terça-feira, 29 de março de 2016

Intenso Nordeste

O despontar da primavera levou-nos a uma das regiões mais puras e selvagens do país. E uma das mais férteis, também: em histórias, em sabores, em paisagens. Uma terra que se chama Fria, ainda que, à nossa espera, haja sempre uma lareira acesa, um sorriso caloroso e a ocasional posta de vitela sobre as brasas. Viagem intensa, muito intensa, por cidades e aldeias do canto nordeste de Portugal.
OCTÁVIO PASSOS/GLOBAL IMAGENS
A vila de Vinhais é pequena. Encaixa no Parque Natural de Montesinho, serve-lhe de porta. Há visitas a fazer ao centro cultural, ao Museu de Arte Sacra, ao Parque de Artes e Ofícios. Pelas ruas, conversa-se com a amis­tosa gente local, respira-se ar puro, explora-se as ruínas do castelo. E almoça-se num dos vá­rios restaurantes de pouca cerimónia, mas em cuja carta está bem expressa toda a suculência da terra. O menu do dia da Churrasqueira Vasco da Gama chama a atenção: estão lá anunciados os cuscos, as bolinhas de massa de trigo barbela que continuam a ser um se­gredo caseiro transmontano. Mas Zélia, a co­zinheira, de pronto pede desculpa pela ilusão.

«Pus o tacho ao lume, enganei-me e me­ti-lhe arroz.» Nem tudo se perde: «Mas temos alheiras caseiras.» Vieram elas, feitas por Zélia, que cozinha ali, com o marido e a irmã Adria­na, há 16 anos. Às alheiras juntaram-se uns gre­los puros de sabor, uma conversa com a famí­lia que serve carnes de criação e um inespera­do encontro com Rita Blanco e outras atrizes do filme Amen, de João Canijo, que de janeiro a março montaram residência em Vinhais.

Parte da equipa ficou instalada no Par­que Biológico de Vinhais, espaço de cinco hectares dentro do Parque Natural de Montesinho, que se tem tornado polo de atra­ção de visitantes, em boa parte pela graça do alojamento que oferece, em bungalows ou em pods equipados com conforto de hotelaria, postos em redor de uma piscina biológica. O parque é um excelente exemplo de como transformar espaço degradado num lugar de grande interesse para o público na natureza.

«Isto é a montra do que é o Montesinho», diz a diretora Carla Alves, explicando a origem do projeto, aberto em 2008, apoiado pelo seu congénere de Gaia. Tem crescido sustentadamente e vale mesmo a pena a visita, para ver de perto javalis, veados e corços, vacas e bois, ovelhas e cabras e até as quatro raças portu­guesas de galinha. Quem fizer a volta toda sai de lá a saber muito mais sobre estes bichos e também sobre os cogumelos do Montesinho.

FOTO PEDRO GRANADEIRO/GLOBAL IMAGENS
Essas lições encontram-se em dois edifí­cios de madeira. O Centro Interpretativo das Raças Autóctones Portuguesas, onde figuras em tamanho real de 55 bovinos, caprinos, ovi­nos, suínos e cães de gado permitem compre­ender, a olho nu, as subtilezas da biodiversidade. Ao lado, no Centro Micológico, aprende-se sobre cogumelos. Além destes centros, pode-se montar a cavalo, andar de bicicleta e cami­nhar em percursos sinalizados.

2. NATUREZA, NO PARQUE NATURAL DE MONTESINHO

Do Parque Biológico, uma boa estrada de montanha leva à aldeia de Moimenta da Raia, na borda com Espanha, passando por várias outras aldeias do Parque Natural. É um percurso para ir parando, olhando e respirando ar puro, sem atrações turísticas organizadas - e ainda bem. Porque o caminho faz-se de postal em postal, com montanhas em cujo topo, nesta época, ainda se vê uma cobertura de neve, e a paisagem é feita de carvalhos e castanheiros. Todo o conjunto revela um viver genuíno, onde a simpatia transmontana está sempre presente - ora indicando direções, ora apontando os lugares de interesse, ora apenas falando da sua pena de ver as aldeias esvaziando-se de gente e, sobretudo, da sua juventude.

