as longínquas terras do samba e dos coqueiros.
Foi recebido em festa. Os reais amealhados não lhe tinham subido à cabeça. Satisfez a natural curiosidade dos conterrâneos, contando com pormenor o rol de peripécias por que passara até encontrar a estabilidade económica, obtida com muito trabalho forçado ao serviço de um “coronel” déspota que tratava como escravos os empregados do seu imenso cafezal.
Agora era patrão de si próprio. Abrira um pequeno comércio ligado à venda de frutas e hortaliças, numa cidade nordestina, cuja clientela era, em grande parte, constituída por compatriotas, conquistados pela simpatia do atendimento e pela qualidade dos produtos.
Não estranhou a simplicidade da casa paterna, mantida rigorosamente na mesma. Só sentiu falta de uma casa de banho, acostumado que estava à sua higiene diária, hábito considerado esquisito desperdício por quem se limitava a lavar a cara e os pés, esses com mais esmero aos domingos, quando os trapos puídos usados na lavoura davam lugar à roupa de ver a Deus. Exemplo paradigmático da fobia à água daquelas gentes era o caso da Ti Piedade. Casara aos vinte anos, pela Senhora da Saúde e dizia, já entradota: – Água neste corpo, só dos joelhos para baixo e do pescoço para cima. Banho inteiro, chegou-me o que dei no dia que disse o sim ao meu Honório, que Deus o tenha em descanso.
Passados uns dias da chegada, feitas as visitas a vivos e mortos, mitigadas as saudades do presunto, das alheiras e dos salpicões, começou o brasileiro a deitar olho discreto às poucas mulheres disponíveis e em idade de procriar. Embora se considerasse um bom partido, com os seus quarenta anos ainda frescos e com pecúlio encorajador, não procurava nenhuma estampa. Bastava-lhe, para companheira, mulher honesta e trabalhadeira. Se lhe desse um filho, tanto melhor. Um homem sozinho é num homem aleijado a precisar de quem lhe deita a mão.
A escolha acabou por recair na Rita Pitrês, sua prima em terceiro grau, zeladora da igreja, catequista, ensaiadora do rancho folclórico e exímia bordadeira de enxovais para meninas da vila, sua única fonte de rendimento.
Não se sabia bem por que razões não tinha arranjado aconchego.
A verdade é que a beleza não parou ao passar por ela. Nem com grossa camada de pó de arroz conseguia disfarçar as bexigas, ingrata recordação de infância. Nas costas, chamavam-lhe Rita Ratada e caçoavam dela por lhe não terem conhecido nenhum derriço.
Apesar de ocupada o dia inteiro com os seus afazeres, a solidão doía-lhe como ferida aberta. Revoltava-se todos os dias de manhã ao ver a sua imagem reflectida no espelho, enquanto enrolava a trança e fazia o poupo. Então, desabafava com a imagem da santa sua homónima de quem era beatamente devota. Já que na igreja não havia lugar para Ela, adquirira uma num santeiro de Braga num domingo da festa do Bom Jesus. Pusera-a no quarto, em cima de uma peanha dourada e todos os dias renovava as flores com que comprava a sua protecção.
Quando Zeferino, após abordagens vagas e temerosas, formalizou o pedido de casamento, pediu-lhe um dia de espera pela resposta.
O Padre Sebastião aconselhou-a a aceitar a proposta. Sabia-a, com a experiência de muitos anos de confesso, naquela idade perigosa em que as mulheres, de instintos recalcados, são capazes de abrir as pernas à revelia das normas da Santa Madre Igreja…
Quanto à santa, também consultada, pareceu sorrir-lhe, satisfeita com o milagre que a si própria atribuía.
O enxoval estava feito. Bastava pô-lo a arejar e passá-lo por água para lhe sair aquele cheiro a cânfora entranhado durante anos. Família chegada só o irmão, a cunhada e os sobrinhos a quem pouca falta fazia.
A santa podia acompanhá-la. Não encontrou, portanto, razões para continuar presa àquela terrinha onde poucos a acarinhavam, alheios aos serviços que prestava benevolamente.
A viagem de barco intimidava-a. Ouvia falar de enjoos desesperantes, dos intermináveis dias sem terra à vista, mas confiava na sua protectora e no poder do Anjo da Guarda.
