sábado, 12 de agosto de 2017

Paulo Bragança "Durante seis anos, nem a família sabia onde eu estava"

O fadista rebelde dos anos 90 viveu dramas familiares, zangou-se com a indústria musical e refugiou-se nas drogas. Regressou ao país há poucos meses e este domingo canta festival Bons Sons.
foto: Luís Carvalhal
Paulo Bragança voltou a Portugal em abril, mas há algum tempo que aparece esporadicamente ao vivo: em 2012 no Castelo de São Jorge e na Casa do Alentejo, em Lisboa, e há poucos dias no Museu do Fado, por exemplo.


Ainda assim, o concerto deste domingo, dia 13, no festival Bons Sons, na aldeia de Cem Soldos, concelho de Tomar, parece marcar uma nova fase na carreira do fadista. Quer estar “mais presente e ter uma atividade criativa maior”. Em setembro apresenta-se na festa do Avante!, no Seixal, e no festival Caixa Alfama, em Lisboa. Vai também participar num teledisco dos Moonspell.

Rosa de Hiroshima”, em dueto com Ney Matogrosso

Conhecido pela estética gótica, ou andrógina, e pela atitude vanguardista dentro do fado, ganhou nome na década de 90, sobretudo com o álbum Amai, de 1994, que a editora Luaka Bop, do cantor David Byrne, editou nos EUA. Em 1997 fez de padre no filme “Tráfico”, de João Botelho.

De repente, desapareceu. Durante 11 anos, viveu em Dublin, na Irlanda, e uma parte desse período correspondeu ao anonimato total. Foi um exílio. Nem a família sabia onde ele estava. Pelo meio, passou por Londres e conviveu por três meses com ciganos na Roménia. Brevíssima história de uma vida intensa, numa entrevista de coração aberto.

Continua a cantar descalço?
Não é uma devoção ou uma promessa, tornou-se um hábito. Mas nunca tive por objetivo marcar uma certa imagem, ao cantar descalço. Nunca foi por aí.

Qual foi o objetivo?
O palco, para mim, como outros locais, é sagrado. Não estou a dizer isto em contexto religioso. De forma nenhuma. Digo sagrado porque respeito o palco. É sagrado, mas não é sacro. Comecei a cantar descalço de maneira inconsciente. Não foi de totalmente inconsciente… Foi…


“Espírito da Carne”, do álbum “Amai”, 1994
Por instinto?
É isso, por instinto. Já agora, digo uma coisa: às vezes falta-me uma palavra ou outra, porque o facto de ter vivido fora do país 11 anos, falando duas ou três línguas, e quase nunca português, acabou por me afetar. Pode parecer ridículo, mas não é uma frescura de vaidade. Às vezes até pensava que as pessoas que viviam fora tinham uma certa vaidade de vir a Portugal e usar palavras estrangeiras, mas não. Acontece mesmo. Às vezes não se encontra logo a palavra exata… Pronto, está explicado. Quanto ao descalço, foi por instinto. Lembro-me de que estava na Praça de Touros de Cascais. Acho que nem nunca contei isto. Deve ter sido por volta de 1988, 89. Estava Rodrigo, Cidália Moreira, Maria da Fé, grandes nomes. Quando ia para cantar, ocorreu-me isto. Os guitarristas ficaram espantados, fartaram-se de rir. Eu nem liguei, fiz o que tinha a fazer. A partir daí, continuei a cantar descalço e começaram as perguntas. “Porquê? Porquê? Porquê?”. Bom, depois comecei a pensar porquê. Acho que é simplesmente um símbolo. Era o não querer conspurcar o palco com a merda do mundo.

Quanto ao descalço, foi por instinto. Deve ter sido por volta de 1988, 89. Quando ia para cantar, ocorreu-me isto. Os guitarristas ficaram espantados, fartaram-se de rir. Eu nem liguei, fiz o que tinha a fazer. A partir daí, continuei a cantar descalço e começaram as perguntas. “Porquê? Porquê? Porquê?”. Bom, depois comecei a pensar porquê. Acho que é simplesmente um símbolo. Era o não querer conspurcar o palco com a merda do mundo.
E hoje? Escolhe descalçar-se em palco conforme o estado de espírito?
Nunca tornei aquilo uma coisa fundamentalista. Pode acontecer ou não. Não é condição “sine qua non”. Mas é sempre provável que aconteça. Uma vez, estava num castelo, ia descer umas escadas e estava descalço. Como as escadas eram de pedra e a pedra é condutora, apanhei choques até mais não, até chegar ao palco. Ainda cheguei vivo. Às vezes, há situações… Mas, como digo, depende. Eu parto sempre do princípio de que estou para me surpreender a mim próprio. E não penso muitos nestas coisas.

