terça-feira, 7 de março de 2017

Nós Transmontanos, Sefarditas e Marranos - FILIPA NUNES, ESTALAJADEIRA EM VILA FLOR (N. C. 1509)

Filipa Nunes era casada com Álvaro Rodrigues e o casal viveu em Lamego, terra onde a família cresceu com o nascimento de 2 filhos e 3 filhas. Com a criação do tribunal da inquisição naquela cidade e a onda de prisões que se seguiu, a família abandonou a terra, à semelhança de muitas outras. (1) 
Não sabemos se a fuga foi antes ou depois de o filho e a filha mais velhos casarem em Vila Flor. Sabemos é que Filipa e Álvaro, abalaram para a Galiza (Pontevedra) levando os 3 filhos mais novos.
Também não temos a certeza sobre as razões da migração, se bem que pensemos ter sido o medo de serem presos pela inquisição. Álvaro Rodrigues, contudo, negava que essa fosse a razão da fuga, explicando que em Lamego “ veio a cair em muita pobreza tendo mulher e filhos e passava muito mal com pobreza, e por essa causa determinou ele réu ir viver à Galiza”. Há também quem diga que ele fugiu de Lamego por causa de roubar nos pesos da carne que vendia.
Estavam na Galiza explorando “uma casa de vender vinho”, quando souberam do perdão geral decretado pelo papa. E também por essa altura terão recebido a notícia de que o seu genro Manuel Martins fora assassinado. E com esta notícia foi o convite de Antónia Nunes, irmã de Filipa, residente em Santa Comba da Vilariça, casada com Francisco Fernandes, para regressarem, que ela os ajudaria em suas necessidades.
E terá sido assim que Filipa e Álvaro se tornaram estalajadeiros em Vila Flor, ao findar a década de 1540, gerindo a estalagem que fora do malogrado Manuel Martins. E como tinham vindo de Lamego, passaram a ser nomeados pela alcunha de Lamegões.
O braço tentacular da inquisição chegou também a Vila Flor, em Junho de 1556 com a visitação do vigário-geral da comarca de Moncorvo, o licenciado Aleixo Dias Falcão, a mando do arcebispo de Braga, Dom Frei Baltasar Limpo.
Proclamados os éditos da visitação, apresentou-se a depor o padre Amaro Gil. Começou por dizer que, constando-lhe que os Lamegões tinham vindo fugidos da inquisição de Lamego, ele testemunha andou sempre com o olho neles e que os via aos sábados vestidos com camisas lavadas e sem trabalhar, levantando-se mais tarde que nos outros dias. Acrescentou que na quaresma passada foi algumas vezes à estalagem e que por duas vezes os encontrou cozinhando carne. E disse mais que Ana Gonçalves, achara em uma sexta-feira no lume “uma espetada de carne a assar”. (2)
Obviamente que a moça foi chamada a testemunhar. E confirmou que “vira estar no fogo uma espetada de frissura a assar”.
E estes foram os crimes de judaísmo que levaram Filipa e Álvaro a ser presos pelo vigário Aleixo Falcão. O destino foi o tribunal da inquisição de Lisboa onde Filipa Nunes foi entregue em 10 de Abril de 1557. (3)
Álvaro Lamegão teve por companheiro de cela um cristão-velho, João Fernandes, preso por bigamia mas que se apresentava como “judeu” e se chamava António Nunes, desempenhando o papel de espia. E este foi contar aos inquisidores que o Lamegão dissera “que não havia de dizer nada ainda que lhe arrancassem a língua” e que também “disse que o bispo de Braga era homem mau porque quando era bispo do Porto queimou um cristão-novo que morrera mártir”. Para além disso, o mesmo espia escreveu 4 bilhetes a pedido de Álvaro e este os meteu no cesto da comida para serem entregues a seu cunhado Luís Cardoso, (4) que morava em Lisboa, o que certamente não terá acontecido, antes seriam apreendidos na cadeia. E estas foram culpas acrescentadas no processo.
Obviamente que, vendo-se assim encurralado, não foi preciso “arrancar-lhe a língua pelo toutiço” para entrar de confessar suas culpas. Foi, porém uma confissão muito diminuta e por isso o puseram a tormento. Então sim, confessou tudo e denunciou mulher e filhas, se bem que receando que a mulher estivesse morta.
Mas Filipa Nunes estava viva e mantinha-se negativa. Explicava que, sendo estalajadeira, não podia deixar de trabalhar ao sábado e que, se alguma vez, viram assar carne em dia proibido pela igreja, isso ficaria a dever-se a algum hóspede que a comprou fora da estalagem e ali a meteu no fogo a assar. (5) De contrário, dizia-se muito boa cristã e apresentava testemunhas de crédito, segundo pensava, gente da mais alta nobreza cristã-velha como era o caso de D. Catarina de Almendra que, por vezes, até lhe emprestava o manto para ir à igreja. E também um padre em quem depositaria plena confiança. E foi exatamente este padre, Amaro Gil, e outras testemunhas por ela apresentadas que acrescentaram razões para o promotor da justiça pedir a condenação, nos seguintes termos:
- Por as suas testemunhas a culparem de má e de ir mal à missa e conversar com cristãos-novos e se esconder quando se faziam prisões na terra por este santo ofício (…) E também muito faz o marido da ré por ser judeu e confitente neste santo ofício (…) e assim a mãe da ré e todas as suas irmãs que todas foram presas neste santo ofício todas foram achadas de judias e guardarem o sábado e a mãe tão fina que guardava no cárcere judaizando estando presa…
Contra todas as evidências, a Lamegoa mantinha-se firme, negando todas as acusações e não denunciando ninguém. Até que “por ela não querer confessar, mandaram vir perante si Álvaro Rodrigues seu marido para que lhe dissesse no rosto o que dela sabia. E ele lhe disse que desencarregasse a sua consciência e dissesse como guardara alguns sábados e como jejuara com ele 3 ou 4 jejuns dos judeus e que a ensinara uma Filipa Fernandes, cristã-nova, mulher de António Fernandes, alfaiate”.
Então sim, Filipa Nunes admitiu ter judaizado. Mas nada mais adiantou para além do que o marido pusera a descoberto. E tudo fez para encobrir as filhas. E só as denunciou depois de ter sido posta a tormento.
Conforme se disse foi larga a colheita da inquisição na família de Filipa Nunes, dispersa por muitas terras de Portugal e da diáspora. E sobre ela muito mais podíamos dizer, não fora o espaço limitado do jornal. Vamos tão só espreitar o processo de seu cunhado Francisco Fernandes, almocreve, casado com sua irmã Antónia Nunes, a Reverenda, (6) de alcunha, moradores em Santa Comba da Vilariça e dele retirar o excerto seguinte:
- Disse que haverá 6 anos veio ter a sua casa um Marcos Cardoso, cristão-novo, que havia muitos anos que era ido por esse mundo, sem saberem parte dele e primeiro esteve preso em Évora. (7) E vinha vestido de como romeiro, com vestido pardo e cordão e um bordão e perguntando-lhe ele confessante por sua vida e onde estivera tantos anos, o dito marcos Cardoso lhe disse que era judeu e que estivera na Turquia, em uma cidade que se chama Salónica, onde casara com uma judia; dizendo-lhe mais que s judeus viviam lá na sua lei e os cristãos na sua, cada um como queria. E que pagavam o tributo ao Turco. E porque os tributos da dita cidade eram grandes e ele não se atrever a pagá-los, se partira para outra cidade e ia por mar. E pelo caminho os cativaram os de Cavaleiros de Malta e os puseram a resgate a 100 cruzados cada um. E por ele não ter dinheiro, deixara a mulher e os filhos em reféns e vinha (…) a pedir para ajuntar dinheiro para os resgatar. E no tempo que estivera em sua casa, não comia coisa alguma que não fosse guisada pela sua mão e guardava os sábados e disse a ele confessante que os guardasse e tivesse crença na lei de Moisés e nela esperasse de se salvar e fizesse jejuns sem comer senão à noite, como faziam os judeus. E ele confessante, pelo que lhe disse o dito Marcos Cardoso, do dito tempo a esta parte se apartara da lei de Cristo (…) E que Marcos Cardoso é falecido e mandara repartir o dinheiro que tinha por suas irmãs. 

