quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

Legado Patrimonial, Cultural e Religioso da Companhia de Jesus à Cidade de Bragança – Séculos XVI-XVIII


Um título ambicioso que contrasta com a escassez de espaço de que dispomos para desenvolver, de forma conveniente, o seu conteúdo, que terá de obedecer, obviamente, a um tratamento sumário, que nunca se poderá confundir com uma abordagem superficial. Porque o que está em causa e na mente dos organizadores deste Seminário Internacional, é alertar o público em geral e da região de Bragança-Zamora, em particular, para a necessidade de preservar a memória do seu Património Histórico-Cultural, que passa, obrigatoriamente, pelo conhecimento rigoroso e científico da sua evolução histórica.
A nossa investigação histórico-artística desta zona nortenha incidiu, apenas, sobre a presença e actividade da Companhia de Jesus na cidade de Bragança que, ao longo de dois séculos (1561-1759), deixou um legado valioso no campo arquitectónico, cultural e religioso, cuja história, ainda que sumária, importa conhecer.

1. DIFICULDADES DA FASE INICIAL
Apesar dos ardentes desejos do Duque de Bragança, D. Teodósio e do Bispo de Miranda, D. Julião d’Alva, bem como dos Homens da cidade, a nova fundação esbarrou contra alguns obstáculos que só foram superados a partir da pregação, em 1559, pelos Padres Leonel de Lima e Domingos Cardoso, que eram acompanhados pelo Irmão Garcia Simões. O problema da residência ficou resolvido a partir do momento em que a cidade doara os aposentos de um antigo convento construído para as Clarissas, no lugar designado Cruz de Pedra.
A simples doação de um convento não resolveu todos os problemas sendo necessário proceder, de imediato, em 1564, a obras de adaptação de forma que o edifício pudesse satisfazer os desígnios da nova Comunidade e corresponder às necessidades de um colégio jesuíta. Entre as quais cabia mencionar aquelas que se prendiam com a economia, dado que todos os colégios jesuítas funcionavam em regime gratuito. A renda anual disponível, nestes primeiros anos, que deveria assegurar a manutenção dos que habitavam o colégio, bem como as obras urgentes de adaptação, orçava os 400 000 réis, oriundos de doações do Bispo de Miranda, do duque de Bragança, da cidade e dos rendimentos de uma igreja e de uma quinta.
Quando o processo parecia estar bem encaminhado, a Comunidade foi surpreendida com a morte do duque de Bragança, em 5 de Agosto de 1564, que levantou novos problemas, causando enorme apreensão em relação ao herdeiro que, na opinião do Provincial, Padre Miron, este duque que es mochacho no muestra mucho gusto desta obra, ni inclinación alguna a favorecerla, antes pesadumbre, temendo-se não continuar a dispensar o apoio financeiro de seu pai, que já lhes parecia escasso.
Às dificuldades externas, juntaram-se os problemas internos de saúde que atingiram, praticamente, toda a Comunidade: dos 18 membros, 14 caíram doentes. Entre as causas possíveis, levantou-se a hipótese do colégio estar situado numa zona insalubre; outros eram de opinião que a causa derivava da própria orientação do edifício, exposto a sul e coberto no lado norte.


Um mar de dúvidas e problemas físicos a que se somavam as deficiências financeiras que levaram os Superiores a expor a situação, nas mais altas instâncias, à II Congregação Geral, que se reuniu em Roma, em 1565, por ocasião da morte do Padre Diego Laínez e eleger o terceiro geral, Padre Francisco de Borja, que conhecia perfeitamente a situação da Província de Portugal, onde desempenhara as funções de Comissário Geral, em anos anteriores.
De Roma, chegou uma resposta esperançadora ao mesmo tempo que se fizeram diligências, junto do duque de Bragança, que obtiveram resultado positivo, visto ter confirmado a oferta de 100 000 maravedis.
Contudo, a situação do colégio permanecia insegura e estava longe de ficar solucionada. Pelo contrário, sofreu novo desaire com a morte de dois grandes amigos e benfeitores: em 1568, Filipa Mendes, senhora de Vilares que tinha deixado ao colégio todos os seus bens e uma renda fixa no valor de 150 ducados; passados, apenas, dois anos, surge novo contratempo com a morte do Bispo D. Julião d’Alva de quem se diz, na crónica da casa, el que mas ayudó la fundación del collegio de Bragança.
Duas cartas de 1579 revelam a situação dramática do colégio e o descontentamento geral dos seus membros, resultantes, essencialmente, de três factores: má alimentação; condições climatéricas adversas da região e carácter impróprio da zona habitacional. Vivia-se contrafeito, sendo considerada, por alguns, uma casa de desterro e de castigo; o pão que se consumia es como tierra, carne desabrida, peixe seco y salado; com temperaturas extremas, com grandes frios de invierno y demasiados calores en el verano; um dos factores negativos que mais contribuiu para esta situação de mal-estar prendia-se com o facto de as instalações do colégio não obedecerem aos parâmetros habituais de construção do modo nostro, característico da Companhia. Recorde-se, uma vez mais, que o edifício fora construído, inicialmente, para a Ordem das Clarissas e as adaptações aplicadas à arquitectura do conjunto resultaram insuficientes.
Mas, acima de tudo, verificava-se uma recusa generalizada de viver neste colégio: son muy pocos los nuestros que deseen resedir en este collegio…las personas de la Compania que aqui estan quasi todos estan de mala gana y contra su voluntad. O relato desolador desta situação conclui de forma dramática: de los 8 ó 9 que aqui residimos no hallo uno de que pueda ayudarme seguramente: si tienen buena voluntad (como algunos pocos tiene) faltales entendimiento y si tienen esto faltales la voluntad buena, que es la mayor falta aqui.

