sexta-feira, 10 de maio de 2013

VITELA em Comeres Bragançanos e Transmontanos

“sobre os tapetes da pradaria mais viçosa, retouça o gado bovino, barrosão ou mirandês, na sua característica mansidão.”
[Guia de Portugal – Trás-os-Montes e Alto Douro. II Volume]


O excerto acima inserido da autoria de Dona Maria José Teixeira de Vasconcelos, é retirado da impressão geral que lhe suscitou Bragança e arredores quando por estas paragens andou a fim proporcionar aos leitores do notável Guia, uma visão, a sua, do visto, observado e perscrutado.
O gado bovino das conceituadas raças em causa gera uma das carnes mais louvadas e dignas de apreciação dada a sua macieza – a de vitela – quanto mais nova melhor, se possível ainda de mama.
Os chefes gostam de trabalhar culinariamente esta carne rosa pálida, a cheirar a leite, envolta numa gordura de um branco acetinado, desprovida da tonalidade vermelha, o que a acontecer mostra que o animal foi alimentado a erva, cereais e/ou farinha.
Este apego pela mimosa carne de vitela não é de agora, na Odisseia obra fundamental da herança cultural do Ocidente encontramos provas dessa afeição e da maneira de ser cozinhada em tão recuada época.
Atente-se no descrito por Homero:
“Depressa queridos filhos satisfazei o meu desejo, para que dos deuses propicie em primeiro lugar Atena, que se me manifestou por ocasião do rico festim do deus. Que alguém vá à planície buscar uma vitela, e que depressa o animal até aqui venha, conduzida por um boieiro; e que outro se dirija à escura nau do magnânimo Telémaco e aqui conduza os seus companheiros, lá deixando somente dois. E que outro ainda chame até aqui o ourives Laerces, para dourar os chifres da vitela.
Vós outros permanecei aqui, ordenai às servas lá dentro que preparem um festim no glorioso palácio; que tragam assentos, lenha para o altar e água límpida.” E mais adiante: ”Depois de terem orado e espalhado os grãos de cevada, logo se aproximou Trasimedes, o corajoso filho de Nestor, e desferiu o golpe: o machado cortou os músculos do pescoço, deslassando a força da vitela. Levantaram o grito as filhas, as noras e a veneranda esposa de Nestor, Eurídice, a mais velha das filhas de Clímeno. Em seguida os homens levantaram a vitela e logo a degolou Pisístrato. Condutor de homens. Dela se derramou o negro sangue, dos ossos fugiu a vida. Esquartejaram-na de imediato, cortando as coxas segundo a ordem própria, cobrindo-as com gordura; e por cima puseram pedaços de carne crua. O ancião queimou-as nas achas e por cima verteu vinho frisante. Junto dele os jovens seguravam garfos de cinco dentes. Queimadas as coxas, provaram as vísceras e cortaram o resto, fazendo espetadas com os pedaços; assaram-nas segurando os espetos nas mãos...
...Assada a carne, tiram-na dos espetos e sentaram-se para comer”.
A técnica culinária da cozedura da carne ainda está em uso, apesar do desuso dos espetos, já os garfos de cinco dentes referidos constituem uma raridade. Com efeito, este utensílio de cozinha em forma de forcado tem, normalmente, dois, três e quatro dentes. O rei Henrique III de França descobriu o garfo de dois dentes na corte de Veneza, corria o ano de 1574, tendo lançado a moda entre os nobres franceses e daí irradiou para toda a Europa.
O garfo tem utilidade no tratamento da vitela, assim era na época de Homero, mas o rapsodo cuja fama atravessa os milénios revela-nos outra forma de ser cozinhada a tenra carne, estou a referir-me à célebre, celebérrima posta, tão do agrado de gregos e troianos, entenda-se bragançanos e os outros transmontanos, somando-se ainda a crescente legião de apreciadores de todas as paragens.
Para desgosto dos chauvinistas e localistas de bairro, a moda da posta assada nas brasas é tão antiga que nos esquecemos do evidente, ou seja: mal o homem dominou o fogo principiou imediatamente a assar pedaços de carne sobre o braseiro proporcionado pelas fogueiras. Da leitura da Ilíada retemos referências a vitelas até um ano de idade, e da morte de um touro de cinco anos tendo do lombo do animal sido retiradas postas que foram bem assadas.
O afã pela brandura da carne de vitela levava agricultores a preparem dietas especiais a fim de conseguirem esse propósito, no caso de França a mais conhecida é a Normandia, aí davam até dez ovos por dia aos vitelos, em Pontoise as vitelas eram apaparicadas com biscoitos embebidos em leite, aumentado a fama e o proveito dos produtores.
