terça-feira, 28 de julho de 2015

TOUCINHO Bragançano

“Stá preso, senhor toucinho,
às ordens do senhor pão!
E vamos a mei quartilho,
Na venda do Mei Testão!”
[in, Dicionário Falado, de Tomaz de Figueiredo]

O extraordinário escritor que foi Tomaz de Figueiredo, prosador dos maiores da língua portuguesa, em o Dicionário Falado lembra um pobre marçano de treze anos em demanda do toucinho escondido pelo patrão avarento. O rapazote foi apanhado no acto de “destampar a panela e a espetar o toucinho” cantando a sua prisão, do patrão ouviu a resposta:

“Stá preso, senhor maroto,

às ordens da palmatória!
Leva uma dúzia de bolos
e vai pela porta fora!


E, o infortunado escritor afiança que o marçano se transformou num risonho aldeagante conhecido por Toucinho, sempre Toucinho. Na corografia portuguesa surgem dois topónimos relacionados com o toucinho – Toucinho e Toucinhos –, em Almeirim existe o célebre restaurante Toucinho, que o Sr. José Manuel Toucinho tornou famoso e afreguesado devido à exuberância da sopa de pedra ali servida.
Ao tempo o toucinho detinha a responsabilidade de tornar mais atractivas as refeições das populações sem grandes proveitos, ainda maiores nas comunidades rurais, mas apesar de ser tão benquisto, isso não significava fartura dele, em “festas raras aparecia no cozido”, no decorrer dos trabalhos agrícolas a exigirem grandes esforços e em O Mosteiro de Agustina Bessa-Luís, acentua-se a relevância do inimigo de Mafoma: “Nada lhe parecia tão urgente como aquecer o ventre com talhadas de toucinho e vinho tinto”.
Em O fogo e as cinzas e no conto Meio pão com recordações, Manuel da Fonseca mais acentua o amor que as gentes humildes nutriam por tão deliciosa gordura. Senão atente-se: “ ... Mas Amanda voltara a cabeça para o lume:
- Se eu gostava de toucinho... Quando era daquele alto, cozido com feijão, comia-o às garfadas. A minha pena foi nunca comer quanto a barriga me pedia.
- Eu também gostava muito de toucinho – murmurou Júlia, sentando-se a olhar par o chão.
- Mas frito, em fatias delgadas. Lembra-me sempre lá no Zambujal... Pela manhã, no Inverno, punha-me a comê-las com pão, até a lavradora olhar para mim e dizer: «Oh, moça, olha que arrebentas!» Se ela era minha amiga...
Os olhos da velha reluziam por entre as sombras das chamas que lhe bailavam no rosto:
- Ó Júlia! E pedaços de lombo frito na banha vermelha? ...”
O toucinho e o unto foram sinónimo de comeres de mulheres e homens do povo, normalmente, de meios rústicos cuja cozinha assentava nessa saborosa gordura de porco, dando origem a comparações de todo o género, bastantes de índole acintosa. A literatura está prenha de exemplos disso mesmo, o afã em exemplificar as “barbaridades” do povo iletrado quando tem algo de seu, teve no período da procura do volfrâmio o seu expoente. Dos muitos livros dados à estampa trago a terreiro o romance Pedra do Demónio, de José Júlio Rodrigues, a pedra demoníaca é o volfrâmio originadora de pecados, exageros e gastos estrambólicos dos pesquisadores.
Leia-se: “Um tal Zé da Granja, de quem te deves lembrar dos pais, em pequena, e que remendava a vida como podia, numa leirazinha de dois palmos, deitou carro com faróis, usa cachucho no dedo, e diz que só come galinha com açúcar (que raio de gosto!)”. E mais adiante.”É um desabar de feira mana! Deixou-se de trabalhar! O povo não vai à missa! As mulheres andam num vaivém, daqui para Bragança ou para Vila Real a fornecerem-se de coisas espaventosas.” Ainda: “Desgraçados que nem tinham camisa abotoam-se agora em farpelas de uma excelência desmedida. Já se vê gente de luvas e as indigestões fervem, de tanta comida que vai agora para estômagos, só afeitos a caldo de unto e pouco mais.”
Pode parecer abusivo consagrar um texto ao toucinho, quando na maioria dos receituários surge nas duas versões, gordo e magro, quase sempre na condição de humilde serventuário de comeres opulentos, no entanto, sem o seu contributo tais pratos perdem sainete provocando prejuízos de vulto conhecedores de gosto apurado.
Popular em todas as regiões onde o porco é forte elemento carnívoro dos comeres das populações, o toucinho nos idos da Reconquista não era só base de pratos da alimentação popular, também desempenhava as funções de fiscal da fé. O facto de existir uma vila no distrito de Bragança chamada Alfândega da Fé prende a atenção mesmo do mais distraído, o toucinho ser elemento distintivo religioso está relacionado com as alterações ocorridas no domínio alimentar após a invasão muçulmana, os gostos culinários sofreram duras modificações baseadas no preceituado pelo Islão. Ora, os cristãos, resistentes, continuaram a cozinhar utilizando a banha ou unto de porco, e à medida que voltavam a recuperar o terreno perdido comer toucinho transformava-se em senha de pertença cristã, junta das hostes envolvidas no conflito.