2. RESPOSTA IMEDIATA E ADEQUADA DOS RESPONSÁVEIS
Do conjunto dos colégios que tivemos oportunidade de estudar, que passaram por dificuldades de vária ordem na fase da fundação, não temos conhecimento de uma resposta tão rápida e eficaz. É importante sublinhar este aspecto pela sua originalidade. Estamos em crer que se a situação exposta tivesse acontecido noutro local, possivelmente, os responsáveis teriam cedido às queixas e desistido do projecto.
Em Bragança, assistimos a um fenómeno exemplar: quanto mais se avolumava o clamor dos protestos, maior era o empenho, quer a nível do Provincial, quer a nível superior do Geral da Companhia de encontrar uma solução. Pese, embora, o volume de condicionalismos adversos, de toda a ordem, que envolveu a fundação do Colégio do Santíssimo Nome de Jesus de Bragança, os responsáveis manifestaram sempre uma vontade decidida de implantar a Companhia em terras transmontanas. Aqui reside, em nossa opinião, a chave do problema.


E quando há vontade de resolver, as dificuldades são superadas. Mas, porquê? Por que motivos se empenhou a Companhia nesta fundação? Pelos apoios recebidos das autoridades civis e religiosas da cidade? Pela oferta espontânea de um Fundador? Já demonstrámos que se tornaram insuficientes.
Os preconceitos contra a Companhia de Jesus transformaram-se em tópico, esquecendo-se que, apesar dos erros cometidos ao longo da sua história, quando Inácio de Loiola, com os seus 9 companheiros, arrancaram, nos meados do século XVI, para um novo projecto de vida, no seio da Igreja, o objectivo central era a Sálus animarum, a salvação dos seres humanos.
Ora bem, foi este princípio basilar que triunfou e acabou por desbloquear a situação do Colégio de Bragança. Quando todos se empenhavam em queixar-se, fugir, desertar, porque Bragança não oferecia condições humanas, o Governo Provincial de Lisboa e o Governo Geral de Roma apostaram no projecto brigantino porque cumpria os objectivos primários do carisma jesuíta. Nas Actas da Congregação Provincial de 1576,que teve como secretário o Padre Pedro da Silva, explica-se a razão pela qual esta fundação tinha de ser apoiada, apesar do rol de dificuldades: estando o colégio situado nos confins de Portugal (“in finibus Lusitaniae”), teriam oportunidade de atenderem as populações rurais (“rudes populos”) desta região com grande proveito espiritual.

2.1. Quinta do Parâmio para responder aos problemas da saúde
Após a IV Congregação Geral, em que se elegeu o novo Geral, Padre Cláudio Aquaviva, os “Definidores” propuseram que se tentasse a construção que pudesse acolher, com maior comodidade, e proteger os habitantes do colégio da força do calor. Todos estavam dispostos a agir de forma rápida e eficaz: o Padre Provincial desloca-se a Bragança com o intuito de ouvir “pessoas” entendidas e o parecer de um “médico”, de forma a resolver os problemas de saúde, não de uma forma pontual, mas radical e definitiva.
Pensou-se, então, na escolha de um local apropriado, que oferecesse as melhores condições, do ponto de vista estratégico, climatérico, higiénico, que pudesse servir de Quinta de recreio, para o descanso semanal dos membros do Colégio. A escolha recaiu na Quinta do Parâmio, que distava, apenas, uma milha da cidade: um lugar relativamente perto do colégio, sadio, fresco, faltando, apenas, as instalações que pudessem acolher os confrades. Passados, apenas, dois anos, entregou-se ao arquitecto da Companhia, Silvestre Jorge, a responsabilidade do projecto que, cinco meses depois, estava apto para ser utilizado.
Quem conhece as características topográficas da região, tem de concluir que os responsáveis do Colégio de Bragança foram felizes na escolha do local, um autêntico oásis paradisíaco no meio da paisagem austera trasmontana.