Tem de se surpreender com os concertos?
Primeiro, têm de ser para mim.

Mas só sabe no fim…
Sim, poderei só saber no fim, mas tenho alguma visão de que poderá ou não surpreender-me. Já aconteceu ir para palco inesperadamente. Já cheguei a levar uma quantidade de coisas, por não ter noção do que vou usar, como e porquê.

Está a falar da roupa?
Sim, por exemplo. Às vezes levo sete e oito peças que podem ter variadíssimas combinações, ou não. Nos concertos tem de haver essa dimensão instintiva, inesperada, de surpresa. Tirava-me a graça toda ir para lá já com um boneco todo elaborado. Eu achava imensa piada quando diziam que eu tinha consultores de imagem. Jamais tive um consultor de imagem. Nunca fui por aí. É uma coisa muito orgânica, muito minha.

Como artista, tem mais instinto do que método?
Não estou propriamente preocupado em levar as coisas a um ponto assim ou assado, sem poder sair da linha. A questão da filosofia vem daí. É um campo que me dá para improvisar, obviamente com base em conhecimentos e pressupostos, mas é uma coisa tão imensa que nunca vai estar fechada.

Estudou filosofia? Não tinha sido aluno de direito em Lisboa?
Sim, primeiro estudei direito, mas não acabei.

Tinha que idade?
17, 18 anos. De 1986 até 1990, andava nas casas de fado e comecei a ser conhecido. Foi tudo por insistência de um amigo meu, que queria ir a casas de fado, porque, por mim, nem iria. O meu pai toca guitarra de Coimbra para ele próprio, não é pessoa de casas de fado, terá ido algumas vezes lá em África. Mas eu era criança, não ia com ele. Pronto. Aí pelos 18 anos fiz uma Aula Magna, a convite do presidente da Associação Académica de Lisboa, na altura era o Paulo Campos, filho do António Campos, antigo eurodeputado. Não sei se eles ainda andam aí nas lides políticas. Fiz o terceiro ano de direito e saí, segui a minha vida. Depois, em 2000, voltei a ciência política, que já era um ramo distinto do direito, uma ciência autónoma. Também no terceiro ano, e sempre tive boas notas, desisti. Havia ali alguma coisa que me incomodava, não era nada aquilo. Nem sei o que lá andava a fazer. Depois na Irlanda é que estudei filosofia.

Em que universidade?
National University of Ireland, em Maynooth.

Fiz o terceiro ano de direito e saí, segui a minha vida. Depois, em 2000, voltei a ciência política, que já era um ramo distinto do direito, uma ciência autónoma. Também no terceiro ano, e sempre tive boas notas, desisti. Havia ali alguma coisa que me incomodava, não era nada aquilo. Nem sei o que lá andava a fazer. Depois na Irlanda é que estudei filosofia
Nasceu em Luanda em 1971. Quando chegou a Portugal?
Terá sido em 1981, 82, por aí.

Foi logo para Bragança?
Não logo. Depois de Luanda fomos para o Canadá, porque a firma em que o meu pai trabalhava, uma farmacêutica, ele é farmacêutico, tinha sede em Toronto. Só que aquilo foi um desastre. Para quem tinha vivido tantos anos em África, e a minha família tinha uns três séculos de história em África, chegámos lá e encontrámos 31 graus negativos. Foi um choque absoluto. A minha mãe chorava todos os dias. Era sempre tudo branco, era uma neve muito forte. Há verões fantásticos no Canadá, mas o frio é muito frio.

Tem irmãos?
Tenho um irmão e uma irmã. Fomos todos para o Canadá. Antes de virmos para Portugal ainda passámos pelo Brasil, mas as coisas não seguiram por ali. O meu pai tinha uma imensa…. Ele foi filho único durante 22 anos e contou com os pais dele de alguma forma. Daí a questão de Portugal: era a reunião da família depois de tanto tempo. As coisas acabaram por ser assim. Estiveram em Lisboa e em vários locais, depois abriram negócios e foram-se fixando pelo Norte.

Viveu quantos anos em Bragança?
Apenas seis anos.

E por que escolheu Bragança como nome artístico?
Esse nome está na família. Já vem de há muito tempo.

