domingo, 17 de novembro de 2013

A Pobreza e os Direitos Humanos

Dulce Rocha
Presidente Executiva do Instituto de Apoio à Criança
Nem sempre foi tão evidente a relação estrutural entre a extrema pobreza e a violação dos Direitos Humanos. Ainda me lembro de se falar na importância do respeito pelos Direitos Humanos e invariavelmente associarmos ideias relativas às torturas, às prisões arbitrárias, aos julgamentos sumários, às proibições da liberdade de expressão do pensamento que vigoram nas Ditaduras.
Mas desde que o Padre Joseph Wresinski, fundador do Movimento ATD Quarto Mundo, em 1987, declarou o dia 17 de Outubro como o Dia Mundial da recusa da Miséria, em Estrasburgo, junto ao Conselho da Europa, afirmando que a pobreza extrema despojava o ser humano dos seus direitos fundamentais, na medida em que o privava de bens essenciais, desde a alimentação ao vestuário e à habitação, comprometendo a sua dignidade, ninguém mais pôde ficar indiferente às situações dramáticas vivenciadas por milhões de pessoas no mundo, a quem é negado o exercício de direitos indispensáveis à sobrevivência digna.  As suas palavras ecoaram bem alto e em 1992 a ONU assumiu também essa data, instituindo formalmente esse dia contra a erradicação da pobreza e da exclusão social…
Logo a seguir, em 18 de Outubro, Dia Internacional contra o tráfico de seres humanos, foram anunciadas campanhas destinadas a sensibilizar a comunidade para esta tragédia, que o Papa Francisco assinalou também como prioritária na agenda da Igreja.  Segundo a agência Eclesia, estima-se que os lucros do tráfico de seres humanos ultrapassem em breve os que derivam do tráfico de armas e de droga.
Já em Novembro, a Conferência Episcopal Portuguesa também se pronunciou sobre o empobrecimento no nosso País, ligando a questão da pobreza à dignidade e designadamente do direito ao trabalho digno.
Por isso, os meses de Outubro e Novembro são sempre marcados por iniciativas contra a pobreza e pelos direitos humanos. O Conselho da Europa organiza anualmente cerimónias destinadas a assinalar a data e este ano, o Instituto de Apoio à Criança integrou o conjunto de Organizações que a convite da Rede Europeia de Ação Social (ESAN) auscultaram cidadãos que quiseram partilhar as suas queixas. Para tanto, pedimos ajuda à Rede Construir Juntos e depois de selecionarmos milhares de depoimentos, publicámos um livro com testemunhos cuja riqueza a nível emocional é inversamente proporcional à pobreza material que denunciam. Levámos uma jovem embaixadora a Estrasburgo e a sua intervenção comoveu a audiência.
Também a Comissão Europeia organiza nos próximos dias 26 e 27 de Novembro a terceira Convenção Anual da Plataforma contra a Pobreza e a Exclusão.
Mas, ao aproximar-se o dia 20 de Novembro, dia em que há 24 anos, os Estados decidiram aprovar, na Assembleia Geral das Nações Unidas a Convenção sobre os Direitos da Criança, creio que temos de falar da importância desse documento, que é aquele que na história dos tratados de Direitos Humanos concitou mais ratificações a nível internacional.
O Direitos consagrados na Convenção continuam a não ser respeitados em muitos Países do Mundo. Há crianças que continuam aos milhares a ser vítimas do tráfico para exploração sexual e laboral, meninas vítimas de mutilação genital, ou sem o direito de frequentar a escola, meninos obrigados a participar em conflitos armados. Contudo, o facto de os direitos estarem reconhecidos num tratado, permite às organizações defensoras dos direitos das crianças, invocar os seus princípios e as suas normas, para exigir que as legislações nacionais se conformem com a Convenção e facilita não apenas o desenvolvimento de procedimentos inovadores que promovam o cumprimento dos direitos, como de mecanismos mais eficazes que sancionem a violação desses direitos.
A aproximação do Dia Internacional para a Eliminação da violência contra as mulheres, instituído em 1999 pela ONU, que escolheu o dia 25 de Novembro para homenagear a luta das três Irmãs Mirabal, assassinadas em 1960, na República Dominicana a mando do Ditador Trujillo, convoca-nos também para os números trágicos da violência contra as mulheres, que continua a atingir números cada vez mais extensos. Na verdade, ao contrário do que sucede quando olhamos para os números dos homicídios em geral, os relativos a mulheres vítimas de homicídios continuam a subir em diversos Países.
E o que se observa claramente é que é nos contextos de pobreza extrema que os criminosos se movimentam com mais facilidade e onde a impunidade permite a reincidência e a multiplicidade de crimes. Aí, onde a privação desvaloriza a dignidade das pessoas, reduzindo-as progressivamente, coisificando-as, é terreno mais propício para a atuação das redes do crime organizado.
Há, pois, uma relação forte entre a pobreza extrema e o crime organizado. E a pobreza, estou profundamente convencida, pode ser eliminada. Como salienta Mandela, a pobreza, como a escravatura não é inerente à pessoa humana. É uma condição das pessoas, criada pelas enormes desigualdades das sociedades.
Joseph Stiglitz, prémio Nobel da economia em 2001, também diz que a desigualdade crescente não é inevitável e que são os interesses financeiros que a provocam.
Concordo inteiramente com estas análises.
E, se bem que as campanhas sejam necessárias, sozinhas não conseguirão mudar a organização do mundo, da economia, dos déficits, das dívidas soberanas, da subida do preço dos combustíveis, dos excedentes de produção, das bolhas imobiliárias, do encerramento de empresas produtivas apenas porque foi decidida a deslocalização para Países onde não há horários de trabalho, onde as pessoas trabalham em caves sem luz, e não têm férias e não estão com os filhos, e não podem ter os filhos que desejam, ou onde há crianças a trabalhar, sem poderem ir á escola e sem poderem brincar.
Podemos alterar comportamentos individuais, até de grupos, até de Países, mas o dinheiro continua a girar, à escala mundial.
O capital não tem Pátria, disse um dia Marx. Agora a globalização veio demonstrar isso aos mais incrédulos.
Portanto, proclamar os direitos é bom, mas não é suficiente. Podemos consagrar que os Direitos Humanos são universais, mas muitos, biliões de pessoas não os conseguem gozar e outros apenas têm no seu quotidiano aqueles a que chamamos básicos, como se outros, o acesso à cultura, ao lazer, à música, à arte, à literatura, fossem privilégio só de alguns.
É necessário termos a coragem de exigir que os seus titulares possam exercê-los, porque, indubitavelmente, enquanto a vida for um jogo para os senhores da finança, que desprezam convenções e direitos, o mundo dos mais pobres, dos despojados, fica sempre a perder e é incomparavelmente mais injusto nascer na miséria. O mais provável será não conseguirem sair dela, nem em sonhos, porque nem sequer se vislumbra outra realidade.
Cabe-nos, portanto, reconhecer estas relações perigosas entre a miséria e os crimes mais hediondos para recusá-la, como fez o Padre Wresinski há 26 anos, se queremos definitivamente defender os direitos humanos.

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