domingo, 5 de julho de 2020

O Velho Sendinêz e o Cavalo do Espanhol

Por: José Mário Leite
(colaborador do Memórias...e outras coisas...)


Fracisco Niebro, no seu livro Belheç relata-nos as reflexões de um velho mirandês, há mais de cinquenta anos, sentado no poial da sua porta de casa, em Sendim. Falava assim o sendinês: “Andan uns tius de baixo pulas arribas a fazer marcaciones para ua presa na Bemposta. Ban a roubar un cacho de las arribas cumo fazírun als de Bilachana e als de por ende arriba. Ls filos de la eiletracidade pássan po riba, mas parqui nada bem. A roubar nien un rico s’aguanta, a quantas mais un probe”.
Igual desabafo poderia ter um velho pastor que na Póvoa, nos dias de hoje, se sentasse numa das muitas fragas sobranceiras ao Sabor, a olhar para o complexo hidroelétrico da Quinta das Laranjeiras.
A eletricidade que vai para Lisboa tem um custo e há que incluir nesse custo a paisagem perdida e a impossibilidade de fruição de momentos que apenas poderão ser revividos nos recônditos da memória. E contudo era necessário fazer a barragem. E contudo foi bom tê-la
feito, mesmo que se perspetive que não houve ainda a capacidade por quem tem o direito e dever, de por tão elevado património fazer pagar, a quem dele beneficia, o justo preço.
Conta-se que um espanhol resolvendo economizar nos custos começou a diminuir a ração que dava ao seu cavalo. O animal começou a estranhar, a queixar-se e a emagrecer, mas o dono achou isso natural e levou-o à conta da necessária habituação ao novo regime. E continuou a reduzir-lhe a porção de comida que lhe dava. Inevitavelmente o equídeo acabou por morrer. “Justo ahora que se había acostumbrado a no comer, va y se muere”. Obviamente que a história é exagerada, como muitas das histórias que pretendem ter uma lição moral, final. Mas pode ser reescrita de forma a aumentar a sua credibilidade e ter, por consequência, uma superior adesão à realidade.
Nesta nova versão o espanhol tem vários cavalos. E, nos tempos de crise que atravessamos, a necessidade de redução de custos é uma triste mas inevitável realidade obrigando a um corte nas despesas com a alimentação da manada. A escolha do ganadeiro pode ser lógica e reduzir por igual a alimentação de todos os animais ou fazer refletir o esforço todo apenas numa das cavalgaduras como fez o desastrado protagonista da história, tantas e tantas vezes repetida, para ilustrar esforços que podendo ser justificados em dose razoável, deixavam de o ser quando são levados ao extremo.
A construção da barragem das Laranjeiras constitui já uma grande participação dos moncorvenses no necessário esforço para reduzir a dependência dos combustíveis fósseis e tornar a produção de energia, mais ecológica e sustentável. Para além do dever de garantir que o benefício que o litoral tem desta contribuição tem tradução numa justa recompensa, cabe às autoridades locais assegurar que este esforço é proporcional, razoável e distribuído.
Se uns contribuem já com o recurso hídrico não será razoável que o eólico seja suportado por outros para que o respetivo custo seja repartido de forma justa e adequada?

José Mário Leite, Nasceu na Junqueira da Vilariça, Torre de Moncorvo, estudou em Bragança e no Porto e casou em Brunhoso, Mogadouro.
Colaborador regular de jornais e revistas do nordeste, (Voz do Nordeste, Mensageiro de Bragança, MAS, Nordeste e CEPIHS) publicou Cravo na Boca (Teatro), Pedra Flor (Poesia) e A Morte de Germano Trancoso (Romance) tendo sido coautor nas seguintes antologias; Terra de Duas Línguas I e II; 40 Poetas Transmontanos de Hoje; Liderança, Desenvolvimento Empresarial; Gestão de Talentos (a editar brevemente).
Foi Administrador Delegado da Associação de Municípios da Terra Quente Transmontana, vereador na Câmara e Presidente da Assembleia Municipal de Torre de Moncorvo.
Foi vice-presidente da Academia de Letras de Trás-os-Montes.
É Diretor-Adjunto na Fundação Calouste Gulbenkian, Gestor de Ciência e Consultor do Conselho de Administração na Fundação Champalimaud.
É membro da Direção do PEN Clube Português.

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