sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

Violante Gomes

Chamada pelo povo a Pelicana, célebre na história pela sua formosura e por ser mãe do Prior do Crato, D. António, que ainda chegou a ser aclamado rei de Portugal em Lisboa e Santarém. O apelido de Pelicana provir-lhe-ia da beleza empolgante que todos lhe reconheciam, como querem alguns escritores, ou derivaria naturalmente do amor com que enfeitiçou o régio príncipe D. Luís, despertando assim a ideia de buscar-lho em heráldica, onde o símbolo dos Gomes é um pelicano, que significa extremos de amor... paterno.
Segundo Vilhena Barbosa e o Portugal Antigo e Moderno, a Pelicana era natural de Moncorvo, judia de origem, qualidade que geralmente lhe reconhecem todos os escritores, mas Camilo Castelo Branco pretende concluir do facto de Diogo Carlos, frade franciscano, doutor em teologia, lente da sua ordem, que acompanhou seu primo D. António a Paris e lhe escreveu o testamento em 1595 e filho duma tal Clara, irmã da Pelicana e de seu marido Francisco Carlos, que não proviriam de família judaica por causa das dificuldades na habilitação de genere para a recepção de ordens e ingresso em religião.
Não nos parece razão aceitável, atenta a preponderância da família, ao tempo; a trivialidade do facto de que há muitos exemplos ainda hoje, e que no tempo passado assim foi, vê-se pelos muitos presbíteros que nas listas das diversas inquisições de Portugal aparecem condenados por judaísmo.
Ignoramos de onde consta originariamente a notícia que adscreve a Moncorvo a naturalidade da Pelicana; o mesmo Camilo, lugar citado, diz que Pero Gomes, pai da Pelicana, que, além da anteriormente já nomeada, também o devia ser de Guiomar Gomes, casada com António Carlos, se estas duas não são uma e a mesma, como parece, residia em Évora pelos anos de 1544.
Segundo a tradição, ainda hoje muito viva em Moncorvo, onde ainda há uma rua chamada do Prior do Crato e nela se mostram as casas que dizem haver sido habitadas por sua mãe, o duque de Beja, D. Luís, filho de el-rei D. Manuel, em excursão pelo reino, viu numa dessas célebres feiras, que ao tempo se faziam naquela rica vila bragançana, a deslumbrante Pelicana; ficou preso de tantos prodígios de graça sedutora e... do casamento secreto, verdadeiro ou simulado, como insinua Camilo, lugar citado, ou do simples concubinato, resultou o infeliz pretendente ao trono de Portugal, D. António, Prior do Crato, que nasceu em 1531, segundo querem muitos escritores, ou 1529, no parecer de outros, mas mais provavelmente em 1534.
Violante Gomes recolheu-se depois da sua separação do infante D. Luís a Vairão, de onde passou ao mosteiro de Almoster e lá faleceu a 16 de Julho de 1569.
D. António, para mais justificar as suas pretensões à coroa, tratou de mostrar ser filho legítimo do infante D. Luís; mas sabendo que esta pretensão não agradava ao cardeal-rei nem ao duque de Bragança, fez correr o processo de justificação secretamente diante de Manuel de Melo, clérigo da Ordem de S. João, como lhe facultava a qualidade de Prior do Crato e profissão na mesma ordem, o qual pronunciou a sentença seguinte:

«Christo nomine invocato. Vistos estes autos, etc. Perante a Commissão de minha jurdição, que me foi solemnemente commettida no capitulo provincial ácerca dos negocios e das pessoas, que podem gozar dos privilegios da Ordem de S. João, e como o Senhor D. Antonio é uma dellas, e bem assim vista a procuração de sua excellencia, que por mim foi recebida, prova dada, assim de testemunhas, como de outros documentos, mostra-se que o infante D. Luiz, sendo mancebo e em idade florente se namorara de Violante Gomes, donzella muito fermosa, honesta e de grande graça e descrição, e por seus amores fazer muitos extremos publicos, de muitas invenções, musicas, motes, e cantigas; e como se prova ser tão afeiçoado á dita Violante Gomes, que, forçado do amor que lhe tinha, a recebeu por mulher por doutra maneira não poder conseguir o effeito de seus amores, por a muita resistencia que achou da muita virtude assim na dita donzella, como em sua mãe, e tanto que a recebeu por mulher, logo mandar-lhe chamar Dona Violante; e assim, visto como se prova, que, depois do dito senhor infante ser cazado com a dita senhora dona Violante lhe sahiram muitos casamentos, sem nunca querer acceitar nenhum delles, nem o reino de Inglaterra, que se lhe offerecia, com a rainha Maria, antes dizia que não podia cazar nem ter outro reino, mais que uma cella, em que ao tal tempo estava; e bem assim visto como se prova o dito senhor infante mandar tratar a dita senhora Violante como sua mulher, depois que a recebeu, com vestidos e com joias, e assim no mosteiro lhe mandar tudo de sua caza, e fazer o que ella mandasse, no alto e no baixo, sem ter com ella conta, e assim mandar ao senhor dom Antonio seu filho lhe obedecesse como filho conforme a lei divina e homana, e que nunca pôz os olhos em outra mulher, depois que conheceu e recebeu esta senhora; e outro sim, visto como se prova em seu testamento nomear ao senhor dom Antonio por filho seu simplesmente, sem addição, nem accrescentar natural, e alem disso o instituir por seu herdeiro de toda sua fazenda o que, conforme o direito civil e canonico bastava para se provar, como de feito basta, para ser havido por legitimo; quanto mais que se prova El-Rei e a rainha que estão em gloria, confessaram que o infante recebera a dita senhora dona Violante, e como seu filho legitimo trataram o senhor dom Antonio, nas honras secretas e publicas, e dizerem que não era necessario publicar que era legitimo, pois havia de ser clerigo, e tambem se prova a dita senhora rainha tratar a dita senhora Violante, no mosteiro de Almoster, onde a viu, de tal maneira, que logo pareceu, nas honras que lhe fez, que era mulher do infante, e assim o disseram logo as donas que com ella foram, o que não fizera a dita senhora rainha se ella senhora dona Violante não fora mulher do infante, e fallando-lhe a camareira-mór, dona Joanna de Sá, sobre as ditas honras, respondeu, que tudo merecia, por ser mãe do senhor dom Antonio, e o mais que ela camareira-mór sabia, que era ser mulher do infante, como as testemunhas declaram, e assim visto, como se prova a dita senhora rainha o confessar e dizer, e o tratamento que sempre fez ao senhor dom Antonio ser avantajado do que fazia ao senhor dom Duarte; e outro sim, visto o regimento que o dito senhor infante deu a Sua Excellencia, de como havia de escrever aos fidalgos e senhores, e que ao senhor dom Duarte não puzesse no sobrescrito meu senhor, nem aos duques beijo as mãos, e assim visto como el-rei seu tio se prova lhe dar as armas de seu pae sem labéu de bastardia, o que tudo se não fizera se legitimo não fora; e visto, outro sim, como se trata perante mim nestes autos de legitimidade, no qual caso o direito se contenta com muito menos prova, que tratando-se do casamento, ainda que seja em prejuizo de terceiro; e como se prova as principaes testemunhas de vista não poderem testemunhar e estarem impedidas por quem lho podia defender defeito, com o mais, que se pelos autos mostra, julgo e declaro, pela auctoridade a mim commettida, o dito senhor dom Antonio ser filho legitimo do dito senhor infante dom Luiz e da dita senhora dona Violante, nascido de legitimo matrimonio.