Moimenta da Raia é exemplar desse viver e dessa inquietação, com a pequena escola primária no centro, encerrada há poucos anos, a ter nas costas o moderno lar de idosos. É atravessar a aldeia com atenção às portas que indicam os fornos e a forja comunitária, até onde acabam as casas e começam os campos, lugar onde fica a igreja matriz, que é, como indica a placa, uma construção «de inesperada imponência no local», porque foi ampliada quando ali mandava a Sé de Miranda, no século xvii.

Para ir dali à aldeia de Montesinho, há que baixar quase até Bragança pela Nacional 103, passando por mais algumas aldeias, entre elas Parâmio, onde se encontra um dos poucos lugares para comer. Foi por quase não os haver no Montesinho que o casal Manuel João e Elisabete Costa resolveram acumular os soutos e o rebanho de duzentas ovelhas com a empreitada de transformar o armazém agrícola que era do avô dele num restaurante, aberto há menos de um ano.

É um pequeno lugar desprovido de rodeios decorativos, porém com detalhes que honram o nome escolhido - Taberna O Capelas, a alcunha desse avô lavrador. Jun­to ao balcão do café, há um pedaço de rocha de onde brota água de nascente e onde o ca­sal criou uma fonte, sendo aí que os clientes vão encher o jarro para a mesa. E a água es­coa para um pequeno aquário de trutas, construído no chão da sala de refeições. O que se come ali é o que a família cria, co­mo o fumeiro feito por Elisabete, e enormes nacos de vitela, vaca ou cordeiro, sem possi­bilidade de sair em desconsolo.


FOTO PEDRO GRANADEIRO/GLOBAL IMAGENS
3. VIDA DE CIDADE, EM BRAGANÇA

Mal acaba o Montesinho, começam os prédios dos subúrbios de Bra­gança. Na cidade, porém, o centro histórico está a crescer em graça, com os solares brasonados em re­cuperação, uma oferta cultural a namorar a arte contemporânea, sem ofus­car a robusta cultura tradicional. Bragança é airosa, cheia de luz, com as margens do rio Fervença a convidar a passeios com calma e com uma ligação direta entre a Sé e o Caste­lo que tem de ser feita a pé - e com muitas pa­ragens para fazer, todas elas enriquecedoras. Vamos, então, do Largo da Sé à Rua de Abílio Beça, com a primeira escala no Centro de Arte Contemporânea Graça Morais, equi­pamento que abriu portas em 2008, coroan­do uma década de intenções de ligar dois mu­seus - aquele e outro, em Zamora, dedicado ao arquiteto espanhol Rafael Moneo.

O centro brigantino instalou-se numa ca­sa solarenga recuperada com projeto de Sou­to de Moura, em parceria com o Museu de Serralves. A obra de Graça Morais é rainha e já permitiu fazer 17 exposições em seu nome. «Ela continua em grande atividade e isso per­mite-nos mostrar trabalho inédito», diz o di­retor do CAC, Jorge da Costa. Mesmo ao lado, está em obras mais um equipamento a inau­gurar em maio, o Centro de Interpretação Se­fardita, e alguns metros abaixo, no número 75, o Centro de Fotografia Georges Dus­saud, nascido do encantamento do fotógra­fo francês por Trás-os-Montes, cuja vida quo­tidiana e momentos festivos fotografou so­fregamente, e que evoca a sua amizade pelo escritor Miguel Torga.

Ainda antes de chegar ao castelo, pode-se (deve-se) entrar no Museu do Abade de Baçal, grande e carismática figura da etno­logia e história local, porque em poucos lu­gares há tanto e tão variado para ver, mercê das coleções próprias e das parcerias com en­tidades como o Museu da Presidência. Além da exposição permanente, com obras de Abel Salazar, Almada Negreiros e Sarah Afonso, pode ver-se arte sacra, porcelanas, arte con­temporânea e, para quem apreciar a fundo, pedir uma visita guiada. Se se tiver a sorte de ter como guia Ana Luísa Pereira, a coordena­dora do Serviço Educativo, tanto melhor. A brigantina que regressou à terra após ter vivido no Porto e em Lisboa é uma entusias­ta de Bragança. «Não temos aqui gente, mas não se percebe, porque é um lugar tão bom para viver». Perceber, até percebe, mas pre­fere arregaçar as mangas - dirigindo um pro­grama de formação estética e artística que faz itinerância nas escolas das aldeias.