2.2. Casa do Fogo para os frios do Inverno
Importava, igualmente, dar resposta eficaz aos que se queixavam da inclemência do frio, no Inverno.
Muito posteriormente, quando compensada com as construções da Quinta do Parâmio, mas não podemos deixar de registar a boa intenção dos Superiores de resolverem pequenos problemas do quotidiano que, não resolvidos, acabariam por ter influência nefasta na saúde, sempre necessária para o bem-estar pessoal e disponibilidade apostólica.
As crónicas registam a presença de uma boa casa de fogo, que evitava a ida dos confrades à cozinha para se aquecerem. A sua existência neste colégio era considerada como um facto absolutamente natural e necessário. Por isso se disse, numa das visitas: não he bem que por 3 ou 4 carros de lenha se falte sem a caridade, nem a observancia. Aconselhava-se, igualmente, o cuidado permanente no provimento da lenha necessária.


2.3. Botica e Enfermaria para curar os doentes
O rol de queixas sobre as doenças que grassavam no colégio foi decisivo para a aplicação dos remédios adequados. Sabe-se que Santo Inácio protegia o doente com particular atenção, porque a recuperação do enfermo era prioritária para o serviço apostólico. Por isso mesmo, a enfermaria, com o complemento da botica, com serviço interno e para o exterior, eram rodeadas de todos os cuidados.
Em Bragança, deve ter funcionado, provisoriamente, num dos cubículos; contudo, para os meados do século XVII, temos informação de que o médico Domingos Pires ordenou que se construísse, no piso inferior, uma enfermaria, pois os doentes não resistem ao calor dos cubículos superiores. Com esta medida, preservavam-se os doentes dos malefícios do calor, ao mesmo tempo que ficavam mais próximos do refeitório e igreja.
A crónica de 1657 volta a informar, de forma insistente, sobre a realidade das doenças que atingiam, mais ou menos, um terço dos membros da Comunidade, que obrigou a destinar um dos cubículos para guardar as alfaias da enfermaria.
Curiosa é a observação do médico Domingos Pires quando refere que os sãos passam o dia na ante-sacristia e escada, por serem os lugares mais frescos, concluindo de forma expressiva: se estes nam podem suportar a calma dos cubículos e corredores de sima que fará hum doente, que esta abrazado com febre.
Muitas das doenças derivavam da má qualidade dos produtos alimentares, como foi referido. Este aspecto foi, igualmente, remediado dentro do princípio da comunhão fraterna. Dispomos de informação que refere o envio de várias qualidades de peixe, em bom estado, a partir do Colégio de S. Lourenço.
O consumo da água mereceu a atenção dos responsáveis, porque poderia estar na origem de algumas doenças. Recomenda-se, vivamente, que de nenhum modo se beba água da fonte da cerca. Ao mesmo tempo que, por diversas vezes, se aconselha o consumo da água proveniente da Fonte dos Alfaiates ou de outra melhor e que se guarde em talhas grandes, com púcaros limpos e lugar decente.

3. LEGADO PATRIMONIAL
Também as críticas relativas às deficiências na articulação espacial, que não respeitavam os parâmetros do modo nostro, não permitindo o desenvolvimento normal das actividades de um colégio jesuíta, acabariam por ser resolvidas paulatinamente. Não foi tarefa fácil aos primeiros superiores adaptarem as instalações de um convento de clausura para um colégio de uma ordem apostólica.
Por isso, logo em 1591, se pensou na construção de uma nova igreja, porque aquela que tinham recebido como oferta era pequena e pouco cómoda para os “Consueta Ministeria”. Aprudência que aconselhava a adaptação em vez de demolição ou a escassez de verba terão ditado conservar a antiga remodelada ao Modo Nostro, na medida do possível.

