terça-feira, 30 de maio de 2017

O MUSEU DA LÍNGUA E A PÓS-VERDADE

Meu Caro

Como sabes, Caríssimo, há coisas que não levam a lado nenhum e há coisas que levam a outras coisas. Eu, neste mundo, nada tenho contra a maior parte das coisas. Todavia, há algumas coisitas, leves, e, se calhar, explicáveis – ou não –, que me amarguram, me estragam a moral e o sossego do bem-estar já sexagenário, se calhar, imerecido. Já estou com o dizer do Farrusco: há utilidade e conforto no não-conhecido.

Mas quando uma pessoa deixa de desconhecer, as coisas complicam-se, pois vão dar a outras coisas e estas, muito provavelmente, a outras mais. Em resumo: é o Ciclo da Coisa.

Não sei se te disse, mas com outros amigos fui interveniente em projeto para o Museu da Língua aberto pela CMB. Já me apercebera que não devia ter entrado nesta coisa para evitar outras, mas... Bem... Bom... Portanto, já sabes que o que te vou expor é de parte interessada no assunto a vários títulos.

Factos:

A CMB abre concurso público (Nº 11/2016-CP/CC-DLM), definindo, no ponto 1.4, o anonimato como exigência concursal, reforçado no Ponto 2.2.: «O presente concurso pressupõe um acompanhamento constante ao desenvolvimento do mesmo, acautelando a sua exemplaridade e a manutenção do anonimato até à elaboração, pelo júri do concurso, do relatório final, ou seja, a identificação dos concorrentes só será conhecida após a divulgação dos resultados». Mas a exigência do rigor no anonimato define, ainda, a necessidade deste critério a todos os níveis, incluindo o informático. Assim, o Ponto 12.5. pormenoriza: «Instrução sobre o método de controlo de assinaturas: 12.5.1. De modo a evitar que o júri tenha acesso às assinaturas/identidade dos concorrentes, salvaguardando o anonimato das propostas, o concorrente apenas necessitará de possuir selos temporais e certificado de assinatura eletrónica qualificada aquando da submissão final de uma comunicação ou da proposta final. 12.5.2. Relativamente aos documentos da proposta, estes não devem ser assinados individualmente pois, se um documento é assinado digitalmente no PDF é visualizada a informação da assinatura pelo júri e desta forma não será garantido o anonimato dos concorrentes. Como não é possível controlar o aspeto da assinatura num documento PDF, pois tal como em papel, a marca física (Layer/camada em formato digital) é informação do próprio documento e é visível em qualquer dos programas existentes no mercado para leitura de PDF, o concorrente não deve assinar os documentos da proposta individualmente. 12.5.3. Desta forma, para que não exista qualquer incoerência, nas peças do procedimento é importante salientar que o concorrente não deverá submeter quaisquer documentos de proposta com informação identificativa, tal como assinaturas manuais, digitais ou outras informações que o identifiquem». E o Ponto 12.6. termina exigindo que «Todos os documentos e assinaturas previstos no ponto 10, devem ser então elaborados e apresentados de tal forma que fique assegurado o total e absoluto anonimato dos concorrentes, não podendo conter qualquer elemento que permita, de forma direta ou indireta, identificar o seu autor ou autores».

E o Ponto 15. refere-se à «Apreciação e hierarquização dos projetos: (...) 15.1. O júri procede à apreciação e hierarquização dos trabalhos de conceção apresentados, elaborando, para o efeito, um relatório final, assinado por todos os seus membros, no qual deve indicar, fundamentalmente: 15.1.1. A ordenação dos trabalhos de conceção apresentados, de acordo com os critérios de seleção fixados no anterior ponto 13 destes termos de referência; 15.1.2. A exclusão dos trabalhos de conceção: i) Cujas propostas tenham sido apresentadas após o termo do prazo fixado nos termos de referência; ii) Cujos documentos que os materializem, contenham qualquer elemento que permita, de forma direta ou indireta, identificar o seu autor ou autores».

Até aqui tudo me parece claro e perfeito, justíssimo. De louvar até tanta minúcia regulamentar para preservar e garantir o anonimato das propostas.

O seguimento da coisa traz-nos mais Atas, nomeadamente a da Reunião Ordinária de 24 de Abril, pp, que, no seu Ponto 12, nos informa que, «abertas as propostas, cada uma delas ficou automaticamente codificada e constatou-se que em nenhum dos documentos que as integravam, era permitida de qualquer forma ou modo determinar a identidade do respetivo autor». E, para finalizar todo o processo concursal, na Reunião Ordinária da CMB de 8 de Maio, no Ponto 20 procede-se à descodificação das propostas, «de modo a aferir a identidade dos concorrentes bem como a pertença dos respetivos trabalhos, tendo elaborado este documento onde consta a correspondência entre a ordem de entrada e os códigos atribuídos pela plataforma, à identificação dos concorrentes, dando-se esta a conhecer».

E pronto, a coisa ficava, ou dava-se, por resolvida!

Dentro dos Factos:

Só que... Bem... Bom.. Façamos um exercício de rotina de mero escrutínio informativo, e consultemos os ficheiros informáticos PDFs do candidato vencedor. Busquemos as propriedades do ficheiro, melhor, dos vários ficheiros apresentados a concurso, e reparemos na autoria dos mesmos: onde deveria constar «Nenhum», ou nada existir referido, consta «ARC Arquitectos». Não se sabe porque a plataforma informática concursal só disponibiliza os três primeiros lugares, contrariando as normas e as informações dadas pela CMB e, assim, não podemos continuar este exercício para além do terceiro candidato. Sabemos, porque descrito em Ata camarária, que sete concorrentes foram afastados do concurso por variadas razões, mas julgamos que nenhuma relacionada com a quebra de confidencialidade e anonimato. Fui verificar os ficheiros da proposta da equipa onde me integrava e o «Nenhum» imperava, tal como, no segundo e terceiro classificados. Todavia, os ficheiros do primeiro classificado – contra toda a regulamentação do anonimato – são claros na informação sobre a autoria do projeto: ARC Arquitectos. Como é isto possível?

Estava eu a matutar nesta engenhosa técnica comunicativa da pós-verdade – lateral, liminar, sub-reptícia – quando o meu amigo Ortega me informa: «Olha, afinal passou-se a mesma coisa no último projeto a que concorri para a CMB, sobre uma intervenção a realizar na área do Jardim António José de Almeida: éramos 4 concorrentes, fiquei em terceiro lugar, mas os dois primeiros também têm este esquema informativo nos PDFs...»

Muito Caro: Tu, que conheces a parvónia desde sempre, quando achas que terá chegado a pós-verdade a Bragança?

Um abraço, Rapazão, do teu



JMNJ
João Manuel Neto Jacob
in:jornalnordeste.com

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