FOTO PEDRO GRANADEIRO/GLOBAL IMAGENS
Por fim, alcança-se a cidadela, um lugar ainda autêntico e admiravelmente preserva­do. E o castelo, que faz as delícias de qualquer um, pequeno ou crescido - ou há alguém que não goste de soltar a imaginação caminhan­do sobre ameias? Dentro do castelo, é inte­ressante a visita ao Museu Militar, que exibe, através de muitas peças antigas, aspetos da vida defensiva do país, desde a constitui­ção do reino até à II Guerra Mundial. E, fora dele, na cidadela, o pequenino Museu Ibéri­co da Máscara e do Traje mostra, a um tempo, as máscaras das festas tradicionais e honra o trabalho dos seus artesãos.

E no que diz respeito a comer bem em Bra­gança, destaquemos, por agora, sobretudo a aposta de António Gonçalves e Óscar Gon­çalves, de 30 e 40 anos, conhecidos como os irmãos Geadas - o cognome ficou-lhes do pai, Adérito, que abriu há quase 40 anos o restau­rante O Geadas em Bragança, depois de um primeiro negócio em Vinhais. Com a sua mulher Iracema a comandar a cozinha, con­tinua ser uma referência de pratos de base tradicional soberbamente cozinhados, mas os filhos decidiram catapultar a marca de fa­mília para outro patamar.

Em parceria com o grupo Pestana, assumiram há dois anos a gestão da Pousada de São Bartolomeu, um edifício de 1959, projetado pelo arquiteto João Loureiro numa encosta de Bragança de onde se avista, com privilégio, o castelo e o centro histórico de todos os quartos e ainda das janelas do restaurante G - onde fizeram o investimento de algum risco de criar cozi­nha de autor em Bragança, apenas assente em produtos regionais de alta qualidade.

Na pousada, a ideia é preservar o acolhi­mento de proximidade «do início das pousa­das», explica António, que dirige a parte hote­leira. A decoração está no mesmo estilo rétro da abertura, porém com um toque pessoal do novo diretor, que pôs à vista um fabuloso mural de azulejos de Júlio Resende e distribuiu peças de artistas contemporâneos locais pelas salas. No restaurante G, impôs-se uma ruptura. Pas­sar do «conceito de regionalidade para o con­ceito de contemporaneidade», refere António.

Na cozinha, Óscar, o irmão mais velho, trabalha apenas carnes de raças autócto­nes, produtos de época escolhidos a dedo e outros ainda que estavam já em desuso, in­cluindo na agricultura, mas que foram re­cuperar em prol da criação de sabor. Um de­les é a escorcioneira, uma raiz comestível de sabor semelhante ao nabo, porém mais delicado, que surge no desconstruído ba­calhau com todos. O menu de degustação é uma viagem por quase tudo o que se come em Trás-os-Montes, e honrando alimentos tão básicos como o pão e o azeite, por onde se faz demorada entrada. A refeição prosse­gue por pratos de base clássica, como a em­pada de perdiz, mas sempre com uma espi­ral de sabores inesperada, neste caso, uma fresca cama de fruta e legumes. Já o lom­bo de veado surge rodeado daquilo que o animal come, como batata, cogumelos e ba­gas, entre outras prendas silvestres, prepa­radas para consolo humano.

No centro histórico, para uma refeição mais modesta, mas interessante para outros propósitos, há a novidade da pequena casa focada em cogumelos. Trata-se de O Ba­toque, projeto de dois amigos - Francisco Touças e Mário Tavares - que a ele juntaram Werner Ritter, cozinheiro suíço ali instalado há alguns anos. Numa ruazinha do centro, o pequeno espaço abre ao fim da tarde para servir quase exclusivamente petiscos feitos com cogumelos, e recomenda-se pedir vá­rios pratos para partilhar, começando pelos ótimos rissóis, fritos instantes antes de che­garem à mesa. E de Bragança, segue-se ca­minho para outros recantos do Nordeste.

4. PLANALTO MIRANDÊS: NO DOURO INTERNACIONAL

O isolamento de séculos, a proximida­de com a região de Castela e Leão e as restrições à produção após a entrada de Portugal na CEE moldaram o Pla­nalto Mirandês, transformando-o naquilo que é hoje. No planalto e nas arribas, que integram o Parque Natural do Douro Internacional, as populações ainda lembram histórias de contrabando e pobreza, mas também de solidariedade. Este território, onde se fala uma língua própria - o mirandês, com as suas variantes - onde há animais úni­cos como o burro ou os bovinos de raça miran­desa, está a reinventar-se, a voltar a ter orgu­lho nas tradições, a repensar a agricultura e a adaptar-se a um apelativo mercado turístico. E está a fazê-lo mantendo a ligação à identida­de cultural, à natureza e às pessoas.

