quarta-feira, 20 de novembro de 2013

AUTO - A pintura de São Brás

Versões existentes no CEAMM (Centro de Estudos António Maria Mourinho)

Deste texto existem no  CEAMM quatro cópias. Três encontram-se dactilografadas, sendo duas meras reproduções da primeira. A terceira encontra-se já impressa a partir de computador. Possivelmente terá sido também copiada das outras versões.
A edição digitalizada é uma das cópias dactilografadas, aquela em que, quer as didascálias quer o nome das personagens se encontra a vermelho.
Em todas as versões se pode ler, na segunda página, um texto anónimo sobre Basílio Rodrigues. A enunciação em terceira pessoa deixa supor que o autor é outro que não o próprio Basílio Rodrigues. Contudo, não nos parece que isso seja assim tão evidente pois os "erros" ortográficos em muito se assemelham aos da "comédia". Se não é ele o autor deverá ser alguém não muito letrado e, pelos pormenores que nos oferece sobre Basílio Rodrigues, alguém profundamente conhecedor da sua vida pessoal e familiar. Não fazendo parte do "colóquio", optámos por colocá-lo numa página à parte que pode ser lida a partir da mesma versão da edição digitalizada (ver esta página).
Origens
A história deste auto é, como se lê na primeira página, um “assunto verdadeiro” ocorrido com personagens de Vilar Seco (Vimioso), Cércio de Miranda do Douro e outros. A história consiste no relato desse episódio em que alguns mordomos de São Brás, da aldeia de Cércio, se terem recusado a pagar a pintura desse santo que tinham encomendado a Basílio Rodrigues. O auto, nascido e criado nas mãos de um autor quase analfabeto, como se pode aferir pelo texto de carácter biográfico que o acompanha, sem pretensões literárias e destituído de grandes artifícios dramático-narrativos, é um verdadeiro “auto popular”. Nele se consuma plenamente a função lúdica, mas também satírica, pois se procura troçar de certos comportamentos sociais, nomeadamente daqueles que não cumprem com a palavra dada. Numa civilização de oralidade − e este texto marca uma fase-chave de transformação de oralidade quase pura para oralidade mista[1] −, onde a palavra devia ser respeitada, os que não o fazem só podem ser motivo de chacota por parte da restante comunidade.  Tal como diz um dos muitos ditados populares que encontramos neste auto, “um boi prende-se pela haste e um homem pela palavra”.
Se os “mordomeiros” de São Brás acabam por encarnar esse “tipo social”, cabe à figura de Fala-Só, o Bobo, assumir o papel de fazer rir o público, provocando esse riso através das palavras, quer através das atitudes. Tal como há muitas outras situações cómicas − como quando a figura do santo é transportada nuns alforges − capazes de provocar o riso, de cativar a assistência e de a prender à história dramatizada no tablado.
Mas não ficam por aqui os temas de interesse deste texto. Para além dos mirandesismos, são múltiplas as referências à Terra de Miranda, através da toponímia, da história, das alusões a lugares e a manifestações sociais e culturais da região, que assim nos permitem percorrer mais alguns dédalos desta viagem em busca das raízes identitárias mirandesas, da sua configuração e do seu significado.
Representações
Como se pode ler na página de rosto da “edição digitalizada, este texto foi “representado em tabelado de quarenta metros de cumprido ao ar livre em Vilar Seco, Vimioso a 10 de Fevereiro de 1928”. Valdemar Gonçalves informa que ela foi também “recentemente representada na Póvoa”.
Como informação secundária, mas que nos dá conta do grande impacto que estas representações tiveram nesta região, veja-se esta nota manuscrita, de António Maria Mourinho que encontrámos em uma das cópias do seu artigo “Teatro Rural em Trás-os-Montes”:

[Os de Cércio], no regresso para suas casas, uns aos outros diziam pelo caminho:
− Não podemos gabar a representação, porque foi contra nós, mas na verdade esteve bem feita!
Ficaram no entanto com ressentimento para Vilar Seco pela crítica jocosa que no entremez lhe foi feita, embora baseada só nos moldes da verdade, pois a comédia tem apenas de fabuloso o papel do Diabo e do Bobo, obedecendo assim ao estilo da região. Todo o resto é apenas a expressão da verdade sem acréscimos. Esse ressentimento levava-os a buscarem ocasião de ajustarem contas com Vilar Seco, embora se sentissem impotentes.
Em 19 de Maio desse ano, 1929, foi representado em Genísio os “Sete Infantes de Lara”, e finda a representação, envolveram-se em desordem uns indivíduos de S. Pedro com outros de Caçarelhos, intervindo irreflectidamente a favor de São Pedro alguns de Vilar Seco. Trocaram-se cacetadas, houve pedradas, com alguns ferimentos de parte a parte. Poucos, os de Vilar Seco e S. Pedro fizeram muito; a superioridade numérica dos de Caçarelhos varreu-os do campo. Terminado o conflito, que durou apenas dois ou três minutos, enquanto já a malta de Cércio ia fora da povoação a caminho da sua aldeia, alguém lhe fez saber que havia barulho entre Vilar Seco e Caçarelhos e então, julgando oportunidade dos povos zurzir os de Vilar Seco, desordenadamente voltou atrás, tentando aliar-se a Caçarelhos. Mas Caçarelhos e Cércio, povoações distantes, não se conheciam, assim que os de Caçarelhos, ao verem vir sobre eles aquele tumulto desordenado, supondo-se afrontados, bateram nos improvisados aliados.
Por sua vez os de Cércio bateram apenas covardemente num indefeso indivíduo de S. Pedro, Joaquim Garcia, e em dois menores de Vilar Seco, Baptista bernardo e Félix Rodrigues a quem apanhando-lhes os chapéus os golperam à navalha, mostrando-se assim valentões.
Tendo-se dado sempre bem, estas povoações, depois de ligeiras entendimentos, bem se continuaram sempre dando, restando apenas aversão entre Cércio e Vilar Seco somente pela “Pintura de S. Brás”.
 Noutra nota manuscrita, que se segue a esta, depois de referir que ainda existem "mais entremeses do sr. Bazílio Rodrigues, que lhe não foi possível encontrar, escreve:

De Bazílio Rodrigues existem entre outros o entremez rimado "Vida de João Soldado", que merece menção e que foi representado várias vezes na Póvoa, depois em São Martinho, em Caçarelhos, em Angueira e noutras localidades.
A "Confissão de Vicente marujo" que se representou em Vilar Seco, Póvoa, S. Martinho, Angueira, etc. e outros entremezes vários.

in:tpmirandesp.no.sapo.pt

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