Apressaram-se os papéis, os banhos foram lidos, como de costume, e, uma semana antes da data marcada para a partida, o velho padre abençoou aquela união.
Rita escolheu para aquele dia um fato de saia e casaco bege, não prescindindo do ramo de flor de laranjeira a anunciar uma virgindade sem mérito de que ninguém duvidava.
Não quis vender a casa, pequena mas típica da região, de pedra à vista e com varanda de madeira onde se acotovelavam vasos de sardinheiras e de malvas. Alugou-a ao Bento Moleiro com a condição de a estimar e de a deixar devoluta se um dia voltasse.
– A vida dá tantas voltas como as velas do teu moinho em dia de vendaval. A gente nunca sabe o dia de amanhã. Vale mais prevenir que remediar. Estamos conversados?
Esta pressagiosa dúvida constituía nota dissonante numa sinfonia que a recém-casada parecia antever tão patética como a de Tchaikovsky.
Como diz o povo, “quando a esmola é grande, o pobre desconfia”.
Aquele feitio pessimista não lhe dava tréguas, nem lhe permitia usufruir em pleno os pequenos e raros prazeres que a vida lhe concedera.
Seria desta vez que iria provar o sabor da felicidade?
Chegado o dia da despedida, Rita, nem que o quisesse, não conseguiria traduzir a amálgama de sentimentos contraditórios que se digladiavam no seu íntimo. A alegria era melancólica, a esperança eivada de maus pressentimentos, o alvoroço mesclado de apreensão.
Passado o tormento da viagem, começou a tentativa de adaptação àquele espaço onde cabiam todas as aldeias do seu país. Com força de vontade e a ajuda compreensiva do marido, lá se foi habituando ao clima, aos costumes, ao modo de falar, ao sabor dos frutos tropicais, tão diferente do das ameixas e dos figos do seu quintal.
Do trabalho não tinha razão de queixa. Em casa, a mucama preta encarregava-se de todo o serviço e cozinhava tão bem aquela carne com feijão e outros petiscos que logo esqueceu o bacalhau com batatas, o arroz malandro com pataniscas, as sardinhas assadas com pimentos e outros sabores bem portugueses.
Podia, assim, a mulher do Zeferino dar-lhe uma mãozinha no negócio, ela que tinha tino para contas e bons modos para os fregueses.
Ao serão, matava saudades dos seus bordados sobre os quais desabou, num abrir e fechar de olhos, uma chusma de clientes.
Chegou a engravidar, mas dois abortos sucessivos deitaram por terra a esperança de dar um filho ao homem a quem, com o tempo, acabara por afeiçoar-se e que não merecia aquele fim.
Um dia partiu bem cedo para se abastecer de fruta numa fazenda a duzentos quilómetros de casa. Deve ter adormecido ao volante e despenhou-se numa ribanceira donde o arrancaram, a custo, sem sinal de vida.
Perdeu, com este trágico acidente, todo o sentido a permanência de Rita naquele fim do mundo. Escreveu ao irmão, anunciando-lhe o regresso e pedindo-lhe para dele dar notícia ao Bento Moleiro que dispunha de um mês para entregar a casa, conforme combinado.
– Olhe que a senhora sua irmã parece que adivinha as coisas. Herdou esse poder da sua santa mãezinha que Deus haja. Foi ela que me disse, ao ver a minha Florbela branca como cera e delgada como cana de milho, não durar ela o tempo de ir à escola. E assim sucedeu. Ele há cousas…
Chegou Rita à Pena no tempo das cerejas maduras, reluzentes como os olhitos dos melros ougados a baterem as patas de contentes:
“Do cerejo ao castanho, bem me amanho; do castanho ao cerejo mal me vejo”.
Vinha carregada de um luto compensado por uma confortável situação financeira, providencial para o futuro do sobrinho mais novo, seu afilhado.
Desde a primeira classe revelara o Felisberto uma evidente aptidão para os estudos. Inteligente e aplicado, augurava-lhe a mestra futuro diferente do das outras crianças. Ficar o rapaz a embrutecer agarrado à sachola seria um desperdício. Várias vezes tentou convencer os pais a deixá-lo ir em frente, nem que para isso tivessem de vender um lameiro, herança pobre, mas ciosamente conservada.