3.1. Portaria
As obras de adaptação iniciaram-se, como era natural, pela portaria comum, antecedido por um belíssimo alpendre, sobrepujado por uma torre quadrangular que detinha o relógio. O início destas obras coincide com a presença de Silvestre Jorge, autor da traça e arquitecto dos aposentos do Parâmio. É absolutamente natural que recebesse a encomenda da traça desta primeira intervenção arquitectónica. Não acompanhou todo o andamento dos trabalhos desta zona, mas mantém-se pormenores nos vãos de portas e janelas que têm a marca deste arquitecto. Para além da beleza e harmonia da forma, cumpre-nos realçar a presença do alpendre da portaria, característicos dos colégios situados em zonas de clima extremos. Mais que a Venustas, procurava-se atender à Commoditas desta estrutura que permitia proteger os pobres da chuva e do calor.
Como era habitual em todos os colégios, aproveitou-se o espaço interior para, à falta de azulejo, decorá-lo com painéis, hoje desaparecidos, que funcionavam ut picturae sermones.

3.2. Área da Comunidade
Foi, com certeza, aquela que menos preocupações causou, porque a adaptação se apresentava facilitada. Aproveitou-se, com certeza, o refeitório; a sala capitular seria utilizada para algum espaço da área escolar; as celas transformavam-se em cubículos, bem como outros espaços: capela doméstica, enfermaria, situada, incialmente, no piso superior, mas que, no século XVII, por razões de conveniência, transitou para um espaço do piso térreo.


3.3. Área das Escolas
A documentação fornece-nos um acompanhamento sequencial das intervenções arquitectónicas nesta área que, como se compreende, teve de receber as alterações de maior vulto, visto que foi preciso transformar um claustro fechado de um convento num espaço que pudesse albergar todos os equipamentos necessários para a aprendizagem escolar. Conservou-se o pórtico, que servia de abrigo para os alunos, e os preservava das intempéries da chuva, neve e calor; manteve-se, ao centro, a cisterna quadrangular, que transmite àquele espaço a marca da austeridade arquitectónica, ao mesmo tempo que desempenhava um papel fundamental em ordem à dessedentação dos alunos.
Os pavimentos das salas de aula eram ladrilhados ou cobertos com soalho de madeira por causa dos grandes frios.
Contrariamente às salas de aula do Colégio do Espírito Santo que estavam revestidas com azulejo, em Bragança, a documentação insiste, com frequência, na caiação dos muros.

3.4. Área da Igreja
Em qualquer colégio jesuíta, a área da igreja concentrava as atenções porque se requeria um espaço que pudesse responder à actividade ministerial e a uma distribuição harmónica de todos os que frequentavam: Comunidade, colegiais e povo em geral.
Ao ser construída, de raiz, para um convento de clarissas, dificultou, ainda mais, as obras de adaptação. Recorde-se que a arquitectura da igreja de qualquer mosteiro ou convento femininos obedece a normas rígidas, adaptadas a essas circunstâncias, nomeadamente, à disposição da entrada principal e do coro baixo.
Em Bragança, respeitou-se a entrada lateral e eliminou-se o coro baixo a fim ganhar mais espaço, aproveitando-se a zona do coro alto que funcionava como tribuna destinada à comunidade e colegiais. Apesar de tudo, na mente da Comunidade, persistiu sempre a convicção que seria preferível optar por uma nova construção adaptada ao Modo Nostro, mas que nunca chegou a concretizar-se pelas razões já expostas. Começou a ser utilizada a partir dos primeiros momentos da fundação, em 1561.
Dotada de nave única, pouco a pouco, foram-se introduzindo novos elementos, essenciais numa igreja da Companhia: altares laterais, que serviam de pólo devocional das confrarias instituídas; confessionários, embebidos na espessura do muro, a fim de se ganhar espaço; em 1692, um púlpito novo, de pao preto marchetado de bronze, substituiu o antigo provisório; valorizou-se a capela-mor com um retábulo de talha barroca e construíram-se os altares colaterais como refúgio seguro das abundantes relíquias que o colégio possuía.
A sacristia foi alvo de cuidados particulares que se traduziram na singeleza do tratamento do lavabo (1660) e do armário embebido na parede (1660), bem como no esplendor dos arcazes, armários e das pinturas e talha barroca dos painéis do tecto (1657), que a transformaram numa das sacristias mais belas da Companhia, em Portugal, que urge conservar e restaurar.
Não queria terminar este item do legado patrimonial sem me referir a um tema que, há bastante tempo, tem sido objecto das minhas reflexões que, por vezes, contrastam com opiniões e “intervenções” recentes (inclusive na cidade de Bragança).
Refiro-me ao problema da cor. Hoje fala-se, discute-se, com frequência, acerca da utilização da cor. Diz-se que as cidades têm cor e concordo. Em Roma, por exemplo, existe uma portaria camarária que obriga os seus habitantes a utilizarem, nas paredes exteriores, uma gama de cores que vai do amarelo claro até ao ocre escuro. A norma existe e cumpre-se, emprestando à cidade uma uniformidade e harmonia cromática. E em Portugal? E em Bragança? Não é este o momento adequado de responder a estas perguntas, mas penso que posso prestar um pequeno contributo, apresentando um conjunto de testemunhos acerca da cor predominante, nesta cidade, nos meados e finais do século XVII:
– 1643: Caiou-se toda a igreja;
– 1646: Seis alqueires de cal para a igreja;
– 1651: Rebocou-se e caiou-se a igreja e corredores;
– 1657: À falta de azulejo, mandou-se caiar e branquear a igreja;
– 1667: Caiem-se as classes;
– 1692: Branqueou-se o colégio várias vezes e hoje fica também por fora.
Com este breve núcleo “documental” pensamos que respondemos às perguntas formuladas, sem que pretendamos dar uma resposta definitiva, mas que pode contribuir para um esclarecimento, porque não se trata de afirmações gratuitas, mas de documentos datados com precisão.


