domingo, 11 de agosto de 2019

Sai dessa noite fria

" No seu corpo havia vestígios de muitos homens, restos de abusos, detritos de vidas desnorteadas. "

Sai dessa noite fria

Pela noite dentro, envolta no nevoeiro, a Lua já ia alta. As folhas velhas de outono estalavam sob o corpo arrastado de Sebastião. Num andar dez e dez à Charlie Chaplin, arrastava os pés um depois do outro. As solas dos sapatos já gastas, mostravam um andar cansado e insinuavam umas meias encardidas pelo tempo que tudo leva, gasta e cansa. Sebastião regressava a casa. Gastara a noite na sala de espera da estação rodoviária. Sentia-se bem por lá, varrendo o chão com o seu andar arrastado, de um lado para o outro, vigiando as chegadas e as partidas dos autocarros.
Na vida de Sebastião houve muitas chegadas e partidas. Queimara as forças da juventude carregando mercadorias nos vagões da CP. Em 75 regressara de Angola onde fizera uma guerra que diziam também ser sua, lutando pela soberania duma metrópole que ele não conhecia. Lembrava-se das lições dos livros da escola primária e das palmatoadas da professora Perpétua. Ensinamentos que duram até hoje, gravados nas palmas das mãos. Só conheceu Lisboa quando foi para a guerra e quando dela voltou. No regresso, andou uns dias perdido em Belém, junto ao Tejo, em labirintos de caixotes de madeira. Procurava uma vida que tinha deixado em África, terra de todos os cheiros e de mulheres de pele de ébano, de curvas generosas, submissas e de sorrisos autênticos. Passou uns meses numa pensão paga pelo IARN, o Instituto de Apoio ao Retorno de Nacionais. Não resolveu a vida pela capital. Regressou à terra, ele e mais 16 000 almas que regressados a Bragança, constituíam 10% da população residente desse distrito longínquo e esquecido.
Passaram quarenta anos, corria novembro dum outono interminável. A noite continuava fria e as poucas folhas das árvores anunciavam a proximidade do inverno e das noites longas. Regressava a casa deixando o quente da sala de espera da rodoviária. Chegando a casa, a rotina diária: como sempre, penduraria no bengaleiro da entrada o casaco de lã, têxtil grosso n.º 2, azul petróleo. Descalçaria os sapatos, conferiria a evolução dos joanetes e calçaria os chinelos de chambre comprados em Calabor. Não gostava das noites passadas em casa. Noutros tempos, seria altura de provar o vinho novo e comer castanhas numa qualquer taberna da cidade, dando sempre primazia à do João Francês, na Rua do Norte. Sempre que o Francês se altercava com a mulher ou abusava das provas com os fregueses, a taberna não abria. Nessas noites, Sebastião rumava às tabernas da Estação de Caminhos de Ferro. Não gostava. A Estação dos Comboios trazia-lhe memórias de outros tempos que não gostava de revisitar. 
Foi numa dessas noites que conheceu Batilde. A solidão de muitos anos e um corpo que de quando em vez, ainda pedia atenções, fizeram-no sorrir a Batilde. A vida tornara-o um homem amargo marcado pela guerra de África e pelo fim dos comboios. Era um solitário. Não se lhe conheciam amigos e de familiares não havia notícia. As portas da taberna do judeu já estavam fechadas. Sebastião e mais um par de bêbados, bebiam as últimas taças de tinto. O grau forte do tinto das Arcas dera-lhe a destreza necessária para sorrir a Batilde. Aparentemente, Sebastião não se importou com a condição de Batilde, mulher da vida que tentava enganar os ébrios atoleimados nas noites longas de desvario. Batilde era um resto de civilização. Pobre, feia e mal amanhada, sobrevivia prestando favores aos que, tal como ela, jaziam pelas cercanias da estação, esquecidos por todos e convenientemente ignorados pelas famílias. Ela não sabia contar a sua história de vida. Não conhecia as palavras necessárias para o relato. A sua destreza intelectual só dava para arranjar maneira de conseguir a malga de caldo que lhe aconchegava o estômago cansado de reclamar. O seu ciclo intelectual recomeçava na última colher de sopa, pensando de imediato quando comeria a próxima… Uns dizem que Batilde viera servir para a cidade em casa de gente rica mas que o patrão a tinha prenhado, desvario que a levou à expulsão da condição de criada de servir da fidalguia. Outros dizem que não resistiu aos avanços persistentes de um marçano que vendia tecidos na retrosaria Confiança. Dizia-se que durante dez dias, fugiram os dois para Espanha onde, em pouco tempo, sacrificaram as economias do marçano. Viveram de expedientes mas não tardaram a ser escorraçados de volta, devidamente escoltados pela Guardia. Duas noites dormidas no Governo Civil e uns favores a crédito ao oficial de justiça,devolveram Batilde à rua, donde não mais saiu.
