terça-feira, 11 de julho de 2017

O Manso e o Guerreiro III – O Dói-Dói e a Pomada

Por: José Mário Leite
(colaborador do Memórias...e outras coisas...)

Mais uma vez, quando a tarde alaranjando se despede e desvanece, Júlio Manso e Tomé Guerreiro partilham um copo de tinto, um naco de queijo terrincho, uma lasca de presunto e um carolo de centeio ainda quente.

— As notícias são boas, ti Júlio?

— Podiam ser melhores. Veja só este título onde um deputado centrista reclama, como sendo grande desperdício, os beijinhos no dói-dói. 

— Desperdício? Só de uma enorme ignorância poderia sair tal dislate! Não terá, seguramente, propriedades terapêuticas cientificamente provadas e aprovadas, mas quando nada mais se pode fazer, não há nada como os beijinhos no dói-doi. A dor não é só física e a capacidade de a suportar aumenta na exata proporção do carinho com que os ósculos são depositados. 

— O meu amigo hoje está muito poético!

— Sabe o que realmente me dói? É a insensibilidade de alguns políticos a quem, de forma insistente e irresponsável, tudo lhes serve para arremessarem aos opositores!

— Ó ti’Tomé, vossemecê não poupa nas palavras.

— Não me resigno perante tanta demagogia. É claro, certo e sabido que os abraços e os afetos não vão resolver os gravíssimos problemas, nem apagam a tragédia que atingiram as gentes de Pedrógão e arredores. Contudo, para o que já não tem remédio e para o que, tendo, não tem solução imediata, mais nada há a fazer, de imediato, que mostrar e exercer a solidariedade que o Presidente da República veio trazer.

— Olhe que eu não diria melhor! E o que me diz desta notícia aqui logo a seguir sobre a candidatura portuguesa para sede da Agência Europeia do Medicamento? Então não é que, mais uma vez querem puxar mais esta para a capital? Mas os do Porto já vieram dizer que não pode ser assim!

— Pois vieram. Mas mais valia ficarem calados.

— Essa agora! Ainda há bem pouco se abespinhava todo com o centralismo lisboeta e agora acha bem que continuem com essa mania que é já um vício?

— Abespinhava e abespinho. Nada é mais necessário neste país, com o interior tão desertificado, do que a descentralização. 

— Pois, e então?

— Então, é que a altura não é esta. 

— Não? E porque não?

— Atente bem nisto. A vinda da agência para Portugal não é, nem de longe nem de perto, um dado adquirido. A probabilidade de sermos contemplados com tal infraestrutura é reduzida. Só por isso deveríamos juntar-nos todos à volta da melhor proposta que fosse possível apresentar. A divisão só nos vai prejudicar. Imagine agora que a gente do Porto leva a sua avante e que a candidatura portuguesa segue baseada numa localização da Invicta. A ida da agência para outro país será um trunfo enorme, que bem dispensávamos, para os defensores do centralismo. Poderão, a partir de agora, alegar, que a “cegueira” descentralizadora conduziu à derrota e, mesmo que o não possam provar, nada os impede de especular que uma proposta melhor teria outra chance de ter sido vitoriosa. Por outro lado vão martelar-nos, daqui em diante, que a insistência regionalista prejudica o país.

— Não deixa de ter alguma razão. Mas diga-me lá, já que parece estar tão bem informado. A proposta de Lisboa é melhor?

— Não tenha dúvida que é. E, ironicamente, por causa do centralismo governamental que tem instalado tudo quanto é sede de poder económico e técnico à beira do Tejo. É lá que está o Infarmed e as principais empresas farmacêuticas nacionais e as delegações internacionais. Também é ali que existe  um forte cluster científico e tecnológico público e privado. Para além de possuirem a necessária e exigível oferta de ensino internacional, a todos os níveis, para os milhares de funcionários que acompanharão a deslocalização da Agência.

– Estamos mais uma vez penalizados. E desta vez, duplamente. 

– Tem toda a razão. Mas olhe que a necessária regionalização é muito mais do que isto. Mudar o que quer que seja, de Lisboa para o Porto, não encaixa, propriamente, no conceito que tenho de descentralização!

José Mário Leite
, Nasceu na Junqueira da Vilariça, Torre de Moncorvo, estudou em Bragança e no Porto e casou em Brunhoso, Mogadouro.
Colaborador regular de jornais e revistas do nordeste, (Voz do Nordeste, Mensageiro de Bragança, MAS, Nordeste e CEPIHS) publicou Cravo na Boca (Teatro), Pedra Flor (Poesia) e A Morte de Germano Trancoso (Romance) tendo sido coautor nas seguintes antologias; Terra de Duas Línguas I e II; 40 Poetas Transmontanos de Hoje; Liderança, Desenvolvimento Empresarial; Gestão de Talentos (a editar brevemente).
Foi Administrador Delegado da Associação de Municípios da Terra Quente Transmontana, vereador na Câmara e Presidente da Assembleia Municipal de Torre de Moncorvo.
Foi vice-presidente da Academia de Letras de Trás-os-Montes.
É Diretor-Adjunto na Fundação Calouste Gulbenkian, Gestor de Ciência e Consultor do Conselho de Administração na Fundação Champalimaud.
É membro da Direção do PEN Clube Português.

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