Podemos saber qual é o seu último nome oficial?
Tenho com dez nomes, entre nomes próprios e apelidos. O meu apelido é Morais Bernardo Lopes de Carvalho. Mas, já agora, é importante esclarecer: quando foi a questão da editora e do primeiro disco [“Notas sobre a Alma”, 1992], Paulo de Carvalho não poderia ser. É óbvio porquê, não é? Já havia um. Ora, eu queria juntar outro nome qualquer, para ficar com três, mas três não soava bem. E o Carlos Maria [Trindade, produtor], já sabendo a história da família, adaptou. O meu pai não queria que as coisas fossem por aí, mas aceitou.

Sente-se mais português ou mais angolano? Gosta de se definir em relação a isto?
Oh, então aí digo-lhe já: faço minhas as palavras do Pessoa. A minha pátria é a minha língua. Esteja onde estiver, e independentemente de hoje ter nacionalidade irlandesa também. A nacionalidade irlandesa tem a ver com ter lá estado 11 anos e identificar-me com o país. Ainda outro dia encontrei uma irlandesa, que vive em Portugal, não nos conhecíamos antes… Aliás, ela não é irlandesa, é americana e neta de irlandês e irlandesa. Disse-me que acha os irlandeses muito, muito iguais aos portugueses, apesar de nós sermos latinos e eles serem uns normandos, saxões, “avikingados”.

Tem razão?
Acho que sim. De facto, quando lá cheguei, e não fui de Portugal para lá – fui de Portugal para Londres, depois ainda andei por vários países… Não gostei nada de Londres, devo dizer. Acho uma cidade enormíssima. Tem muitas coisas boas. Não vamos agora falar dos museus e essas coisas. Estou a dizer: as minhas condições naquela cidade, da maneira como aquilo estava, não gostei. Mesmo tendo vivido em Nova Iorque antes, e mesmo noutras cidades grandes, como Toronto, achei Londres um caos. Duas horas para ir para o trabalho, duas horas para voltar. Eu não tive esse problema, porque não tinha um trabalho lá em Londres.

Mas o que é que procurava? Quis conhecer o mundo?
O mundo, para se conhecer, não é assim. Há muita gente que vai a muitos sítios e não conhece nada. Eu achava Londres demasiado caótica. E depois era outra coisa: estava habituado a um nível de vida, não estou a falar economicamente, que lá não tive. A dificuldade das coisas. Isso foi um choque. Pela primeira vez tive de levar um banho de realidade, saber o que é ir a um banco ou a uma repartição de finanças tirar um número de contribuinte. Eu, essas coisas, nunca fiz, tinha sempre quem fizesse por mim. De alguma forma, tive uma situação privilegiada, não estou a dizer que foi bom ou mau. Resumidamente: Londres foi um banho de realidade imensa.

E Dublin?
Antes de Dublin, andei por vários sítios, nomeadamente a Roménia. Foi a música que me puxou. Quis estar com uns ciganos e andar com eles nas caravanas. Não sei porquê, quando tinha 15 anos, tinha-me ido parar às mãos o único dicionário de romeno em Portugal, de Romeno-Português, feio por um romeno que era professor em Lisboa.

Quantos meses esteve na Roménia?
Uns três meses. Se em Londres são “sanitizados” a um ponto obsessivo, lá é ao contrário. É tudo feito em cima do joelho, e é se é feito. Quis-me parecer que existiam aqueles pagamentos…. Não se pode fazer isto, mas dá lá aquilo e a coisa resolve-se. Há vícios que são perigosos, porque se estabelecem no inconsciente coletivo e passam quase para o nível genético. Não estou a dizer que toda a Roménia é assim, senti isso, mas não ponho em causa que há pessoa sérias.

Nunca se percebeu bem o que o levou a sair de Portugal.
Quis parar, quis ver outras coisas, tinha tido anos de intenso trabalho e não tinha tempo para mim. Ao mesmo tempo, houve uma conjugação de coisas na minha vida próxima que não estavam bem, houve mortes pelo caminho, uma série de situações que me tocaram muito e fizeram-me querer largar tudo. Quando digo largar tudo, digo-o de uma forma absoluta. Não levei telefones, não levei contactos de ninguém. Durante seis anos não contactei ninguém, nem a minha família sabia onde eu estava ou onde não estava. Eu tinha um acordo com a alguém na embaixada na Irlanda para não dizerem a ninguém que eu lá vivia. A não ser que morresse.

Como é que a sua família reagiu a esses seis anos de exílio?
Sim, é isso, foi um exílio intelectual, artístico e de mim próprio. Foram seis anos em que eu não nomeava sequer o meu nome. Nunca falei a ninguém de música, quase não ouvi música, não li livros, não fiz nada. Pensava, contemplava, nada mais. Não fazia nada.