Com acanhamento humilde, sondou Tiago a irmã sobre a possibilidade de dar uma ajuda na educação do rapaz, de modo a mandá-lo para o liceu da cidade e depois, podendo, para a universidade. Sabia que estava a sonhar alto, mas as palavras da professora não lhe saíam dos ouvidos. Ter um filho doutor, que maior gosto pode um pai humilde pedir à providência?
Rita ouviu calada e pensou com os seus botões: “Esmola a Mateus, primeiro aos meus.” Mas tinha uma condição: pagaria os estudos ao afilhado, se ele quisesse ser padre. Quantas vocações não nasceram assim, aos dez anos, por obra e graça de madrinhas solteironas ou de devotas viúvas sem prole?
O miúdo aceitou a vontade da madrinha, depois de ter ouvido os argumentos dos pais que não cabiam em si de contentes. Ser doutor ou padre é assim tão diferente?
Se, por um lado, a debilidade física o impedia de realizar trabalhos agrícolas, por outro, não lhe desagradava o ritual litúrgico em que colaborava, por sua livre vontade, como menino do coro. Sabia de cor toda a missa em latim e fazia uma perninha com direito a moeda de cinco coroas em cerimónias fúnebres ou festivas.
Quantas vezes não ouviu da boca do representante de Cristo naqueles confins: – Ó rapaz, tu tens mesmo jeito para isto. Assim os teus pais tivessem posses para te mandarem para o seminário…Eu já vou nos sessenta. Mais dez ou doze ainda me aguento, se for essa a vontade de Deus. Se fosses tu a render-me…
Perante isto, não tardou o anteprojecto clerical a esperar pelo fim da missa de domingo para lhe dar a grande novidade.
– Senhor Padre Sebastião, adivinhe lá o que tenho para lhe contar!
O bom do prior foi tão certeiro como se atirasse às perdizes, único desvio da prática sacerdotal que lhe conheciam. Sentiu-se na obrigação de estimular o ganapo, enaltecendo as compensações da entrega ao Senhor e lembrando-lhe o escrito de S. Mateus: “Muitos são os chamados, poucos os escolhidos.”
No dia um de Outubro de 1940, palmilhadas quase dez léguas sobre o orvalho fofo da madrugada, foi a “encomenda” entregue no destino.
Levava na mão um saquitel com o indispensável para os primeiros dias. O resto seguiria com o recoveiro que só ia à “vila” nos dias de mercado, duas vezes por semana – uma maleta com o humilde enxoval, uns frascos de mel da tia Jacinta, remédio santo para tosses e dores de garganta, e uns salpicões do lombo para horas de desconsolo.
Durante os anos passados no seminário, nunca Felisberto deu azo à mais pequena repreensão. Contrariamente a alguns colegas, jamais se desviou um milímetro da rígida disciplina imposta pelos superiores, nem pactuou com partidas e malandrices próprias da idade.
Embora tivesse sido testemunha calada de prevaricações mais ou menos inocentes, nunca denunciou ninguém, mas nem assim escapou à alcunha de “santinho da Pena”, inspirada pelo seu comportamento.
Durante os recreios, enquanto os colegas jogavam à bola, refugiavase na biblioteca a empanzinar-se de hagiografias. Franzino e medroso, inábil tanto na defesa como no ataque em jogos de futebol, poupava as canelas recorrendo àquele subterfúgio da leitura para a qual, no fundo, sentia apetência.
Depressa passou aquele período de formação religiosa. Versado em todas as matérias aprendidas, “barra” em línguas vivas e mortas, sabendo de cor todas as parábolas dos evangelhos, foi Felisberto ordenado, em cerimónia repleta de emoção simbólica, na Sé Catedral. Lá estavam os pais e os irmãos, a benfeitora e, claro, o Padre Sebastião, aliviado por ver, enfim, chegada a hora de passar o testemunho. Estava velho e cansado.
As caminhadas a pé até ao cemitério deixavam-no exausto e chegava a adormecer no confessionário, embalado pelo sussurro inaudível das beatas a desfiar o rosário de pecadilhos que conhecia de cor e salteados.