Foi mesmo esse o objetivo da Associação de Municípios da Terra Fria do Nordeste Transmontano quando decidiu criar a Rota da Terra Fria, definindo circuitos e integrando di­versas parcerias. Pedro Cordeiro, engenheiro agrário alentejano que deixou Portalegre para trabalhar no Nordeste Transmontano, promo­ve com o seu projeto Douro Pula Canhada vá­rias experiências dentro da rota. «A ideia ini­cial era fazer só percursos pedestres e birdwatching». Mas, «face à riqueza da região», o projeto cresceu, desde a sua criação em 2012, e hoje dá a conhecer - com passeios de jipe, BTT e canoagem -, o património natural e cultural de forma integrada e em contacto com os ha­bitantes, que conhece bem. Durante uma ca­minhada para visitar o castro de Vilarinho dos Galegos (Mogadouro), nas arribas do Douro, mesmo quando fala de história, Pedro não lar­ga o binóculo, que leva à cara frequentemen­te para observar com entusiasmo os primei­ros abutres-do-egito do ano, animal-símbo­lo do Parque Natural, ou os muitos grifos que planam entre as escarpas do rio que separa Portugal e Espanha. Em baixo, este apresen­ta-se com um correr tranquilo, moldado pe­las barragens que foram construídas a par­tir dos anos 1950.

Foi um Douro bem diferente que Ângelo Arribas conheceu na sua infância, em Freixiosa, aldeia no concelho de Miranda delimitada pelo planalto, de um lado, e as escarpas, do outro. «Antes, o rio era muito mais rápido e baixo. Passávamos a pé para Espanha, seguros por uma corda», recorda aquele que é um dos mais famosos gaiteiros de Miranda, lembrando os tempos da ditadura e as aventuras do contrabando. No cimo das arribas, que percorre a passo rápido e intrépido, explica que «ali se semeava o centeio», e, mais perto do rio, as oliveiras. «Os tempos do contrabando eram uma "escravidão"», admite. Café, sabão, aguardente e até dinamite eram transportados durante a noite por carreiros que hoje parecem intrans­poníveis. Durante a Guerra Civil Espanhola, passava-se também pão e conservas, evitando o olhar dos carabineiros, sempre prontos a dis­parar. No topo da arriba, Ângelo tira da mala a flauta, o tambor e a gaita-de-foles, instrumen­tos que ele construiu. O céu e os montes enquadram o cenário do vale, por onde ecoam sons tradicionais de festa e de trabalho.

O momento dá sentido ao slogan que António Carção inventou para a região - um «cachico de l cielo na tierra». Um pedaço de céu na terra. Carção transformou, há quatro anos, a casa do bisavô, em Sendim, num espaço de turismo rural, o Curral de l Tiu Pino. Este professor de Educação Física, que já foi vereador da Cultura em Miranda e esteve envolvido na promoção do mirandês a língua oficial, quis valorizar o passado do bisavô, o tiu Pino. Era um «agricultor remediado, um homem bom» que abria a sua casa para abrigar da intempérie quem passava com o carro de bois repleto de trigo, aveia, batata. Na entrada, foi conservado o carro de bois do pai ainda com os cestos da vindima. Carção lembra-se de faltar às aulas para pisar uvas no lagar, que hoje, recuperado, é sala de estar de quem pernoita no Curral. O espaço é composto por quatro estúdios com cozinha e outros tantos quartos.

Muito mudou desde os tempos em que se fazia vinho nos lagares antigos. A vinha já não é predominante na paisagem, como não o é o cereal que até aos anos 1980 fazia do Planalto Mirandês o segundo «celeiro» de Portugal

Depois da entrada na União Europeia, houve apoios para o arranque das vinhas e abandono do cereal e incentivos à reflorestação. Mas nem sempre o conhecimento e a tradição se per­dem de uma geração para outra. Ainda em Sendim, encontramos o produtor e enólogo José Preto, que cresceu entre vinhas e lagares, e testemunhou a criação da denominação de origem Trás-os-Montes e da sub-região Planalto Mirandês. O avô fazia e vendia vinho antes da criação da adega cooperativa do Ribadouro. José Preto tem a sua própria adega, herança familiar que renovou. As vinhas, nas encostas do Douro são conduzidas em tradi­cional «cabeça de salgueiro», muito próximas do solo, o que permite maior controlo das uvas. Este ano, vai lançar o seu primeiro branco.