No desempenho culinário o toucinho prestou relevantes serviços na categoria de elemento principal quer gordo, quer magro às comunidades transmontanas no passado, daí ser um género muito procurado e negociado no mercado bragançano, assim o provam os livros de registo dos géneros e artigos sujeitos a impostos indirectos. Em Janeiro de 1906, o toucinho custava 500 réis por quilo, o bacalhau 240, a vitela 200 réis.
No livro respeitante ao ano de 1912, mês de Maio, o preço do quilo estava taxado a 400 réis por quilograma, enquanto que o bacalhau se vendia a 300 réis e a vitela de primeira qualidade a 280 réis. Continuou a ser prioritário em relação aos mesmos géneros pelos anos fora, em Março de 1915, cada quilo de toucinho pagava $55 de taxa, o bacalhau $30, e $34 a vitela de primeira qualidade. Em 1920, o toucinho tinha o preço de 3$00 por quilo, o mesmo que o presunto, enquanto o bacalhau ficava a 1$20, e a carne de primeira
qualidade a 1$20. Em 31 de Janeiro 1928, o toucinho foi vendido a 11$00 por quilo, a vitela a 7$00, o carneiro a 4$00, e o cabrito a 6$00. Em 1930, no mesmo dia e mês, o toucinho vendeu-se a 12$00 o quilo, a vitela a 8$50, o cabrito a 5$00, o carneiro a 4$00, o presunto atingiu os 14$00. Normalmente, segundo os documentos analisados a diferença entre o toucinho e o presunto era maior, mas vivia-se numa época de grande carência. Em 1932, o presunto vendeu-se a 14$00 o quilo, o toucinho a 8$00, a vitela a 6$00 e o cabrito a 3$50. No ano de 1939, (fim da guerra civil espanhola e início da II Guerra Mundial) o quilo de vitela de raça mirandesa desde os dois aos seis meses de idade custava 8$00, o cabrito e o cordeiro de leite 4$50, a carne de porco de primeira qualidade 10$00, o azeite e o bacalhau pagavam 10 centavos de taxa por litro e quilo, a banha de porco, em rama ou derretida 15 centavos. Em 1942, as taxas continuam a ser do mesmo valor para o azeite, o bacalhau e a banha. A pauta de impostos Municipais Indirectos é alterada na reunião de 12 de Dezembro de 1952, a taxa sobre a banha de porco, em rama ou derretida continua a ser de 15 centavos por quilo, o bacalhau pagava 10 centavos, galinhas, galos e frangos, cada ave 20 centavos, leitões, cabritos e cordeiros, não destinados aos talhos, cada um 50 centavos.
Esta amostragem revela quão importante era o toucinho no quadro de abastecimento de carnes e gorduras à cidade de Bragança, mesmo pagando taxas mais elevadas que a outras gorduras alimentares – o azeite e manteiga –, o benquisto bacalhau, a tenra vitela (os preços baixavam à medida que ela ganhava idade), sem esquecer cabritos, carneiros e cordeiros. Apesar de caro, ao toucinho não faltavam compradores.
Porquê?
Porque na categoria de gordura quase primacial no enriquecimento de inúmeras sopas e de toda a casta de comeres, a banha retirada da camada agarrada ao courato entrava na composição vários temperos, além de ser gostoso elo de ligação entre os produtos hortícolas e o centeio corrente, por razões conhecidas poucas vezes ao trigo, conseguindo melhorar as tão repetitivas refeições do dia a dia. Cru ou aquecido amaciava e amacia o pão duro, cozido, quente ou frio assumia a função de apresigo principal em pratos de comeres constituídos à base do que as hortas davam.
Na categoria de magro em tiras ou em bolinhas as cozinheiras contavam com ele para preparem guisados, pastelões, tortas, pratos com batatas, verduras e legumes, espetadas e omeletas. As cozinheiras das casas ricas tinham no toucinho magro um ingrediente de truz para a confecção de pastéis, fricassés, lardear e saltear carnes, recheios finos, acompanhar ovos, saladas e entrar em várias guarnições.
Como é sabido conservava-se o toucinho nas salgadeiras entre camadas de sal, ou dependurado em locais secos e escuros, e a banha ou unto em bolas, potes de ferro e talhas de barro. O Cozinheiro dos Cozinheiros especifica a receita de o conservar intitulada Toucinho gordo, digna de transcrição: “Tire a carne que cobre o gordo, esfregue-se-lhe e encorpore-se-lhe a superfície com sal fino, 500 grammas por 5 kilogrammas de toucinho, juntando-se no sal 30 grammas de nitro por 500 grammas. Ponha--se isto na despensa entre duas tábuas, em cima d’estas algum peso. Ao cabo de um mez ponha-se ao ar n’um sítio fresco para que seque de todo”. Nitro é o azotado de potassa. Salitre.
Actualmente, a gordura do toucinho é empregue em grande número de criações culinárias seja na cozinha, seja na pastelaria, já que a manteiga de porco apesar dos interditos religiosos, dietéticos e medicinais, pela sua suavidade e brandura concede aos comeres um grato e especial sabor. Em pratos completos, fatiado, em tiras, como torresmo. A rechear pão, também.

Armando Fernandes

Comeres Bragançanos e Transmontanos
Publicação da CMB

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