terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

Nós Transmontanos, Sefarditas e Marranos - MANUEL DA COSTA (N. BRAGANÇA – F. GRANADA)

Manuel da Costa nasceu em Bragança, no primeiro quartel do século XVII, no seio de uma importante família de mercadores cristãos-novos. Cedo começou a viajar por Castela. Por 1635 casou em Torre de Moncorvo com sua parente Isabel da Costa e ali fixou residência. Continuou fazendo viagens de negócios para além da fronteira, e conhecia “todos os lugares grandes de Castela”. A situação alterou-se com a revolução de 1640 e o encerramento das fronteiras, motivado pela guerra entre os dois países.
A guerra, as dificuldades financeiras do governo, a política do rei D. João IV em desfavor da inquisição, fizeram os cristãos-novos assumir o compromisso de uma avultada contribuição monetária destinada sobretudo à compra de barcos para a “carreira do Brasil”. E para repartir esta contribuição foram nomeados, em cada comarca, os chamados “fintadores da bolsa”. Pois na comarca de Torre de Moncorvo, um dos fintadores nomeados foi exatamente o nosso biografado. Isso mostra como ele ocupava um lugar de destaque no seio da comunidade marrana da região. (1)
E no desempenho desta missão criou ele muitos inimigos, alguns deles bem poderosos e influentes. Um deles foi Domingos Lopes Bastos, homem muito rico, que se dizia cristão-velho e se preparava para assumir um cargo na governação. Porém, o nosso “fintador” teve notícia que ele tinha parte de cristão-novo, tal como sua mulher, Helena da Cruz. E então lançou-lhe a “finta” de 70 mil réis. Protestou Domingos, mas acabou por confessar que efetivamente tinha uma costela de judeu e pagaria os 70 mil réis mas às ocultas, debaixo de outro nome pois assim ficaria desacreditado e não entraria para o cargo na governação. Manuel da Costa não foi pelos ajustes…
Problema semelhante arranjou ele com Manuel Lopes, o tio bom, de alcunha, mercador de Viseu que, em Moncorvo morou algum tempo e preparava-se para abalar para Viseu levando uma cavalgadura e fazendas. Dizia-se também cristão-velho, mas o “fintador” tinha informação diferente e não o deixou partir sem pagar o “dinheiro da bolsa”.
Alvarenga e Montes eram nomes de duas das famílias mais nobres de Vila Flor, sem gota de sangue judeu – diziam eles. Vejam como o Costa se lhes refere:
- Disse que Manuel Alvarenga e Gregório Montes, de Vila Flor, são inimigos porque, sendo ele réu um dos fintadores da bolsa e sendo eles fintados para a bolsa, tiveram para si que ele réu os manifestava dizendo terem parte de cristãos-novos e sendo que eram cristãos-velhos, e que ele réu fizera muitas diligências para os descobrir e infamar. 
Prova também da influência e poder económico de Manuel da Costa é o facto de ele ter sido contratador do sabão, substituindo Francisco da Cunha, marido de sua cunhada Beatriz da Costa, (2) quando esta foi presa pela inquisição, em setembro de 1647 e aquele se abalou de Moncorvo.
Acrescentemos que Beatriz acabou condenada à fogueira e que a história da família Costa nas cadeias do santo ofício era já então mais longa que a linha do comboio. E por isso mesmo a mãe, os irmãos e muitos tios e primos de Manuel da Costa tinham fugido para Espanha e quase todos eles viviam em Granada onde tinham o monopólio da distribuição do sal. E quando chegava o “dia grande” do Kipur, a família reunia-se na celebração desta festa, a mais sagrada do calendário judaico. Vejam como ele próprio contou para os inquisidores:
- Disse que há 22 anos a esta parte, até ao levantamento do Reino, do qual tempo para cá deixou de ir a Castela, se achou muitas vezes com a sua mãe e a sua irmã Maria da Costa, agora casada em Granada com Luís da Costa, e com Leonor da Costa, também sua irmã agora casada em Granada com um mancebo de Trancoso, e com seu irmão Diogo Nunes, casado em Antequera com Catarina da Costa e são tratantes e estão ora juntos, ora separados, e faziam juntos o Kipur e outras cerimónias.
Como que respondendo ao apoio dos cristãos-novos ao governo do rei D. João IV, a inquisição lançou uma verdadeira “guerra” contra o rei. E promoveu autênticas campanhas de extermínio da “gente da nação” em algumas terras, nomeadamente em Trás-os-Montes. Foi o caso de Torre de Moncorvo onde, em 1641, o comissário Pedro Saraiva de Vasconcelos, despachava a seguinte informação para o Conselho Geral:
- Lembro a vossas mercês (…) que a Torre de Moncorvo é terra nova em que importa ao serviço de Deus entrar a inquisição, que fez muito fruto entrando em Quintela e Sambade. (3)