4. LEGADO CULTURAL
Um capítulo da vida do Colégio de Jesus de Bragança que não está suficientemente estudado, muito embora tenhamos que relevar alguns passos importantes, entre os quais, cumpre-nos mencionar a publicação do “ Catálogo da Biblioteca do Colégio do Santíssimo Nome de Jesus de Bragança”, levado a cabo pelo Dr. Belarmino Afonso, organizado por temas: Direito civil e canónico; Teologia moral especulativa; Santos Padres; Pregadores; Livros históricos; Humanistas; Livros filosóficos; Livros Ascéticos.
O registo das obras da Livraria comum a que é necessário acrescentar os livros existentes nas salas de aulas, bem como nos cubículos dos membros da Comunidade revelam a elevação do nível cultural do colégio. Desconhecemos os espólios das bibliotecas de outros mosteiros e conventos da cidade, contudo, somos induzidos a pensar que se tratava do núcleo principal, parte do qual ainda pode ser consultado na biblioteca do Arquivo Distrital de Bragança.
Os estudos do colégio iniciaram nos primeiros anos de fundação, 1562-1563, com duas classes de latim, uma lição de casos de consciência, e escola de ler e escrever. Estamos, portanto, perante o perfil de um colégio de pequenas dimensões. De realçar a lição de casos de consciência, que deveria ser frequentada pelos párocos em ordem à pregação e confissões.
A adesão da cidade e arredores foi positiva, pois, em 1561, as aulas eram frequentadas por 130 alunos que, no ano de 1570, atingiam o número de 300.
Animado pelo sucesso, querendo imitar o exemplo de Évora, escreveu ao Provincial solicitando a abertura de dos cursos de Artes e Teologia em ordem à criação de uma Universidade.
Em dois séculos de actividade, pode-se afirmar, sem margem para dúvidas, que o Colégio de Jesus de Bragança, constituiu um pólo essencial de formação cultural da região transmontana para a época.

5. LEGADO RELIGIOSO
A abertura de qualquer residência ou colégio da Companhia visava, acima de tudo, atingir determinados objectivos religiosos através da pregação, confissão e comunhão.
Para além destes Ministeria Consueta, que definiam o carisma dos seguidores de Santo Inácio, promoviam certos cultos que alimentavam vida devocional dos membros da Comunidade, colegiais e do povo cristão.
Entre as devoções cultivadas, é preciso distinguir os que eram comuns a todas as casas da Companhia e as específicas de cada colégio, casa professa ou residência.
Relativamente às primeiras, cabe mencionar a promoção do culto dos Santos da Companhia. Sabe-se que, em 1628, se construiu um retábulo com “4 nichos para os nossos 4 santos”, que correspondiam, regra geral, a Santo Inácio de Loiola, São Francisco Xavier, São Francisco de Borja e São Luiz Gonzaga.
No caso de Bragança, permanece a dúvida em saber os dois “santos” que acompanhavam Santo Inácio e São Francisco Xavier, canonizados em 1622, enquanto que os outros foram canonizados em data posterior a 1628, concretamente em 1671 (São Francisco de Borja) e 1726 (São Luiz Gonzaga). No inventário de incorporação dos bens do colégio, após a expulsão, alude-se a uma imagem de São Francisco de Regis, beatificado em 1716 e canonizado em 1737.