E mando se lhe passem do processo as sentenças que pedir. A vinte e tres de Março de mil quinhentos e setenta e nove annos. = Frei Manuel de Mello».

O cardeal-rei não levou a bem estas pretensões, e para as inutilizar obteve do papa Gregório XVI uma bula de motu proprio com comissão para ser juiz da causa da legitimidade de D. António e poder revogar a sentença retro, que tinha por sub-reptícia. A sua execução foi cometida aos prelados e desembargadores: D. Jorge de Almeida, arcebispo de Lisboa; D. Jorge de Ataíde, capelão-mor, bispo de Viseu; D. António Pinheiro, bispo de Miranda; e doutores Paulo Afonso, Pero Barbosa, Jerónimo Pereira de Sá e Heitor Pinto.
A sentença julgava D. António como filho natural, não legítimo, do infante D. Luís (326). Não entraria por muito nesta sentença a má vontade do cardeal-rei, facto bem assente na história, para com o justificante? Ainda que não queiramos meter em linha de conta o palacianismo dos juízes; excluída mesmo a nota de suspeição pelo lado destes e qualquer tentativa de suborno por parte do monarca, sempre houve muita gente pronta a tudo sacrificar à vontade régia.
Rebelo da Silva acha pouco concludentes as provas apresentadas por D. António, que já tinha cinquenta anos quando foi da justificação, «e a nota de illegitimo – diz ele – é quasi certa»; e acrescenta quanto às testemunhas:

«D. Antonio apresentou testemunhas complacentes achadas entre os da sua familia, que não hesitaram em depôr o que se lhes ensinou, mas interrogadas depois com serenidade pelos ministros do Cardeal D. Henrique, confessaram o perjuro, desmentindo-se. É curiosa e romanesca a pretendida história d’este casamento.D. Luiz deslumbrado pela belleza da Pelicana baqueia perante a sua inabalavel virtude, que não cede senão sanctificada a sua juncção perante os altares».

O seguinte facto é por si só bastante para determinar nos espíritos fortes motivos de dúvida às afirmativas dos que nos dão D. António como ilegítimo.
Na História Genealógica da Casa Real Portuguesa vem transcrita a sentença atrás referida, e a «Prova 80» do mesmo livro dá na íntegra o testamento do infante D. Luís, pai do Prior do Crato, e na nota que ao mesmo pôs o autor, pág. 521, diz que esta cópia não é autêntica e que foi tirada duma outra existente no arquivo da casa de Bragança, porque o original desaparecera da Torre do Tombo no tempo da administração de Castela.
Camilo Castelo Branco transcreve o assento dum baptismo de uma das freguesias de Évora, onde se lê: «Em 15 de Julho de 1544, baptizou o bacharel d’ella (da paróquia), o padre Diogo Vidal, a Luiz filho de uma escrava de Pero Gomes, sogro do infante D. Luiz», o qual também se encontra copiado na Biblioteca de Évora, códice CIII 1, 17, fl. 56. Este documento constituirá uma prova esmagadora a favor da legitimidade de D. António, se realmente não foi forjado a fim de reforçar as pretensões do Prior do Crato ao trono português.

Memórias Arqueológico-Históricas do Distrito de Bragança

1 comentário:

  1. https://www.jornalnordeste.com/opiniao/por-um-dialogo-inter-religioso-segundo-formosa-pelicana

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