Vivia de quê?
Tinha algum dinheiro. Em algumas ocasiões, cantava aqui ou ali, sem me expor muito, sem dizer quem era.

Fazia-se passar por amador?
Sim, completamente. Quais viver isso.

O que é que o levou a reatar contactos ao fim desses seis anos?
Uma vez, foi lá… Entretanto, chegou-me um filme às mãos, sem eu ter feito nada. Estava algures num “pub” irlandês e uma pessoa que eu tinha conhecido chegou ao pé de mim – era uma pessoa que eu via de vez em quando, não era minha amiga e não sabia rigorosamente nada da minha vida. Ela perguntou se gostava de cinema. E eu disse que sim. Ela disse que eu seria a pessoa certa para protagonizar um filme que ela e outros estavam a preparar. Foi exatamente assim. Nessa ocasião, pela primeira vez, dei-lhe um cartão de visita, com o meu nome. E ela foi ao Google e descobriu quem eu era. Ficou muito espantada, não fazia a mínima ideia. Estava lá havia seis anos e até então não tinha dito nada.

As pessoas que o rodeavam não lhe perguntavam coisas?

Lisboa a Namorar”, do primeiro álbum de Paulo Bragança, em 1992
Sabiam que eu era português e tal, mas os irlandeses são muito reservados, não fazem perguntas.

Acabou por entrar no filme?
Sim, sim. É uma curta-metragem, atenção. Chama-se “Henry & Sunny” e o realizador, Fergal Rock, está neste momento a fazer uma longa-metragem em Hollywood. É a história de um palhaço desempregado que se apaixona por uma atriz de grande estrelato.

Numa entrevista em 2005, um ano antes de sair de Portugal, mostrou-se zangado com a indústria musical pela falta de apoio e promoção. Isso contribuiu para que partisse?
Claro, claro. Além daquilo que lhe disse, que são coisas mais pessoais, isso foi a grande causa. Sentia-me completamente ostracizado pela indústria, sem razões aparentes. Para sermos exatos, dizia-se coisas que afetavam a minha reputação. Lembro-me de que uma vez caí à porta do [bar] Jamaica, caí porque estava a chover e escorreguei. De repente, já se dizia que ia completamente bêbado, drogado, alterado. Já tinha feito tudo e mais alguma coisa. Percebe?

A certa altura falava-se muito das drogas na sua vida.
Sim, nunca desmenti, nem desminto, assumo perfeitamente. Foi uma fase da minha vida. Não é normal a pessoa fazer isso aos trinta e poucos anos. Geralmente, as pessoas fazem determinadas coisas em determinadas idades. E eu nunca tinha feito. Por isso, quando aconteceu, toda a gente, inclusive a minha família, achou impensável. Mas também lhe digo: as drogas foram uma consequência e não uma causa.

Consequência de um estado de espírito?
Sim, provocado por algumas mortes que se passaram, estúpidas, por uma questão do ostracismo profissional, da equipa, dos “managers”, etc., estive rodeado… Não estou a pôr-me no papel da vitimazinha, também faço “mea culpa”. Fui educado numa redoma… Em toda esta viagem que fiz, quando saí de Portugal, lidei com coisas que nunca tinha… Olhe, nem sabia o que era um hostel, nem sabia que existia. Quando fui para um dormitório que tinha 18 beliches, eu nem queria acreditar, pensei que era impossível. Eu não tinha a mínima noção de certas coisas – e não levem isto como arrogância.

Era um jovem adulto ingénuo?
Não é que fosse ingénuo, mas devido ao percurso de vida não tinha tido ocasião de conhecer certas coisas. Ainda hoje eu não vou por modas, por aquilo que se faz. Não vou atrás de grupos, de modas, sou muito centrado em mim, sem ser egocêntrico. A minha mãe diz que eu, em pequeno, com um livro ou a olhar para o espaço estava perfeitamente bem. Outros andavam a subir às árvores, eu não. Também subi a algumas, mas preferia muito mais estar centrado, mais curioso com outras coisas. Nunca tive bandas preferidas, nunca fui atrás de ídolos ou gurus, não, nunca. Daí também, no caso das drogas, passei por clínicas e foram todas infrutíferas, fui sempre expulso, exatamente porque nunca me identificava com ninguém. Havia aquelas partilhas e eu dizia que não me identificava… Eu quando fui usar drogas tinha um fim muito definido. O fim era morrer. Não usei para me divertir.

