domingo, 24 de junho de 2018

DESOLAÇÃO

Por: Manuel Amaro Mendonça
(colaborador do "Memórias...e outras coisas..."

De olhos fechados, trincou com força a maçã vermelha sentindo a explosão voluptuosa de açúcar. Mastigou calmamente, saboreando cada gota do fruto. Desejava que aquela sensação durasse para sempre, mas engoliu, quase contrariado. Entre dentadas, espreitou de olhos semicerrados, as nesgas de sol que logravam romper por entre as nuvens escuras, trazendo uma vaga lembrança do calor de outras eras.
Deixou-se ficar sentado nas enormes pedras da ruína onde se encontrava, fazendo durar a maçã, enquanto escutava as vozes algo longínquas dos companheiros, para lá das paredes esburacadas.
Pouco restava do descomunal edifício que escolhera para descansar. Já não havia telhado e apenas as paredes se lançavam para os ares numa caricatura de mãos que imploravam aos céus. O chão, pejado de escombros negros, era a evidência de um longínquo crime do qual este edifício fora testemunha… e vitima.
Dando-se por satisfeito, ergueu-se. Sacudiu o uniforme camuflado, já a ficar puído e bateu no chão as botas cansadas de devorar quilómetros, após o que enfrentou os restos do altar que ocupavam completamente uma das paredes. Mantendo a maçã quase comida numa mão, apanhou a espingarda automática e acenou um adeus respeitoso à cruz queimada, que teimosamente resistia ereta no meio da desolação.
Caminhou em passos indolentes e atravessou o pórtico, de onde desaparecera uma enorme porta. No exterior, várias dezenas de homens e mulheres de uniforme igual ao dele se afadigavam com braçados de armas, munições e outras cargas. 
Do cenário de um edifício em ruínas, mudara para um mundo de destruição a perder de vista. Prédios de vários pisos de altura, olhos sem vida, inclinavam-se em ângulos improváveis sobre outros reduzidos a escombros. Na outrora imponente praça que se estendia à sua frente, misturados com pedras e detritos, repousavam restos calcinados de automóveis empurrados para os lados a fim de rasgar uma passagem para os veículos militares.
Um dos soldados aproximou-se e com uma continência desleixada anunciou “Meu sargento, o nosso comandante deu a ordem de reunir no ponto de encontro para partida imediata.”. Com a velocidade com que aparecera assim se afastou.
O sargento deu uma última mordida na maçã e começou a caminhar na direção que o soldado tomara, contornando a ruína da igreja.
Parou uns segundos a olhar a dantesca cratera cujos bordos mais longínquos quase desapareciam de vista. A pouca água que ainda corria de um rio, caía desamparada para lá. A suja cascata prometia que a enorme depressão se tornaria um dia num grande lago.
Perdido nos seus pensamentos, o sargento prometeu: “Este primeiro ano é apenas o princípio de muitos outros de morte e destruição, antes de podermos recomeçar a pôr ordem no mundo. Mas um dia havemos de conseguir. Havemos de trazer a ordem e a paz e taparemos estes buracos hediondos.”
Como que num primeiro passo para a sua promessa, arremessou o caroço roído de uma das últimas maçãs do mundo, para a cratera que levara parte de Paris.

Manuel Amaro Mendonça nasceu em Janeiro de 1965, na cidade de São Mamede de Infesta, concelho de Matosinhos, a "Terra de Horizonte e Mar".
É autor dos livros "Terras de Xisto e Outras Histórias" (Agosto 2015), "Lágrimas no Rio" (Abril 2016) e "Daqueles Além Marão" (Abril 2017), todos editados pela CreateSpace e distribuídos pela Amazon.
Ganhou um 1º e um 3º prémio em dois concursos de escrita e os seus textos já foram seleccionados para mais de uma dezena de antologias de contos, de diversas editoras.
Outros trabalhos estão em projeto e saírão em breve, mantenha-se atento às novidades AQUI.

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