O italiano Bartolomeo Scappi, cozinheiro de altos dignitários da Igreja, entre os quais o Papa Pio V, deixou-nos um dos mais extraordinários tratados de cozinha do mundo ocidental – a Opera. Nela dá a conhecer centenas de receitas repartidas por seis livros, o último dedicado aos enfermos, nele estão registadas onze receitas à base de carne de vitela, pois os seus sucos amenizavam o estado dos ilustres doentes. No livro segundo, o das carnes, a carne de vitela dá substância e gosto a trinta e três receitas, demonstrando o alto apreço que o grande Mestre tinha pela mimosa carne.
Também por cá a vitela sempre recebeu preferência enquanto comer de excepção, caso de datas especiais, o Mestre Cosinheiro, século XIX, enuncia vinte e duas receitas, algumas a demonstrarem que nenhuma parte do animal era menosprezada. Leia-se: bofe de vitela à Adamastor, cabeça de vitela corada no forno, cabeça de vitela recheada, coração de vitela grelhado, fígado à portuguesa, fígado salteado, medula do espinhaço, miolos de caldeirada, orelhas de vitela à italiana, pá de vitela recheada, peito de vitela com ervilhas, quartos de vitela à creme, rins de vitela de fricandó, rabo de vitela, além dos bifes, costeletas e perna em múltiplas preparações.
No tocante à escolha da vitela como carne destinada ao tratamento de enfermidades e fraquezas, O Cosinheiro Popular, edição de 1890, referencia: caldo fresco e purgativo, caldo para doentes e para sãos, caldo para dores de cabeça, caldo para purificar a massa do sangue, caldo para inflamações do peito, caldo para doença do peito, caldo para fluxos catarrais, caldo para obstruções do mesentério do fígado e do baço.
A escola italiana de cozinha dominou o gosto culinário até ao século XVIII, a vitela proporcionava e proporciona inúmeras formas de confecção, lembro o famoso carpaccio, elaborado à base de finíssimas fatias de vitela crua.
Noutros países e noutras regiões, incluindo Trás-os-Montes, também a vitela é confecionada, ou não fosse iguaria de primeira grandeza, em feiras, festas, romarias e dias nomeados religiosos, civis e militares como ao atestam menus de banquetes ou refeições de regozijo. Na esfera da cozinha popular a carne de vitela para além do bravo gozo que concedia a quem tinha possibilidades de a comer pelo menos nos dias nomeados, fazia parte da dieta de doentes e idosos.
As actas camarárias, tarifas e pautas de impostos municipais indirectos da Câmara Municipal de Bragança, lançam luz sobre a apetência dos bragançanos pela carne de vitela, assim o asseguram os documentos em causa. A consulta vai de 1870 a 1955, tendo-se verificado que só o presunto e a carne de porco têm preço ou pagam taxas mais elevadas, enquanto que no referente a carnes verdes a vitela de primeira qualidade é a mais cara. Vejamos:
Em 1884, o quilo de vitela custava 210 réis, em 1889 custava 188 réis, em 1894 o custo ascendia a 260 réis.
Em 1906, o quilo de vitela custava 200 réis e do carneiro 140 réis.
Em 1912, o quilo de vitela custava 280 réis, a de segunda qualidade (depois dos seis meses de idade) 250 réis. O quilo de carneiro, e o de chibato custava 140 réis.
Em 1924, o quilo de vitela custava 10$00, e o de cabrito 5$00.
Em 1928, o quilo de vitela custava 7$00, o de cabrito 6$00, e o de carneiro 4$00.
Em 1932, o quilo de vitela custava 6$00, o de cabrito 3$50, e o de carneiro 2$00.
Em 1938, o quilo de vitela de primeira qualidade custava 8$00, o de segunda qualidade 7$00 (acima dos seis meses de idade), o de primeira qualidade custava 7$00, acima dos quinze meses, o de primeira qualidade 6$00. O quilo de carneiro e de chibato custava 3$50, o de cabrito e cordeiro de leite 4$50.
Em 1955, a vitela e as restantes carnes verdes pagavam uma taxa de 3% sobre a venda de cada quilo.
E por tão gostosa, em terras de Bragança, nem os gatos escapam ao sortilégio da vitela, a quadra que foi recolhida em 1984, veja-se Brigantia, volume XXIII, assim o demonstra.

“Minha mãe pariu-me ao lume
Debaixo de uma tigela
Foi o gato e lambeu-me
Julgando que era vitela.”

Comeres Bragançanos e Transmontanos
Publicação da CMB

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