quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Três Lendas do Concelho de Mogadouro

O Castelo de Bouça de Aires

No termo de Urrós [no concelho de Mogadouro] fica o sítio chamado Picão de Bouça de Aires, a que chamam também Castelo de Bouça de Aires, formado por uns rochedos graníticos, muito altos, onde têm aparecido alicerces de casas e onde há uma escada cavada na rocha de quatro ou cinco degraus. Um dos rochedos apresenta cavidades ligadas umas a outras por sulcos, que, cheios de água pluvial durante o inverno, servem de fonte para muito tempo. Foram abertas pelos mouros, diz o povo.
O Castelo de Bouça de Aires apresenta ainda restos de muros nas partes em que a defesa natural fraquejava e são constante preocupação dos sonhadores de tesouros, que frequentemente lá vão esquadrinhar, apesar de nada terem encontrado, mesmo quando sonham com o tesouro três noites a eito, auspício infalível no seu entender e no de toda a crendice bragançana. Numa das escavações apareceram umas contas pretas, assaz volumosas, indício de já estar perto o encanto, mas rugiram logo estampidos terríficos e tudo fugiu aterrado.

A lenda verseja:
Entre o Castelo de Bouça de Aires
E o sítio de Correchá
Há um bezerro de ouro
Quem o achar seu será.
Mas só aparecerá na ponta da relha de um arado a lavrar; porém até hoje ainda nada surdiu...

Fonte: ALVES, Francisco M. – Memórias Arqueológico-Históricas do Distrito de Bragança, vol. IX, Porto, 1934, pp. 153-154.

Capela de Santa Cruz

[Situada no sítio das Eiras, em Ventozelo, concelho de Mogadouro] é tradição que foi mandada construir por um dos ascendentes dos Távoras que, andando em batalha contra os mouros(40), pediu a Deus que o auxiliasse, e se ganhasse a batalha iria, depois dos mouros serem expulsos de Portugal, todos os anos visitar Jerusalém.
Ganha a batalha, derrotados os mouros em toda a linha e expulsos de Portugal, começou ele a cumprir a sua promessa. Foi visitar Jerusalém um certo número de vezes, mas por fim, já velho e cansado com o peso dos anos e trabalhos da vida, não pôde acabar de cumprir a sua promessa. Prometeu então que, em recompensa, mandaria construir um templo no termo de Mogadouro, onde os cristãos pudessem visitar tudo quanto tinha visto de grandioso em Jerusalém(41).

(40) Foram os Távoras uma das famílias mais antigas e nobres de Portugal. Segundo alguns registos históricos, moldados ou diluídos em relatos lendários, têm a sua origem numa mulher moura, de nome Zahara, convertida ao cristianismo. D. Ramiro II de Leão, repudiando a sua esposa, Dona Urraca, raptou Zahara, a qual se fez cristã e obteve por baptismo o nome de Artida. Desta relação nasceu Alboazar Ramirez, cujos filhos viriam a ser ferozes inimigos dos mouros. Um deles, chamado D. Rausendo, foi o progenitor dos Távoras. Ao vencer os mouros, em 1037, nas margens do rio Távora, afluente do Douro, terá nascido aí o nome por que se tornou conhecida esta família (Pereira, 1908: 150). Deste D. Rausendo, a memória oral conserva igualmente o relato alusivo à criação da vila de Santa Marta de Penaguião, no Alto Douro, que é também apresentado neste trabalho.
(41) São famosas as esculturas do interior desta capela, representando os passos de Cristo até ser pregado na Cruz, num registo aproximado dos motivos que o fundador da capela teria observado em Jerusalém.

Fonte: PEREIRA, José Manuel Martins, As Terras de Entre Sabor e Douro, Setúbal, J.L. Santos, 1908, pp. 105-106.

Os forninhos de Alvagueira

No sítio de Alvagueira, que fica a meia encosta do rio Douro, na margem direita da ribeira de Ventuzelo, existem umas palas nos rochedos chamados Forninhos de Alvagueira, e é tradição que foram habitados por uma gentinha brava que se alimentava de frutas e de répteis. Esta gente saía de manhã cedo pelos campos fora e recolhia à noite(42).
Frequentava este sítio uma pastora guardando o seu gado, de quem a tal gente era muito amiga e que muitas noites dormia junto ao curral que ficava a pequena distância do caminho dos forninhos. A pastora chamava-se Maria, e de noite quando os selvagens passavam, perguntavam sempre lá do caminho:

– Ó Maria! Tu estás lá?
– Eu estou – respondia ela.
– Pois eu cá vou – tornavam eles.

Próximo dos forninhos havia uns moinhos ribeirinhos que ainda hoje existem, e diz-se que uma ocasião o moleiro estava a assar, a um grande lume que tinha feito, um bocado de carne de porco aproveitando o pingo numa fatia de pão. Mas de repente entra pelo moinho dentro um homem dos da gentinha brava, com um grande espeto enfiado de lagartos e outros répteis, e pôs-se também a assá-los ao lume, começando por querer pingar com o assado do seu espeto no pão do moleiro, dizendo:

– Pinga tu e pingo eu, e comeremos ambos de mistura.
Ao que respondia o moleiro:
– Assar sim, mas pingar não.

Mas o homenzinho tanto teimou em querer pingar no pão do moleiro que este, já enfadado de o aturar, pega no espeto, que era uma vara de madeira, e dá-lhe duas ou três bordoadas com ele, e foge para Ventuzelo todo atrapalhado, com medo que a gente dos forninhos viesse atrás dele e o agarrasse no caminho. O certo é que o moleiro não voltou mais ao moinho e este esteve abandonado largos anos.(43)

(42) Martins Pereira, num comentário que faz a esta narrativa, identifica esta gente como sendo “árabes humildes que, vivendo bem com os cristãos, ali se refugiaram da crueldade das guerras” (1908:111).
(43) É de referir que Francisco Manuel Alves (Abade de Baçal) et al. (1968: 327) apresenta um relato semelhante a este respeitante ao concelho de Vimioso, onde existem as ruínas de um velho moinho, no ribeiro de Piaduros, no termo de Caçarelhos, que é conhecido como “moinho dos trasgos”. Segundo a lenda o moleiro abandonou-o quando, certa noite, ao assar um bocado de carne, lhe apareceu um trasgo a assar uma “espetada de lagartixas” e a tentar fazer pingar a gordura destas no pão onde ele aparava a gordura do seu assado. É também narrada esta lenda, com ligeiras variantes, na aldeia de Vilar de Peregrinos, no concelho de Vinhais, relativamente ao moinho Mansilha (informação dada ao autor por Olema Natércia Gonçalves). Pela semelhança dos relatos, poder-se-á admitir haver aqui uma certa convergência entre as figuras míticas dos trasgos e dos mouros.

Fonte: PEREIRA, José Manuel Martins, As Terras de Entre Sabor e Douro, Setúbal, J.L. Santos, 1908, p. 111.

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