quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Vinhos - «Fico na dúvida se o nosso vinho ainda tem alma» - Virgílio Loureiro

De Norte a Sul do país, o final do Verão é sinónimo de vindimas, de celebração da vinha, do vinho e de um novo ciclo de trabalho. Mote para uma conversa com Virgílio Loureiro, enólogo e professor universitário, sobre um sector «exportável» e capaz de animar as economias locais. Uma análise que toca questões como as condições dos trabalhadores, notoriedade dos vinhos, qualidade do produto e preços. «Fico na dúvida se o nosso vinho ainda tem alma», desabafa o professor.
Os dados das exportações de vinhos portugueses, na última década, mostraram-se animadores, e de ano para ano, registam-se melhorias neste segmento de produção.
Só em 2012, segundo o Instituto da Vinha e do Vinho, as exportações de vinho ultrapassaram, pela primeira vez, em termos de vendas, os 704,8 milhões de euros, mais 7,1% do que em 2011.
Um caminho de crescimento que se regista há três anos consecutivos em todas as categorias, quer em volume, quer em valor.
Em época de vindimas e colheitas um pouco por todo o território, o enólogo e investigador de microbiologia alimentar Virgílio Loureiro traça o perfil de um sector que tem dado provas não só em Portugal mas também além-fronteiras. 
O professor do Departamento de Botânica e Engenharia Biológica do Instituto Superior de Agronomia reconhece «que muito se fez nos últimos 30 anos» na área dos vinhos. «Nas vinhas, nas adegas, na comercialização, na exportação, na formação técnica, no design de rótulos, no enoturismo, no controlo analítico, na abertura ao exterior», enumera. Contudo, interroga-se e garante que, apesar de tudo isto, não encontra as respostas que queria. 
E questiona: «depois de tantas melhorias, de tanto dinheiro investido e de tanto entusiasmo os viticultores melhoraram significativamente as suas condições de vida? Os jovens viticólogos e enólogos têm ordenados dignos? Os trabalhadores do sector vivem bem? As empresas têm tido capacidade para absorver os jovens que se preparam para seguir uma profissão no sector? Os vinhos portugueses são mais conhecidos além-fronteiras? Fazem parte das cartas dos bons restaurantes ou das prateleiras das boas garrafeiras (exceptuando os centenários Porto e Madeira e o cinquentenário Mateus)?».
De uma forma mais concreta, vinca, «desgosta-me que os vinhos sejam tão manipulados na adega, sejam tão iguais, mesmo quando têm denominações de origem diferentes, sejam tão baratos no mercado interno, sejam exportados a preço tão baixo e, acima de tudo, que sejam os viticultores os parentes pobres de toda a cadeia de valor». 
A essência e a alma do nosso vinho têm sido suficientemente aproveitadas, no mercado interno e externo? À pergunta, Virgílio Loureiro responde: «perante a nossa realidade, em que os principais líderes de opinião do sector afirmam peremptoriamente que “O vinho é negócio” e nada mais, eu fico na dúvida se o nosso vinho ainda tem alma. Mas se ainda a tem não será, por certo, para a utilizar na promoção dos nossos vinhos».
Virgílio Loureiro
E acrescenta que muitos dos produtores dizem que, «sendo o vinho vendido a preço tão baixo, não se justifica promovê-lo de forma sofisticada e com identidade, pois as massas e a moderna distribuição não dão qualquer importância a isso». 
Por tudo isto, o professor universitário diz que infelizmente não se revê «no entusiasmo e deslumbramento com que o faz muita gente em Portugal, desde a tutela e produtores até a alguns líderes de opinião e comunicação social, incluindo a especializada internacional».
No que respeita ao desempenho exportador do país, o investigador refere não saber se «é apropriado falar em “grande ânimo do sector”, quando mais de 50% do vinho produzido se vende abaixo do custo de produção (quando as contas são feitas por economistas)». 
«Estudar o trabalho de outras indústrias tradicionais»:
«Conheço enormes casos de sucesso na exportação de vinhos portugueses, com um trabalho irrepreensível da parte de alguns produtores. Conheço trabalho válido por parte de algumas Comissões Vitivinícolas Regionais. Há empresas de dimensão internacional que nos enchem de orgulho, mas acho que são mais a excepção do que a regra», adianta.
