segunda-feira, 6 de setembro de 2021

Bragança em 1721 - Conclusão

Bragança, por 1721, revela já uma forte identidade, expressa através de um conjunto de elementos, símbolos e valores que a procuram individualizar a nível nacional.
Individualidade assegurada, em primeiro lugar, pelo caráter excecional das origens míticas de um burgo que também é, desde muito cedo, cristianizado, procurando, deste modo, Cardoso Borges, com a identificação de um passado remoto, garantir o prestígio da cidade.
Mas também, enquanto praça de armas, orgulhosa do seu castelo medieval, a “vila” ou “cidadela”, um sítio que, pela sua antiguidade, funções e segregação física imposta pelas suas muralhas, acabou por desempenhar um papel muito importante no imaginário dos bragançanos e transmitir à cidade um sentido histórico do seu passado.
Uma Bragança, em segundo lugar, profundamente católica, ou não tivesse sido evangelizada pelo próprio apóstolo Santiago. Bragança, em 1721-1724, é uma cidade que, apesar de ter apenas 1 000 vizinhos – lembra Borges –, soma 22 igrejas, capelas e altares dedicados à Maria Santíssima – “no culto divino é que mais se apura” –, o que, paradoxalmente, contrasta fortemente com a perseguição tenaz que o Santo Ofício então desenvolve a centenas dos seus habitantes.
Recorde-se que, no ano em que Cardoso Borges iniciou as suas Memórias de Bragança, um ilustre bragançano, o cientista Jacob de Castro Sarmento, viu-se obrigado a fugir para
Inglaterra, a fim de evitar a perseguição pela Inquisição.
Uma sociedade religiosa, material e simbolicamente traduzida pelas igrejas, capelas, altares, ermidas e conventos, marcos impressivos da fé, que povoam e sacralizam o espaço urbano, determinantes até na organização hierárquica do espaço público e das suas múltiplas funcionalidades; pelas confrarias e irmandades que afirmam a solidariedade entre os homens e a comunhão entre as almas; religiosidade ainda bem expressa na piedade e devoção com que todos participam nas procissões e outras festividades estabelecidas ou pautadas pelo calendário da Igreja – independentemente da obrigatoriedade que ao povo é imposta quanto à sua assistência e participação nas cerimónias mais importantes – e afervorada pelos exemplos de vida que emanavam de fontes de virtude e piedade, como os mosteiros de São Francisco e da Companhia de Jesus, ou os conventos das beneditinas e clarissas.
Uma Bragança, em terceiro lugar, que revela uma vida cultural própria, única no contexto da província trasmontana, graças ao Colégio dos Jesuítas, ao seu magistério e à sua biblioteca que somava largas centenas de obras e que serviu de campo de estudo para José Cardoso Borges.
Uma Bragança, em quarto lugar, de gente aristocrática, de uma nobreza, como a cidade, de origens medievais, que legitima e engrandece a Casa Real, a Casa de Bragança e logicamente todos aqueles que pertencem a essa ordem ou estrato social … incluindo Cardoso Borges.
Uma sociedade, com efeito, inspirada pelos valores aristocráticos de uma elite tradicional, integrada fundamentalmente por uma nobreza de província que detém zelosamente a governação do município, e transforma Bragança em corte de Trás-os-Montes, isto é, num corpo de relações sociais hierarquizadas, de procedimentos e comportamentos rígidos e uniformes, obedecendo à lógica de uma verdadeira corte real, de modo a esbater tensões, estabelecer o relacionamento entre os diferentes grupos sociais, e assim reforçar o seu prestígio e superioridade.
Embora retratando um mundo profundamente aristocrático e religioso, as Memórias de Bragança assumem-se, fundamentalmente, como uma descrição em que a tradição e a razão parecem conviver harmoniosamente. Há lendas e mitos a explicar as origens do burgo, a sua cristianização e a genealogia das famílias nobres, à semelhança do que acontece com a historiografia eclesiástica, e numerosas memórias e relações setecentistas. E há, por outro lado, uma descrição racional, moderna, rigorosa da cidade, da qual os conflitos sociais e os dramas humanos parecem ausentes…
De facto, as Memórias de Bragança, escritas com o sentido da História e para a História, oferecem-nos um fresco inacabado da cidade, omitindo as tensões, as paixões, os contrastes e as sombras que constituem a essência da própria civilização barroca.
Ignorou os expostos, abandonados, de madrugada, nas portarias dos conventos; os pobres, esmolando pelas casas ricas e mosteiros, errando pelas feiras e romarias; as classes sociais responsáveis pela riqueza da cidade; mas sobretudo, ignorou os tempos dramáticos que Bragança então vivia, açoitada pelo Santo Ofício, despovoada por força dos que a abandonavam, os condenados e os fugitivos acossados pela delação.
Numa época de charneira entre o Barroco e o Iluminismo, é cedo para criticar a aristocracia de sangue, a Inquisição, o clero regular e muito menos o absolutismo reinante. Se era cedo ainda para tais críticas na capital do Império, muito mais cedo era para “a muito nobre, antiga e sempre leal cidade de Bragança”.
Orgulhosa das suas origens, celebrando a glória de Deus no céu, e uma nobreza privilegiada, elitista, de sangue limpo, os fidalgos de solar, de indiscutível linhagem, na terra, regulando a vida através de privilégios e normas rigorosas, e dogmas indiscutíveis, Bragança, nos inícios do século XVIII, segundo Cardoso Borges, parece ter captado o equilíbrio e a serenidade que apenas a certeza da ordem imutável das coisas e dos homens confere à existência!
A realidade social do burgo, contudo, era bem diferente...

Memórias de Bragança

Publicação da C.M.B.

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