quarta-feira, 29 de setembro de 2021

REFLEXÕES

Por: Paula Freire
(colaboradora do Memórias...e outras coisas...)

“Há muito, muito tempo....”
Não sabia ainda muito bem o que escrever hoje, neste espaço. É que, às vezes, a imaginação foge-nos para longe e parece que se instala numa núvem de preguiça e letargia, de onde não conseguimos arrancá-la facilmente. E por mais que pensemos, as palavras não querem soltar-se para o papel. Mas enfim, consegui dar-lhe a volta.
E tudo porque um dia destes, sem querer, dei comigo a trautear uma canção tão antiga, tão distante da minha memória, que só mesmo o poder do inconsciente poderia tê-la trazido ao de cima. E então, nesse preciso momento, lembrei-me... da minha infância. E, inevitavelmente, por causa daquela canção, recordei-me do meu pai.
Será que teria alguma coisa a ver com a aproximação do Dia do Pai, dia 19 de Março? Talvez... Diriam os mais antigos, sobre estes pequenos acontecimentos aparentemente tão irrelevantes, que são “coisas do destino”. Talvez...
Parei um pouco e deixei que a minha mente fosse invadida por aqueles momentos quentes e com o doce aroma da infância, quando o mundo ainda nos parece tão grandioso e assustador mas, repentinamente, com um simples click, esse susto morre no horizonte porque ali ao nosso lado está aquela mão ainda maior do que o mundo, que faz desaparecer todos os nossos medos e fantasmas de meninos; a mão forte e corajosa daquele pai sempre alerta não vá o “papão levar a minha menina”, porque isso eu não deixo, nem que ele se transforme num dragão que cuspa fogo pela boca. Penso que todos os pais que amam são assim: protectores em constante movimento!
Recordei-me, então, daquelas tardes de chuva, quando não havia muito que fazer (porque agora, as crianças têm muito mais que fazer do que quando eu era ainda menina, mesmo aos fins-de-semana!!!), e eu ficava sentada no sofá da salinha pequena que tinha uma carpete verde escura e um gira-discos muito antigo, daqueles que já nem naquela altura se viam mais em lado nenhum. Mas era um valente gira-discos! Fazia rodopiar os discos com uma precisão de “mão de mestre” e a música saía clara e sonante invadindo o cantinho aconchegante daquela salinha, enquanto, lá fora, a chuva caía lentamente sobre os vidros da janela deixando escorrer gotas enormes que se reflectiam nos meus olhos quando eu as observava com um olhar distante, como se dissesse: “Aqui estou protegida!”.
E passava aquelas tardes inteiras de Sábado a ouvir os velhos discos de vinil do meu pai. Não sei ainda porque é que com 7 ou 8 anos de idade eu gostava tanto de ouvir as músicas daqueles discos. Mas ficava ali quietinha, com as capas dos discos nas mãos e enquanto a música tocava, eu observava longamente as imagens que haviam sido escolhidas para figurar naqueles álbuns. Haviam alguns que eram “sagrados”. Eram os que ouvia mais vezes e a todos eles atribuía um título à minha maneira de criança. Por exemplo, havia um disco da famosa Grande Orquestra de Paul Mauriat, que tinha na capa o rosto de uma linda jovem com um enorme chapéu na cabeça.
Intitulava-se Un Jour un Enfant, mas eu dera-lhe o nome do “Disco da Mulher do Chapéu Verde”. Havia ainda outro intitulado Êxitos Para Dançar (de Shegundo Galarza) com músicas ainda bastante conhecidas actualmente, pelo menos para as pessoas de mais idade, tais como Pop Corn, If I Were a Rich Man ou Um Canto a Galicia. A este eu dera o nome do “Disco da Mulher das Sandálias”, pois que a imagem mostrava uma jovem de cabelos longos, com um curto vestido e umas sandálias com uns saltos enormes, sentada sobre uma velha mesa de madeira.
Também gostava muito de ouvir o tão aclamado Nelson Ned e a sua tocante canção Os Bairros Pobres da Cidade.
Por certo, não seriam músicas ou canções que a maioria das crianças da minha idade apreciariam. Mas eu gostava de as ouvir! E foi por ouvi-las uma e outra, e outra vez, que elas ficaram gravadas na minha memória, penso que para sempre. E trazem-me saudades daquela infância cheia do calor dos carinhos e abraços do meu pai, que muitas vezes, se sentava também ao meu lado a ouvir estas músicas.
Muito provavelmente, as crianças de hoje, um dia mais tarde terão recordações muito diferentes destas que eu tenho agora. Os tempos de lazer e actividades infantis, tal como o tempo disponível dos pais, modificou-se radicalmente em poucos anos. Mas serão sempre recordações belas, grandiosas, de uma vida que se viveu junto de um pai que soube amar e que, embora pouco pródigo em palavras que deixassem transparecer as suas emoções (elas transparecem-se-lhe sempre no olhar...), tinha um rosto que dizia a todo o momento: “Eu estou aqui, filha, sempre que precisares!”.
E lá ficávamos os dois a ouvir a canção dos Green Windows - para quem ainda possa recordar-se, o nome inglês do quarteto 1111 associado a quatro vozes femininas que, após uma audição em público em Portugal, foram convidadas para gravar em Londres títulos originais de José Cid. Chamava-se “Twenty Years” e era a canção que naquela tarde eu trauteava, em murmúrio, e me trouxe há memória esta simples mas tão reconfortante recordação do verdadeiro amor de um pai: “Há muito, muito tempo, eras tu uma criança / que brincava num baloiço e ao pião / tinhas tranças pretas e caçavas borboletas / como quem corria atrás de uma ilusão...(...) Vem viver a vida amor / que o tempo que passou não volta não / sonhos, que o tempo apagou / mas para nós ficou esta canção...



Paula Freire
- Psicologia de formação, fotografia e arte de coração. Com o pensamento no papel, segue as palavras de Alberto Caeiro, 'a espantosa realidade das coisas é a minha descoberta de todos os dias'.


Sem comentários:

Enviar um comentário