No meio do furacão foi também apanhado Manuel da Costa, preso pela inquisição de Coimbra em 14 de Junho de 1651. Foi mesmo acusado de ser o “ escrivão chamador”, ou seja: era ele que convocava os outros para as reuniões em “sinagoga”. Como geralmente acontecia, acabou por confessar-se culpado de judaísmo e que foi sua mãe, logo em pequeno, que o catequizou. Do rol das suas confissões, vamos apenas retirar um excerto narrando uma cerimónia judaica feita em conjunto com o cirurgião Domingos Lopes Bastos, no sítio da quinta do Cuco. É uma narrativa cheia de lirismo e ritualidade judaica. Vejam:
- Haverá dois anos, indo para a Açoreira, em companhia do referido Domingos Lopes Bastos, no caminho que vai pela Senhora da Riba Cavada, entre umas vinhas, por donde corre a água, se apeou e lavou as mãos e os olhos e a boca, e correu a mão pelo rosto abaixo três ou quatro vezes, e rezava baixo, de sorte que não ouvia, com o rosto para o céu, e lhe parece que era mais para o nascente, antes de nascer o sol. E porquanto ele confitente usava também da dita cerimónia por observância da lei de Moisés, por lha ter ensinado sua mãe.
Não sabemos que oração era aquela, mas podia ser a mesma que depois ele próprio ditou para o processo e costumava rezar quando lavava as mãos:
- Bendito tu Adonay nosso Dios y de nuestros padres que nos fizeste e nos creaste e nos santiguaste sobre o lavar de nuestras manos. Amen.
Manuel da Costa saiu condenado em cárcere e hábito penitencial, no auto público da fé celebrado em 14 de Abril de 1652. Podia regressar à terra mas… teria de apresentar-se na missa de domingo vestindo o saco amarelo por cima do fato. E isso era infamante para um homem da sua posição social. Porventura mais difícil de suportar do que a própria cadeia.
Regressou a Torre de Moncorvo mas ninguém o viu com o sambenito vestido. Aliás, teria confidenciado que “mesmo que o queimassem, não havia de trazer o hábito”.
A notícia chegou ao comissário Pedro Saraiva que o mandou chamar e “lhe mandava que cumprisse a dita penitência muito inteiramente, trazendo o hábito por cima das suas vestiduras, de modo que possa ser visto por todas as pessoas”. Manuel da Costa prometeu cumprir a penitência mas…
O pior é que a sua mulher e outros parentes que com ele saíram no mesmo auto condenados em hábito andavam igualmente sem o sambenito. E essa era uma situação intolerável, um ato grave de desobediência e desprezo pelo santo tribunal. Por isso foram todos chamados pelo comissário que os admoestou e avisou das perigosas consequências de tal procedimento. Veja-se o resultado, conforme escreveu o mesmo comissário para a inquisição de Coimbra:
- Tanto que foram admoestados, não apareceram mais nesta vila, sendo público que fugiram para Castela (…) Uma irmã de Manuel da Costa disse, o dia antes que fugissem, que eles se iam para não cumprir a penitência (…) Fugiram desta vila e como não tinham fato, por ter sido confiscado, não foram sentidos, nem tive notícia da sua fugida, para os mandar prender pela justiça secular. (4)
Manuel da Costa e a mulher fugiram para Granada onde tinham vasta parentela trabalhando na distribuição do sal, sendo o seu primo Francisco de Albuquerque, administrador daquele monopólio. Mas foi com Francisco Lopes Pereira, natural de Mogadouro e que com ele partilhou as celas da inquisição de Coimbra, que Manuel da Costa fez uma sociedade comercial, arrematando a venda do tabaco na mesma região.
Foram poucos os anos de vida de Manuel da Costa em Granada pois que, em 1660 já era falecido e o estanco do tabaco andava só por conta de Francisco Lopes Pereira. (5) A sua mulher e o seu filho Don Luís da Costa, então com uns 18 anos, traziam arrendada a venda do sal na região de Vellez.

NOTAS:
1-ANTT, inq. Coimbra, pº 9486, de Manuel da Costa.
2-IDEM, inq. Lisboa, pº 790, de Francisco da Cunha; inq. Coimbra, pº 1952, de Beatriz da Costa.
3-IDEM, pº 5022, de Francisca Vaz.
4-Henrique Dias da Costa e sua mulher Beatriz Marcos foram outros dos que fugiram. Pedro Rodrigues Brandão foi apanhado pelo comissário Saraiva de Vasconcelos que “ o achou fugindo escondido sobre uns telhados (…) e achando-o saindo do dito telhado, disse que para não trazer o hábito se havia de ir para Castela e que todos haviam de fugir e despovoar o Reino”.
5-ANTT, inquisição de Lisboa, processo 2744, de Gaspar Lopes Pereira.

António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães
in:jornalnordeste.com

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