sexta-feira, 2 de julho de 2021

…Digo-te adeus

Por: Fernando Calado
(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")

Agora as noites são longas. Na verdade ouve-se a coruja no seu pio taciturno e cheio de solidão e a cadela ladra por desfastio para entreter a noite. As estrelas brilham e as sombras nocturnas desenham medos antigos que enregelavam o coração no ranger das tábuas do velho casebre. Durante um ano encontramo-nos regularmente na escrita do nosso livro: “E já não havia rosas” e tu chegavas e todas as noites estavas tão presente que te adivinhava o perfume e o cheiro a rosas. Ouvia-te sorrir na longa noite transmontana e chorar nas páginas que paulatinamente ganhavam forma no vagar das palavras. Depois vi-te partir e a noite ficou à beira do final da história.
Os homens e as mulheres da minha aldeia, às vezes também vinham para o serão e as mãos faziam o milagre da renda e da palavra da conta que se contava. A minha avó Maria Oliveira, essa chegava sempre ao anoitecer e estava ali, espreitando o livro. As vezes persentia o aconchego do seu xaile amaciando a geada, outras vezes ouvia-a sorrir…raramente a vi chorar…E o livro fez-se viagem por todo o nordeste. E senti-me acompanhado no remanso dos rios, no voo dos abutres, na sede do planalto, na força do arado que fazia poemas de trigo e centeio. Depois o moinho e o forno nos santificaram e devolveram-nos a vida. E fomos felizes.
O livro já não me pertence…é de todos…mas ficou a saudade do nosso convívio com as mulheres, os homens, as rosas, os animais e toda a natureza que morou nas minhas noites em que o livro se fazia…e eu só estava ali…ouvindo e escrevendo…mais com o coração do que com a razão.
…a noite continuará mais longa…se puderem venham-me visitar e acolham a história na frescura dos vossos olhos e na sentir do vosso coração. 
Tu estarás sempre na estrela mais brilhante…sorrindo…e eu sei que o teu sorriso é branco e felizmente as roseiras não se esquecem e em breve, novamente, oferecerão à abelha a rosa mais vermelha…e eu nunca me vou esquecer de te dizer uma coisa bonita.

Fernando Calado
nasceu em 1951, em Milhão, Bragança. É licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto e foi professor de Filosofia na Escola Secundária Abade de Baçal em Bragança. Curriculares do doutoramento na Universidade de Valladolid. Foi ainda professor na Escola Superior de Saúde de Bragança e no Instituto Jean Piaget de Macedo de Cavaleiros. Exerceu os cargos de Delegado dos Assuntos Consulares, Coordenador do Centro da Área Educativa e de Diretor do Centro de Formação Profissional do IEFP em Bragança. 
Publicou com assiduidade artigos de opinião e literários em vários Jornais. Foi diretor da revista cultural e etnográfica “Amigos de Bragança”.

1 comentário:

  1. é uma viagem de sabores e cheiros que se nos entranham e nos fazem estremecer. Gosta-se das palavras ditas de maneira que "...o milagre da renda e da palavra da conta que se conta."

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