O novo sacerdote foi recebido em festa em S. Miguel da Pena. Os habitantes da aldeia recôndita não ficaram indiferentes àquela compostura respeitável de coroa, sotaina e cabeção e foi com orgulho que, ordeiramente, o foram felicitar.
Na primeira missa que rezou, como sempre às dez horas de domingo, a velha igreja medieval estava ainda mais cheia do que o costume.
À devoção, acrescentava-se a curiosidade. Os sermões do bom velho tinham-se transformado, havia muito, em lengalengas engroladas e sedativas. Era preciso sangue novo, capaz de galvanizar uma assembleia amorfa e conduzida ao santo sacrifício mais por rotina do que por apelo espiritual.
As expectativas não saíram frustradas. Na véspera, depois da ceia, encafuou-se o pastor das almas da Pena no quarto outrora ocupado pela irmã, entretanto casada e a viver em Sapiões. Era um compartimento amplo, mobilado de novo com cama francesa, guarda-fatos, secretária e estante, tudo comprado por bom preço à família Botelho quando esta vendeu a moradia para ir viver para o Porto.
Aí preparou o sermão com o desvelo de actor em princípio de carreira. Começou por escrevê-lo, metodicamente, segundo tópicos preestabelecidos, de acordo com o conteúdo do evangelho. Depois levantou-se e leu-o até o decorar, dirigindo-se às paredes, silenciosas espectadoras de tão empolgante monólogo. Ensaiou gestos e inflexões de voz, contou o tempo pelo Ómega (presente da ordenação) e só deu sossego à mente cansada quando lhe pareceu ter a lição sabida. Aliás, teria mesmo de deitar-se, que a torcida da candeia começava a apagar-se por falta de petróleo.
Às oito horas da manhã seguinte estava na sacristia, disposto a ouvir em confissão quantos o desejassem. Foram poucos os interessados.
Com o Padre Sebastião estavam à vontade e não lhe temiam as penitências.
Agora as coisas mudavam de figura. Era preciso dar tempo ao tempo para ver se este era de confiança. Aliás, nada de muito grave justificava pedido de perdão. Tirante as zangas de comadres, delito mais frequente e menos grave, lá atravessavam os buracos do confessionário umas facaditas no matrimónio, uns marcos desviados do lugar, uns pensamentos libidinosos de mulherio sem macho, umas disputas por causa das águas de rega e pouco mais.
Como ficou dito, estava como um ovo a igreja naquele domingo de estreia do novo “actor”. Pela primeira vez o povo o via paramentado.
As raparigas novas abafavam risinhos maliciosos ao vê-lo aparecer, esgrouviado, de sobrepeliz pouco abaixo dos joelhos.
– Deste espantalho não vão os nossos conversados ter ciúmes, murmurou a Rufina Parreca ao ouvido da Teresa Fazminga, ambas pouco dadas a rezas.
Estava a chegar ao ponto alto a celebração. Tentando disfarçar o nervosismo, começou o padre a edificante prática. O evangelho versava o milagre que Cristo fez nas Bodas de Caná ao transformar a água em vinho a pedido de sua mãe. Fê-lo com tal clareza e realismo que os frequentadores da tasca do Zé das Iscas nem esperaram pelo ite, missa est para aí irem matar a sede.
Diga-se que a actividade sacerdotal do Padre Felisberto foi semelhante à dos seus antecessores. De relevante, apenas haverá a registar pequenos episódios tornados motivos de galhofa e que se prendiam com a sua ingenuidade e tendência para o alheamento. De todos, um ficou célebre e atravessou, até hoje, várias gerações.
Num dia em que reunia com o grupo de catequistas encarregue de preparar as crianças para a primeira comunhão e de que fazia parte a filha mais velha do António Grilo, virou-se para elas em tom ameaçador e com cara de poucos amigos:
– Andam para aí uns zunzuns que não me agradam nada. O vosso comportamento tem de ser irrepreensível. Lembrai-vos que sois o exemplo desses inocentes a quem ensinais a doutrina. Se me vierem contar alguma desavergonhice vossa, garanto-vos que tomarei medidas drásticas. Já cortei a Grila e corto o resto, se for preciso.

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