terça-feira, 14 de maio de 2013

ARROZ, em Comeres Bragançanos e Transmontanos


“Uma cozinha sem arroz é como uma mulher formosa a que falta um olho”
Confúcio


O aforismo confuciano relativo ao arroz entende-se perfeitamente, dando-se em terrenos secos, pantanosos ou irrigados este cereal, estratégico nalgumas zonas do Mundo, é o mais importante na Ásia, conhecendo-se e cultivando-se na China há mais de três mil anos. Principal alimento de metade da população mundial o Oryza Sativa é oriundo das regiões tropicais e subtropicais da Indochina e sul da China, terá sido domesticado, simultaneamente, em vários lugares, há uns sete mil anos. A primeira notícia documentada relativa ao cultivo do arroz encontrou-se no baixo Yang-tse, datada de há cerca de 3400 a.C.
Os povos do Mediterrâneo pela sua posição geográfica cedo receberam novas e mandados acerca do arroz, logo considerado um extravagante grão, adstringente e eficaz medicamento na forma de água de arroz. O botânico Teofrasto qualifica-o como planta rara e esquisita, os romanos Plínio o Velho, Horácio, e o gaditano Columela, dizem ser o arroz e a água do mesmo remédios notáveis contra os desastres intestinais. Actualmente continua a provocar rápidas melhoras quando utilizado para o mesmo fim.
Na maior parte das línguas europeias actuais a palavra empregue para designar tão precioso cereal é muito semelhante, tudo indicando que precede da palavra indiana ridh, a causa radica-se no facto de o arroz da Índia ter sido o primeiro a chegar à Europa. Em França denomina-se ris, em italiano riso, em inglês rice, em alemão reis. Em Portugal e Castela chamamos-lhe arroz porque o recebemos via árabes, assim o confirmam os dicionários etimológicos. Do árabe ar-ruzz. A espécie irmã – a Oryza glaberrima – com sabor diferente cultiva-se na África ocidental há uns mil e quinhentos anos, estando na base dos celebérrimos cuscos, receita do Magreb e conservada pelos judeus, ou não tivessem sido os muçulmanos a trazerem-no até nós. Foram buscar o arroz à Pérsia e Índia, ai aprenderam a cultivá-lo e a cozinhá-lo.
Os espanhóis introduziram-no na América Latina, nós fizemos o mesmo no Brasil.
Os muçulmanos trouxeram e cultivaram o arroz na Península em larga escala imediatamente após a conquista, no entanto, tudo indica que em Portugal a sua cultura não foi significativa até finais do século XVII, os estudos de Maria Helena da Cruz Coelho sobre o Baixo Mondego nos finais da Idade-Média, assim o confirmam.
A partir de 1840, surgem medidas de incremento da produção de arroz, o importado sofre os efeitos aumentando-se as taxas de importação, os arrozais começaram a crescer nos arredores de Coimbra e na região de Santarém, apesar das reticências dos moradores em virtude de as águas estagnadas originarem muitas maleitas. Os modelos de cultivo sofreram significativas alterações, alargaram-se as áreas de arrozais, exceptuando-se o Minho, Douro Litoral, Trás-os-Montes, Beira Alta e Beira Baixa.
Não se cultivando em Trás-os-Montes, fácil é adivinhar as dificuldades da maioria da população em o adquirir, os almocreves comerciavam-no trocando-o por mimos locais, as donas de casa racionavam-no criteriosamente, aparecia em dias de grandes trabalhos agrícolas, nos pratos de festa, na doença engrossava caldos delicados. O arroz é essencial na elaboração de canjas, gordas pela enxúndia das galinhas velhas tantas vezes repletas de ovos que já não tiveram tempo para pôr, ou simples destinadas a convalescentes.
No entanto, muito boa gente considera normal confecionar-se canja desprovida de arroz, o que muito enfurecia o admirável poeta e gourmet esclarecido António Manuel Couto Viana. No livro Por Horas de Comidas e Bebidas, glosa o tema da canja chinesa, uma gabada canja que secretamente o cozinheiro tinha adubado com um rato gordo convenientemente esfolado, antes de relatar as peripécias daí decorrentes, explica: “É onde um caldo de galinha, com massa, se apresenta como canja, ignorantes que a canja leva, forçosamente arroz.”
Até à primeira metade do século XX o arroz nas aldeias de Bragança não fazia parte dos comeres de amiúdo, as razões residiam no preço, na cidade apenas as casas de pasto e tabernas o apresentavam com maior frequência nas ementas, mesmo assim, mais nos dias de feira, do que nos restantes. No intuito de elucidar os leitores do atrás afirmado dou conta dos preços praticados no Mercado Municipal em relação ao arroz, comparando-os com os da batata e feijão. Atente-se:
No ano de 1894, a tabela fixava em 130 réis o preço de cada quilo de arroz, 8 réis o quilo de batata, o litro de feijão branco a 42 réis e o litro de grão-de-bico a 42 réis.
No ano de 1906, o preço do quilo de arroz tabelou-se a 120 réis, o da batata a 18 réis, o litro do feijão branco a 71 réis, o do grão-de-bico a 64 réis.
Em 1910, o quilo de arroz custava 116 réis, o quilo da batata 14 réis, o litro do feijão branco 78 réis, e do grão-de-bico 71 réis.
Em 1912, o arroz custava 120 réis, a batata 16 réis, o feijão branco 71 réis, e o grão-de-bico 71 réis, por cada quilo e litro respetivamente.
No ano de 1915, o preço médio do quilo de arroz foi de 1$60, o do quilo da batata $38 centavos, o do litro de feijão branco $83, e do grão-de-bico $83. Nas tabelas pelo menos até 1953, geralmente, o preço do arroz, na generalidade, é o dobro das leguminosas, quatro a cinco vezes mais relativamente à batata.
No custo está a razão da pouca presença do arroz na mesa das populações de então.
Pela amostra, somos obrigados a reconhecer o engenho das mestras bragançanas em tornearem a obrigatória avareza, associando-o aos produtos criados localmente, multiplicando-o “milagrosamente” em receitas de forma a surgir em: sopas e caldos, guarnições, na qualidade de elemento principal, em pudins, pastéis e bolos.
Existem mais de cem mil variedades de arroz, diversas formas de tratamento, múltiplos produtos derivados (bebidas alcoólicas, vinagres, óleos, triturado resulta numa farinha espessa de grande uso em pastelaria, molhos), originando milhares de receitas, também as inventadas em Trás-os-Montes enriquecem o gigantesco acervo culinário.
Os chineses obrigam-se a grandes zelos na preparação do arroz, nos mosteiros de então ensinavam-se preceitos e técnicas de forma a conseguir-se o máximo rendimento possível do cereal. O Regulamento dos Mosteiros determinava os diversos trabalhos a empreender, mandando conservar a água que lavou o arroz, recomendando a constante vigilância do tacho onde se cozinha a sêmola, lembrando as tarefas de limpeza, os artefactos e utensílios e respectiva arrumação. O cozinheiro tinha a obrigação de “estar presente durante a cozedura dos pratos” já que “é responsável por todas as actividades da cozinha”.
Poucas cozinheiras transmontanas estavam a tempo inteiro na cozinha, apesar disso também sabiam, talvez por intuição, que: “a função de cozinheiro concretiza a transmissão dos antigos. Ela é ao mesmo tempo o olho, a orelha, a palavra e sentido”.
As receitas que nos deixaram o confirmam. Felizmente.

Comeres Bragançanos e Transmontanos
Publicação da CMB

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