Uma visita a Sendim não fica completa sem se ir ao restaurante Gabriela, que se gaba de ser o primeiro a servir a afamada posta. A Gabriela, que na verdade se chamava Ana das Dores Morete, era conhecida pela sua lín­gua solta e a farta penugem facial. Muito nova foi para França e lá trabalhou em restaurantes, após a I Grande Guerra. Quando regressou, montou uma taberna e hospedaria, no edifício ao lado do atual restaurante. Começou a fazer feiras e aproveitou o aparecimento das primei­ras camionetas para carregar mesas e cadei­ras, podendo, assim, servir quem quisesse co­mer sentado e de faca e garfo. Tradicionalmen­te, «os vitelos abatidos nas feiras eram servidos em nacos grelhados em cima de um pão. Ela começou a servi-lo no prato: era carne «pos­ta» no prato com batatas e molho (a receita é segredo de família)», explica Altino, marido de Adelaide, que faz parte da terceira geração à frente do restaurante. Com a construção das barragens, a zona encheu-se de forasteiros e o restaurante tornou-se famoso.

À saída da vila, tempo ainda para visitar a oficina de Armandino Torrão, cuteleiro que fabrica facas, canivetes e outros objetos cortantes. Após voltar da Suíça, onde esteve emigrado, quis aprender cutelaria, ofício com tradição na região (famosa pelas facas de Palaçoulo). «Sempre gostei de navalhas artesanais, personalizadas, e não faço duas iguais», diz.

5. AINDA O DOURO: ALDEIAS, BARRAGENS E ARQUITETURA MODERNA

A poucos minutos de Sendim, para norte, paragem obrigatória em Pico­te. Aldeia com caráter, sítio habitado muito antes da ocupação romana, tem o miradouro da Fraga do Puio como ex-líbris. António Lourenço, que nos recebeu na Casa de l Puio, habita­ção familiar adaptada ao turismo rural, é um bom guia para se conhecer a zona. A poucos metros metros da casa, o miradouro propor­ciona uma vista memorável para o rio. Vale a pena visitar o Terra Mater - Ecomuseu da Terra de Miranda, que apresenta as tradições do planalto. À saída da aldeia, compram-se fu­mados e pão acabado de cozer em forno a le­nha, na Cozinha Regional Picote.

Cinco quilómetros para norte, Barrocal do Douro aparece como um tesouro praticamen­te abandonado. Nos anos 1950, o jovem arqui­teto João Archer de Carvalho foi contratado pela Hidroeléctrica do Douro para projetar a barragem do Picote. Além da barragem idealizou de raiz uma pequena cidade, em es­tilo modernista, longe do convencional «por­tuguês suave» que dominava a arquitetura portuguesa. Desenhou as casas para quadros da empresa e para os restantes trabalhadores, algumas delas ainda habitadas. Uma escola, hoje a funcionar como café, um campo de té­nis, padaria e até um cinema fizeram parte da vida de Barrocal do Douro durante o tempo da construção da barragem, quando lá viviam 6500 pessoas. Hoje, são poucas dezenas. A EDP é ainda proprietária da pousada e da piscina (abertas apenas a quadros da empresa).

Na mesma época, construiu-se a barra­gem da Bemposta (Cardal do Douro), mais a sul. Aqui há outro bairro da EDP, não tão visto­so, mas que vale a pena visitar. A escola primá­ria foi adaptada para turismo rural, as Casas da Arriba, empreendimento da Naturisnor, em­presa que promove também passeios de barco pelo troço do Douro entre as duas barragens.

Voltando a Picote, está-se a meia hora de Miranda do Douro. As ruínas do castelo, a Sé e o Museu da Terra são paragens aconselhá­veis. No centro da cidade pode ficar a conhe­cer-se o trabalho em burel, de que são feitas as capas de honra. A loja de Maria Suzana Castro é um exemplo da recuperação deste ofício. Além das capas, fazem-se naquele tecido pe­ças modernas, como mochilas ou casacos.

