sábado, 3 de dezembro de 2016

O Presépio de lata

"No relógio da Sé, batiam as dezanove, anunciando o encerramento do comércio. Sentei-me nas escadas que servem de base ao Pelourinho. O Perdido chegou com os beiços untados pelos restos do osso e sentou-se ao meu lado. Ficamos os dois a olhar para o Cruzeiro. Lá dentro, o lustre esforçava-se por brilhar. As pessoas foram saindo dos cafés e dos comércios. As ruas esvaziavam-se de gente que ainda há pouco corria apressada com sacos de compras distribuídos pelos dedos das mãos. As últimas compras."
A cidade engalanou-se para mais uma quadra natalícia. Eu e o Perdido deixamos o velhinho 240 D estacionado no sítio de sempre e fomos ver as luzes de Natal. Diziam que estavam muito bonitas. Descemos a Almirante Reis. Havia muito gente. Na drogaria Luso não se cabia. Os pais juntavam os parcos tostões e compravam os brinquedos anunciados na televisão espanhola: carros, bonecas, naves espaciais, pistas de comboio…
Enquanto eu admirava a montra da Luso, o Perdido escapuliu-se para a porta do Talho Gino, a ver se lhe tocava um ossito. Atravessei a rua e vi a senhora velhinha que mora no 13. Tinha escrito os bilhetes-postais para toda a família desejando Um Santo Natal e um Próspero Ano Novo. Que bonitos eram! Comprara os postais aos balcões dos Correios, à Maria Cândida que parece que ainda era sua parenta. Perguntei-lhe se precisava de ajuda e ela percebendo que a minha intenção era outra, disse-me para passar lá por casa, tinha uma coisa para mim.
Não sabia do Perdido, decerto estava enfiado nalgum canto, entretido a roer o osso que o Gino lhe dera. Continuei a descer a rua. Em frente à Perfumaria Transmontana, parei. Gostava de parar por ali e sentir as essências emanadas pelos frasquinhos de vidro. Queria dar um daqueles à Rosa mas eram caros. 
Era quarta-feira e não vi a minha Rosa. Não foi ao cemitério chorar na campa do marido. Esperei toda a tarde à porta do cemitério e nada. Nem lhe pude dar uma flor. Não lhe dei a flor. Coloquei-a na campa do marido da Rosa. Ali jazia Francisco Silveira, morto em combate. Devia ser bom homem pois a Rosa chorava tanto por ele. Nessa tarde de 24 de Dezembro de 1980, não vi a Rosa. E por não ver a Rosa, o dia não estava completo. Uma semana inteira à espera de a ver…
No outro lado da rua, na Pensão Internacional, nas vidraças das janelas viam-se umas luzinhas a piscar e uns sininhos dourados, recortados em papel metalizado comprado na Popular, logo ali abaixo. Desço um pouco mais e uma velhinha de cabelo branco apanhado num crutcho muito perfeitinho parecia esperar por alguém. Estava à porta da Pensão Rucha. Aproximei-me e a velhinha estendeu-me um farnel muito bem aconchegado num pano branco. Porque me oferecia a mim? Para partilhar com alguém especial, que merecesse. Agradeci à velhinha que envolta nas suas vestes negras, subiu as escadas e desapareceu. Cheirei o embrulho. Pareciam rabanadas ou seriam filhós?
Continuei pela Almirante Reis até à Praça da Sé. Na loja dos Coelhos vendia-se de tudo. No Ricardo tiravam-se retratos a meninos muito bem penteadinhos, com coletes aos losangos e calções pelo joelho. A Rosa D`Ouro vendia brinquedos, canetas Parker e outros agrados para o senhor e para a senhora. No relógio da Sé, batiam as dezanove, anunciando o encerramento do comércio. Sentei-me nas escadas que servem de base ao Pelourinho. O Perdido chegou com os beiços untados pelos restos do osso e sentou-se ao meu lado. Ficamos os dois a olhar para o Cruzeiro. Lá dentro, o lustre esforçava-se por brilhar. As pessoas foram saindo dos cafés e dos comércios. As ruas esvaziavam-se de gente que ainda há pouco corria apressada com sacos de compras distribuídos pelos dedos das mãos. As últimas compras. Um bolo-rei e uma garrafa de vinho fino comprados no Vítor Abreu. O Espanhol fechava as portadas e não se vendiam mais peças de pano. Ou botões. O Pinçlas fechava a charcutaria e desaparecia pela Travessa do Zé Machado. Na Rua Direita, a livraria de portas verdes exibia nas montras as novidades e atendia os últimos clientes. Faziam-se embrulhos em papel fantasia, enlaçados com lacinhos feitos de fitas de várias cores. Em frente, o Chico Romão, fechava a porta e apressava-se a beber um tintinho no Nazaré. E a rua morria. E a rua morreu. 
Regressamos ao 240 D estacionado à porta do cemitério. Abri o farnel que a velhinha Rucha me oferecera para “ partilhar com alguém muito especial”. As filhós douradas, moldadas por mãos experientes, estavam lindas e apetitosas. Parti uma ao meio e ofereci uma das metades ao Perdido. 
- Feliz Natal, amigo.
As outras guardei. Eram para a Rosa. Liguei o rádio velhinho que sem pedir licença, debitava versos tristes:

Três estrelas de alumínio
A luzir num céu de querosene
Um bêbedo julgando-se César
Faz um discurso solene
Sombras chinesas nas ruas
Esmeram-se aranhas nas teias
Impacientam-se gazuas
Corre o cavalo nas veias
Há uma luz branca na barraca
Lá dentro uma sagrada família
À porta um velho pneu com terra
Onde cresce uma buganvília
É o presépio de lata
Jingle bells, jingle bells,
Oiçam um choro de criança
Será branca negra ou mulata
Toquem as trompas da esperança
E assentem bem qual a data
A lua leva a boa nova
Aos arrabaldes mais distantes
Avisa os pastores sem teto
Tristes reis magos errantes
E vem um sol de chapa fina
Subindo a anunciar o dia
Dois anjinhos de cartolina
Vão cantando aleluia
É o presépio de lata
Jingle bells, jingle bells,
Nasceu enfim o menino
Foi posto aqui à falsa fé
A mãe deixou-o sozinho
E o pai não se sabe quem é
É o presépio de lata
Jingle bells, jingle bells

(Carlos Tê / Rui Veloso)



Rui Machado

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