No âmbito devocional, paralelamente ao culto dos Santos da Companhia, impõe-se realçar o conjunto de Congregações – o nome utilizado na Companhia de Jesus para designar o conceito de confraria. Este será, porventura, o capítulo mais brilhante do legado religioso outorgado pelos jesuítas à cidade de Bragança:
• 1579: Congregação de Nossa Senhora da Anunciação: a mais antiga, integrada pelos escolares.
• 1616: Congregação de Nossa Senhora dos Anjos.
• 1621: Congregação de Nossa Senhora dos Prazeres: integrada por oficiais casados que celebravam a festa da padroeira, no primeiro Domingo desimpedido depois da Páscoa.
• 1650: Congregação de São Francisco Xavier.
• 1710: Congregação de Santa Bárbara: integrada pelos nobres da cidade.
Instruída pelos Padres do Colégio para implorar a protecção de Santa Bárbara contra os efeitos nefastos das trovoadas, tão frequentes nesta zona. Convém, contudo, não perder de vista o essencial desta devoção. Os devotos imploravam à santa que os libertasse dos efeitos dos raios das trovoadas porque podiam encontrar-se em situação de pecado e não reconciliados com Deus. O pânico à morte repentina, no século XVII e XVIII, constituiu uma das obsessões das populações. Esta foi a verdadeira razão da instituição desta Congregação que visava promover o culto a Santa Bárbara. O Colégio dispunha de duas capelas: uma na igreja e outra dentro da própria cerca.
Concluímos este capítulo do legado religioso referindo-nos à importância e influência das Relíquias nesta cidade, cujo culto foi promovido, de forma insistente, pela Companhia e neste Colégio de Bragança. Contam-nos as crónicas que, em 1573, se recebeu com muita devoção e solenidade uma relíquia das 11 000 virgens, enviada pelo Padre Francisco de Borja. Existem testemunhas constantes sobre o apreço das relíquias que obrigou à construção, em 1610, de um tabernáculo com seus compartimentos. Porque o número aumentou e a devoção se ampliou, nos meados do século XVIII ergueu-se, ao lado da capela-mor, um nicho que pudesse albergar tão elaborado número de relíquias.
Concluímos com a convicção de ter demonstrado, ainda que de forma sumária, que a Companhia de Jesus, nos dois séculos de permanência na cidade de Bragança, deixou um precioso legado patrimonial, cultural e religioso que importa conhecer, conservar para manter viva a memória desta cidade.


BIBLIOGRAFIA
AFONSO, Belarmino (1975), O colégio do Santíssimo Nome de Jesus de Bragança, Coimbra (dissertação de licenciatura. Texto dactilografado).
AFONSO, Belarmino (1990), “A livraria do Colégio do Santo Nome de Jesus de Bragança”, in Boletim do Arquivo da Universidade de Coimbra. Coimbra: volume X.
BANDEIRA, Ana Maria Leitão; PITA, João Rui Rocha , “Sequestro dos bens do Colégio de Jesus de Bragança. Aspecto particular da sua botica”, in Brigantia. Bragança: volume X, n.º 3.
Cartapacio novo das visitas dos Padres Provinciais e Visitadores de Bragança de 1619 a 1756.
Madrid: Biblioteca Nacional, ms 8239.
Cartapacio velho das visitas dos Padres Provinciais e Visitadores, Madrid: Biblioteca Nacional, ms 8557.
FRANCO, António (1726), Synopsis Annalium Societatis Iesu in Lusitania, Augsburgo. Libro de cuentas del colegio de la Companhia de Jesus de Bragança (1637-1699), Madrid: Biblioteca Nacional, ms 8243.
MARTINS, Fausto Sanches (1994), A arquitectura dos primeiros colégios jesuítas de Portugal:
1542-1759. Cronologia, artistas, espaços. Porto: tese de doutoramento – texto policopiado.
RODRIGUES, Francisco (1930-1950), História da Companhia de Jesus na Assistência de Portugal, Porto, 7 vols.
TELES, Baltasar (1645-1647), Chronica da Companhia de Jesus na Província de Portugal, Lisboa, 2 vols.
Fausto Sanches Martins
O Património histórico-cultural da Região de Bragança / Zamora
Coordenação: Luís Alexandre Rodrigues

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