Naquela noite, Batilde sorriu o seu melhor sorriso a Sebastião, apesar da dentição descuidada, fazia promessas de atenção e insinuava um iminente conforto nos seios abalados, desgraçados pelos ossos do ofício e pelo uso excessivo. Sebastião achou-a bonita. Apreciava a generosidade das carnes há muito curadas. Sem falar, dirigiu-se à mesa do canto e ofereceu um copo de tinto a Batilde. Ela não se fez rogada e de um só trago bebeu o vinho martelado, feito com as águas do ribeiro e com os pós para o vinho comprados no boticário da avenida. Ao beber, fez um esgar de desconforto, alisando a proeminência abdominal, reclamando a ausência de sustento. Percebendo a intenção, Sebastião pediu ao judeu um pedaço de carne gorda e já agora, porque era dia de festa, um cesto de pão e azeitonas. Enquanto Batilde comia, Sebastião olhava-a enternecido. Satisfeitas as necessidades alimentares, as horas tardias aconselhavam o regresso a casa. Sem dizer nada, Sebastião pegou na mão de Batilde e levou-a consigo. Ela não oferecera resistência nem dissera nada. Pelo caminho, dois seres errantes, varriam as folhas da rua, arrastando os pés, ela mancando, ele com os pés de lado. Quem apreciasse o quadro à distância, veria o vapor que saía das suas bocas ofegantes. No caminho, ele à frente, a dez metros atrás, ela. 
E foi assim que Sebastião conheceu Batilde. E foi assim que Batilde resolveu o problema da próxima malga de caldo. Naquela noite, chegados a casa, Sebastião mostrou o quarto a Batilde. Rotinada na sua função, preparava-se para atender as necessidades de Sebastião. Com um simples gesto de mão, o velho negou os preparos.
- Não é preciso, descansa e dorme. Primeiro temos de nos conhecer, de nos aproximar. 
A mulher incrédula, aproveitou as tréguas e esticou o corpo na humilde enxerga. Depois de tantas privações, dias, anos de desconforto, pareceu-lhe um aposento Real. Batilde dormiu doze horas seguidas. Quando acordou não sabia bem onde estava. Passou a flanela dos lençóis pela face e julgou-se no paraíso. Abraçou a almofada de sumaúma e espreguiçou-se mais uma vez. Fora tão bom poder dormir numa cama só para ela sem ter de a partilhar com bêbados mal cheirosos ou outras colegas da vida. Tantas noites mal dormidas ao relento, nos bancos do jardim, sem dinheiro para pagar o quarto lúgubre e bafiento. Levantou-se, os ossos reclamaram mais descanso. Contrariados, lá se encaixaram e sustentaram um corpo abalado e dormente. Chinelando pelo quarto, deparou com a sua triste figura. Olhando para o espelho, vislumbrou a sua triste condição: velha, suja, um trapo, andrajosa, torpe. Feia. No silêncio do quarto, chorou. Sem rumo e sem forças, sentou-se de novo na cama, escondendo a face com ambas as mãos. Soluçando. Sofrendo com o seu destino. O conforto das horas bem dormidas, desapareceu num ápice. Esfumou-se. Por breves momentos, quase se sentiu normal. Com vida. Com objetivos. Com memórias. Com sonhos. Tudo efémero. A dureza dos traços da sua face devolveu-a à realidade. A crueldade que o espelho refletia não dava esperança. Pareceu-lhe durante a noite ter sonhado com uma vida ao lado de Sebastião. Parecia um bom homem. Meigo. Calmo. Podia, talvez, ter uma vida. Não pedia muito. Paz e um pouco de calor nas longas noites de frio. E uma côdea a horas certas. E poder tomar banho de água quente. Em poucos minutos pensou em tanta coisa, quase conseguiu arrumar algumas ideias. Não era habitual. Para não sofrer, desistira de pensar. Sobrevoava os dias com fome, miséria e solidão.
Sebastião bateu levemente na porta do quarto, entreabriu-a e deparou-se com Batilde a chorar, dobrada sobre si, reduzida, mínima.
- Anda! Vem! Não chores. Sai dessa noite fria. Está um dia bonito lá fora. Vamos passear. Preparei-te umas roupas e um banho quente.
No quarto de banho, Batilde desfez-se dos andrajos e mergulhou o corpo em água quente. Deixou-se estar por breves momentos. Estranhou aquele bem-estar repentino, suavemente o corpo foi relaxando. Recostada, fechou os olhos e percorreu o corpo com as suas mãos, radiografando as marcas de uma vida de sofrimento. Cada mazela tinha um nome, um momento… No seu corpo havia vestígios de muitos homens, restos de abusos, detritos de vidas desnorteadas. Massajou o pescoço e os ombros. Sentiu os seios intumescidos, resultado de prazeres há muito esquecidos. Tocou-se. As entranhas queixaram-se, retraindo-se, desabituadas que estavam de toques delicados. 
Naquela água suja, ficariam os resíduos de vidas passadas.




Rui Machado

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