NOTAS E BIBLIOGRAFIA
1- TAVARES, Maria José Ferro – Los Judíos en Portugal, edición Maphre, pp. 212 e 213.
2-Ana Gonçalves, cristã-velha, moça solteira, era natural de Matosinhos e tinha um filho natural de Gaspar Martins, irmão de Manuel Martins.
3-ANTT, inq. Lisboa pº 1581, de Álvaro Rodrigues; pº 7219, de Filipa Nunes.
4-IDEM, pº 3245, de Luís Cardoso.
5-Pº 7219, tif 27: - A ré era estalajadeira em Vila Flor e tinha estalagem de contínuo em que se agasalhava toda a pessoa que por ali passava, assim portugueses como castelhanos e todas as outras nações (…) os quais castelhanos muitas vezes, aos sábados e outros muitos dias assavam espetadas de morcelas e de linguiças e de chouriças que traziam consigo e fressura que eles compravam fora da casa da ré…
6-ANTT, inq. Lisboa, pº 8013, de Francisco Fernandes; inq. Coimbra, pº 402, de Antónia Nunes, a Reverenda.
7-IDEM, inq. Évora, pº 9161, de Marcos Cardoso. TAVARES, maria José Ferro – Los Judíos en Portugal, edición Maphre, p. 340, fala sobre a correspondência que existia “entre los que partian y los que se quedaban como el hombre de Salonica judío natural de Vila Flor “correo” y portador delas notícias de los que abandonaban el reino e algunos de ellos “passados” por él”.

António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães

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