Virgílio Loureiro lança ainda uma sugestão: «acho que o sector faria bem em estudar, com atenção, o trabalho que tem sido feito noutras indústrias tradicionais, como a do calçado e a têxtil, cujo sucesso demonstra que não há impossíveis e que a imagem do país pode sair muito prestigiada».
O enólogo reconhece qualidade a inúmeros projectos enoturísticos que existem em Portugal, «que nada ficam a dever ao que de melhor se faz lá fora», como é o caso das rotas de vinho. «O problema surge quando se procuram juntar os projectos num todo coerente, eficiente e profissional. A eterna dificuldade dos portugueses em saber juntar as mãos em projectos comuns, recordando-nos as célebres taifas do período de domínio árabe, continua a ser um obstáculo de monta», afiança.
E acrescenta que tem «esperança que a próxima geração lhe dê solução, agregando tantos centros de interesse cultural, económico e turístico que existem em todas as nossas regiões vitícolas».
Sobre o futuro, o professor refere que um sector com «tanta história, tradição e tão entranhado na nossa cultura terá de ter, sempre, um futuro promissor à sua frente». «As dificuldades com que se defronta são, por certo, consequência das grandes transformações por que tem passado o nosso país nas últimas quatro décadas. Os ajustamentos irão fazer-se. O rumo certo será encontrado. Os excessos esbatidos. A autoestima recuperada. Todas as regiões vitícolas - e eu conheço-as quase todas - têm gente suficientemente capaz para as colocarem no lugar que merecem. Saibam colocar as pessoas certas nos lugares certos para vencer os interesses instalados e tudo será possível».
«A Mátria do Vinho»: um «grito de inconformismo»:
Nesta conversa falamos também do documentário «Mother Vine: A Mátria do Vinho» (2011), realizado pelo americano Ken Payton e direcção técnica de Virgílio Loureiro e cujo trabalho destaca a variedade dos vinhos nacionais, alguns em risco de extinção, pretendendo contribuir para a salvaguarda deste património cultural. 
Sobre filme, o enólogo recorda que o mesmo «teve como origem uma entrevista que Ken Peyton me fez na primeira visita que fez a Portugal, para participar num encontro de wine bloggers, a convite, se não estou em erro, da Viniportugal». 
«Embora eu não o conhecesse e não soubesse que me queria entrevistar, tive o cuidado de ir munido da minha câmara fotográfica onde tinha arquivadas imagens dos vinhos históricos que nós temos. Quando começou a entrevista disse-me que estava em Lisboa há dois dias a provar vinhos e que estava bastante decepcionado, pois salvo raras excepções, os vinhos eram iguais a tantos outros que havia por esse mundo fora. Não punha em causa a qualidade deles, mas reconhecia que eram falhos de carácter e de identidade, mesmo tendo em conta a grande diversidade de castas (a todo o momento) invocada pelos produtores», recorda.
Mas quando Virgílio começou a mostrar-lhe fotos das adegas de talha do Alentejo, o realizador americano «abriu a boca de espanto, pois ignorava totalmente que existissem em Portugal». «O mesmo aconteceu quando lhe mostrei as vinhas medievais de Ourém e lhe disse que o vinho ainda era aí feito segundo a técnica dos monges de Alcobaça, desde o século XII. Escusado será dizer que todas as “excentricidades” que ia mostrando (currais dos Açores, vinhas de chão de areia em Colares, vinha de enforcado no Minho, etc.) lhe causavam surpresa, mas também fascínio, motivando-o a querer conhecer o Portugal vinícola desconhecido onde era possível encontrar (quase) tudo o que está descrito num livro de história do vinho, mas inexistente na maioria das regiões vitícolas do mundo», recorda. 
Porém, relembra, «quando lhe disse que quase tudo o que lhe tinha mostrado estava em risco de extinção e, pior do que isso, era entendido pela maioria das pessoas do sector como um factor de subdesenvolvimento da nossa vitivinicultura que era preciso esconder dos estrangeiros, sentiu-se indignado! E disse-me que algo tinha de ser feito para mostrar ao mundo o património que existe em Portugal, mas os portugueses têm vergonha de mostrar. Dito e feito. O filme, passado um ano e pouco após a entrevista estava feito e a ser passado nos quatro cantos do mundo».
Para Virgílio Loureiro este documentário, além de ser uma espécie de «grito» de promoção e divulgação dos nossos vinhos, é «acima de tudo é um grito de inconformismo pela falta de auto-estima de boa parte da gente do vinho», conclui.

Ana Clara
in:cafeportugal.net

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