Mas estava à procura de uma decadência progressiva?
Não, não, queria que fosse uma coisa imediata. Não andava em grupos, sempre fiz isto completamente sozinho, tratava do que tinha a tratar completamente sozinho. E muitas vezes cumprindo coisas que tinha a cumprir profissionalmente, sem sequer se saber se estava bem ou mal. Tive algum cuidado com isso.

O desequilíbrio levou-me a um grande equilíbrio. Estava de facto a provocar, como hoje ainda faço, várias situações, estava a testar limites. Se bem que, neste caso, sabia bem que o limite poderia ser o último. Escrevi algures: “O verdugo não tem freio quando estica o anseio da agonia que se arrasta…” Estava a provocar a existência, que é absurda.

Foram anos de desequilíbrio?
Acho que não, mas, se foram, o desequilíbrio levou-me a um grande equilíbrio. Estava de facto a provocar, como hoje ainda faço, várias situações, estava a testar limites. Se bem que, neste caso, sabia bem que o limite poderia ser o último. Escrevi algures: “O verdugo não tem freio quando estica o anseio da agonia que se arrasta…” Estava a provocar a existência, que é absurda.

É uma atitude que associamos a si: a provocação.
Agora, depois de ter feito este percurso todo, acho que a provocação é tão natural quanto a minha existência. É como cantar descalço. Não o faço por ter pretensões. É uma questão inerente à minha condição. É natural. O provocar é o “leitmotiv” de muitas coisas na vida, ou da própria vida. A vida provoca-se, se não se provocasse ninguém fazia o ato inicial. De alguma maneira, há uma provocação inerente a tudo isto. Não faço para chamar a atenção, se bem que o artista tem de estar confortável com isso, se não, é um coitadinho.

Que pensa fazer da sua carreira nos próximos anos?
Quero estar mais presente, fazer concertos, ter uma atividade criativa maior. Estes onze anos deram espaço para isso. Outro dia fui a Dublin, porque ainda lá tenho casa, e terei, nunca vou largar a Irlanda…

Mas já se estabeleceu em Portugal, certo?
Sim. Saí a 25 de Março de 2006 e voltei a 22 de Abril de 2017. E quando agora fui a Dublin, fui buscar uma mala com papéis, coisas que estavam para lá. Quero agarrar nisso tudo, compilar, porque não tenho cuidado nenhum com isso.

Escreve muito?
Muito, foi o que me agarrou…. Como não podia cantar, ou cantava pouco, escrevia… Mas, quer dizer, ainda cheguei a fazer o National Concert Hall. Também fiz pubs. Dublin é uma cidade fantástica, não há sítio onde não cantem e toquem a toda a hora, sem pretensões de serem artistas. Fiquei lá sem saber que ia ficar. Um país com metade da população portuguesa, com uma cultura fortíssima, um fervilhar. Foi isso que me levou a ficar lá. É um país de bardos.

E os próximos tempos?
Quero terminar um disco que tenho preparado nos últimos quatro anos com o Carlos Maria.

Vai estar no festival Caixa Alfama em setembro…
Também vou estar na Festa do Avante!, mas, atenção, não estou no programa oficial. É um projeto pessoal do senhor Rúben de Carvalho e da senhora dona Madalena Santos, mulher dele, para criarem um espaço de fado na Quinta da Atalaia. Vou participar num espetáculo em memória de Adriano Correia de Oliveira, que adoro, sempre se ouviu muito em minha casa. Entretanto vou à Sérvia, fazer o teledisco com os Moonspell. Participei no tema “In Tremor Dei”, em português, porque o novo álbum deles é todo em português. Do ponto de vista humano, são pessoas fantásticas, gostei muito deles.



Como é que se vê hoje, enquanto artista?
Fadista é a primeira coisa. E acho que fico por aqui, o resto não faço questão. Fadista não só pelo fado. Fado é cantar ao fado, cantar à vida. O Johnny Cash é fadista, o Cohen. Os Moonspell são fadistas. Aqui tínhamos pano para mangas. Ou tínhamos lúpulo para imensas Guinness. Isso o fado… Fado é passar uma energia, o que se passa é a energia, mais nada. O que faço é por a minha existência naquilo que faço. E digo-lhe uma coisa: as pessoas dos bastidores são muito importantes. Há uns que estão mais visíveis, outros que estão menos. Todo o ser humano é parte integrante. É como a formiga ou a barata. Não há animais superiores ou inferiores. Também não quer dizer que sejam iguais, não há igualdade nenhuma, nem tem de haver. Somos é todos… Nem é diferentes, somos todos únicos.

in:observador.pt

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