No parque urbano do Rio Fresno, à entra­da da cidade, pode passear-se devagar e até, com alguma sorte, avistar lontras. Saindo da cidade e já fora do Parque do Douro Interna­cional está a aldeia de Atenor, conhecida pela Ronda das Adegas, que se realiza em maio, e também por ser lá que tem sede a Associação para o Estudo e Proteção do Gado Asinino, que promove a preservação dos burros de ra­ça mirandesa, que durante séculos foram um dos maiores apoios de trabalho dos mirande­ses. A sede tem uma pequena loja e, ali perto, pode visitar-se o centro onde estão estes ani­mais que estiveram perto de se extinguir. Du­rante o ano, a associação organiza várias ativi­dades, como o Festival do Burro e do Gaiteiro.

6. PALAÇOULO, 500 ANOS DE VIMIOSO E UM RESTAURANTE À LAREIRA

Um aspeto curioso das terras de Mi­randa é o inusitado desenvolvimen­to industrial. Palaçoulo, a seis quiló­metros de Atenor, é a aldeia sem de­semprego da região. As indústrias da cutelaria e da tanoaria empregam centenas de pessoas. Um exemplo de sucesso internacional é a Tanoaria JM Gonçalves, res­ponsável por «abastecer» de pipas famosas adegas. O que começou por ser um pequeno negócio artesanal foi passando de geração em geração. Hoje, ainda na mesma família, é uma fábrica reconhecida internacionalmente. Fabrica pipas para a Francis Ford Coppo­la Winery, na Califórnia (sim, do realizador) e para a famosa bodega Marqués de Riscal, em Espanha. É também nos pipos que de aqui saem que se faz o Barca Velha.

Abandonemos agora o concelho de Miran­da. Rumando para sudoeste volta-se para Mo­gadouro. Para noroeste entramos em Vimioso, que celebra em 2016 os 500 anos do Foral. O Núcleo Museológico da Casa da Cultura, pe­queno e bem organizado, onde se pode ver uma cozinha tradicional ou uma antiga sala de escola primária, pode ser o ponto de partida para a visita ao município, muito conhecido pelo castelo de Algoso, que não deve ser visitado sem antes se passar pelo centro de acolhimento (no centro de aldeia de Algoso). Aqui, é possível conhecer a história do caste­lo, que data da reconquista cristã, e até marcar uma visita guiada ao seu interior e à torre.

Outra coisa boa que Vimioso tem para ofe­recer são os pratos sofisticados do A Vilei­ra, um dos poucos restaurantes da rota da Ter­ra Fria que serve carne mirandesa certificada. Nuno Garcia e a sua mãe Carla Freitas estão no restaurante há 15 anos, data em que o pai o abriu. Entretanto, o pai foi para França abrir o restaurante Plaisir de Portugal, em Créteil, ar­redores de Paris. Nuno mantém o negócio e inovou na carta. Mantêm-se os pratos tradi­cionais, como a posta e a costeleta à mirandesa, o bacalhau da Islândia assado na brasa ou o polvo de Olhão à lagareiro, mas apresentam-se propostas que dificilmente se encontram nestas paragens, como risotti ou especialida­des brasileiras. Em 2014, a casa ganhou o pri­meiro prémio nas jornadas micológicas.

Rumando para sul, termina-se a rota em Mogadouro. E antes da despedida, pode visi­tar-se, na aldeia de Bruçó, a queijaria ar­tesanal Fonte Velha, onde é produzido o queijo Sabor da Aldeia. Há dez anos que Do­na Paula o faz a partir do leite das suas duzen­tas ovelhas, que o marido trata de criar. O gos­to pelo ofício é antigo, pois já fazia queijo com os pais. Hoje, a sua queijaria é a única certifi­cada na região.

Tempo para a última posta, agora no res­taurante A Lareira, no centro de Mogadou­ro. O chef Eliseu Amaro é natural de Sendim e trabalhou, muitos anos, no restaurante de lu­xo Le Grand Veneur, em Barbizon, França. Ali aprendeu as artes da rôtisserie que agora apli­ca na lareira do seu restaurante, onde grelha a carne diante dos clientes. É já um prenúncio dos limites da Terra Fria. A Terra Quente co­meça mesmo ali ao lado.

DORA MOTA E LUÍSA MARINHO
Jornal de Notícias
EVASÕES

Sem comentários:

Enviar um comentário