quarta-feira, 8 de agosto de 2018

Bragança - Rancho - “Juro e jurarei, que ao rancho e ao pré nunca faltarei.”

Na complexa e quantas vezes desbragada linguagem de caserna a jura de nunca se faltar ao rancho e ao pré era dos primeiros mandamentos que os veteranos soldados afeitos à tarimba ensinavam aos recrutas.
A razão assentava no facto de os soldados auferirem um pré miserável e, o rancho ser um preparado suculento e abrangente de grão-de-bico, macarrão (não por acaso chamado manga de capote), batatas, carnes de todas as espécies possíveis, quantas mais melhor. Os magalas sempre foram mal pagos e pior alimentados, tendo no pão ou casqueiro o amigo sempre que o rancho não passava de uma água esquálida onde navegavam couves e um osso descarnado.
O arguto Arthur William Costigan em Cartas sobre a Sociedade e os Costumes de Portugal, 1778-1779, assinala as dificuldades existentes em Portugal, e o pão ser “artigo muito importante” para os subalternos, oficiais não comissionados e soldados.
Na cidade de Bragança oitocentista, ao ser praça-forte de extrema importância no quadro estratégico defensivo do reino, aquartelavam várias unidades militares e, como era costume os fidalgos militares não primavam pelas qualidades técnicas, educacionais e muito menos morais, adoravam a bazófia e valiam-se do sangue azul para cometerem toda a casta de tropelias. O bom ouvinte Costigan, em 1779, do Porto escreve ao irmão dando-lhe conta de um escabroso caso desenrolado em Bragança, revelador da protecção concedida aos fidalgos. Relata:” – A narração que vou fazer aos senhores, disse então o major Saint-Amour, pode, pelo menos ser com tudo quanto tendes ouvido. Falar-vos-ei de um fidalgo da cidade de Bragança, era seu governador civil hereditário ou seja alcaide-mor, superintendente da alfândega, tenente no regimento de cavalaria, e o mais indolente patife que jamais desonrou uma roseta. Esse homem mediante atestados de doença, passados por médicos e cirurgiões impostores e licenças extorquidas, encontrou maneira de nunca prestar serviço no regimento. Fazia a corte a uma freira do convento da cidade de Bragança e, tendo conseguido introduzir-se nesse convento, coisa aqui considerada como um grande crime, desencaminhou-a e continuou as visitas clandestinas durante muito tempo; até que se aborreceu por saciedade. Dirigiu-se então a uma outra freira do mesmo convento, irmã da anterior, e com o mesmo êxito; porém, esta segunda intriga foi dentro em breve descoberta pela freira enganada.
Esta avisou o bispo que, de combinação com o comandante da guarnição, fez cercar o convento com tropas. A um sinal dado do interior pela freira ciumenta, indicativo que o oficial estava com a irmã, fizeram uma busca geral e o galã foi descoberto, escondido num montão de lenha e conduzido para a prisão da guarnição de Chaves...”
O galã em Chaves obteve o “especial favor, a liberdade de passear na vila “e, aproveitou para cometer novas torpezas, seduziu a mulher de um velho fidalgo, os dois envenenaram o marido, fugiram para Espanha esperando por melhores dias. Vieram quando mudou o governo com a morte de Dom José e consequente afastamento do Marquês de Pombal, sendo perdoado de todos os “crimes e iniquidades”.
Nessa época os soldados recebiam mau tratamento, os nefandos castigos das varadas rebentavam o corpo sempre que alvo de punições e, em dias de rancho melhorado, altura de ocasião de festividades e visita de altas patentes, procuravam desforrar-se tirando a barriga de misérias.
O conceito de rancho não se restringe ao universo militar, os denominados ratinhos desciam do Norte em ranchos até para lá das margens do Tejo a fim de executarem trabalhos agrícolas na estação estival, ainda hoje à couve galega em muitas terras ribatejanas e alentejanas chamam ratinha por essas razões.
Em Vindima Miguel Torga escreve: “De um lado e doutro, nas vinhas, os ranchos de vindimadores interrompiam o trabalho e os descantes...”, Alves Redol em Olhos de Água traz à baila o movimento dos trabalhadores de fora:
“em dia de partida e de chegada de ranchos para a Lezíria”. O sofrido Soeiro Pereira Gomes em Esteiros alude ao termo quartel, sítio onde os deslocados em trabalhos agrícolas dormiam. No caso em apreço os valadores (os que trabalham em valas ou valados), do filho diz o pai: “é capaz de achar boa a dormida no quartel... – Quartel
pai? O capataz sorriu-se. – Num te aflijas que num vais para miiltar. Quartel é a casa em qu’a gente dorme.”
A ressonância militar ecoa nos termos rancho e quartel, nos quartéis as refeições dos soldados eram e são assim designadas, os ranchos de trabalhadores também comiam em conjunto e nos moldes dos militares, nos dias que correm rancho no termo de Bragança é sinónimo de comer forte, farto e claramente indicado para os dias frios.

Comeres Bragançanos e Transmontanos

Publicação da CMB

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