quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

FIGURA SIMBÓLICA DA MORTE, EM BRAGANÇA, NA QUARTA-FEIRA DE CINZA

«Ill.mo e EX.mo Snr. – A meza da Veneravel Ordem terceira d’esta cidade tem sido solicitada para consentir que a figura da morte divague pelas ruas da cidade no dia de quarta feira de cinza. Pelas razões expostas na representação que a meza dirigio ao Ex.mo Snr. Governador do Bispado, a meza é de parecer que não deve conseder-se que a figura da morte divague pelas ruas. A autoridade ecclesiastica porem não attendeu a esta exposição e concedeu a licença requesitada.
Mas como este assumpto está regulado na lei organica da Veneravel Ordem terceira a meza da mesma ordem não pode tomar sobre si a responsabilidade de transgredir os seus estatutos e por isso julga dever seu expôr a V. Ex.cia o conteudo dos mesmos estatutos para que V. Ex.cia como fiscal da lei resolva o que entender por melhor.

O artigo 36.º dos referidos estatutos no § 4.º diz: “Expressamente prohibida a divagação pelas ruas da figura que na procissão de cinza costuma representar a morte devendo sahir e recolher com a procissão”.
Em vista d’isto não está nas atribuições da meza conceder-lhe o vestuario da morte. Mas como é um grupo de individuos que insiste em pedir aquele vestuario parecendo que por esse motivo já se preparam temultos e desordens, a meza querendo tirar de sobre si a responsabilidade de quaesquer acontecimentos e da transgressão da lei, informa a V. Ex.cia da situação em que se encontra e pede ou que V. Ex.cia dê as providencias para fazer cessar as assoadas ou que V. Ex.cia conceda a licença que a meza não pode conceder para a divagação da morte, ficando em ambos os cazos a meza desobrigada de responsabilidades.

Bragança, 1 de Março de 1870».

Assinam o requerimento: Bernardino José Pires, João Manuel Pereira
Horta, José António Pires, Manuel José Ferro, Manuel António, José
Manuel dos Santos e José Maria da Cruz.

No mesmo requerimento escreveu de sua própria letra o governador civil do distrito de Bragança o seguinte despacho:

«Tendo-me informado o Snr. Administrador do concelho que em alguns annos posteriores á approvação dos estatutos da Veneravel Ordem Terceira se tem concedido a divagação pelas ruas da figura simbólica a que o requerimento se refere, e que a concessão tem sido feita em respeito aos uzos e costumes immemoriaes deste povo. E sendo mais informado que differentes mezas da mesma Veneravel Ordem tem promovido essa licença da authoridade, e tendo a superior autoridade ecclesiastica concedido já a mesma licença para este anno; conforme a licença que já havia concedido baseada nas praticas anteriores, ficando assim a meza requerente a salvo de qualquer responsabilidade. E é pelos fundamentos referidos que confirmo a licença, e não pelas suppostas assuadas que os requerentes receiam e que a authoridade em qualquer hipotese terá força de evitar.
Seja presente este despacho ao Snr. Administrador do Concelho para os fins convenientes.

Bragança, 1 de Março de 1870. O Governador Civil, Pessanha».

Junto ao mesmo documento vem outro requerimento da mesa da Venerável Ordem Terceira ao governador do bispado, dizendo que o governador civil concedeu licença para sair a «Morte», mas que ela não dá os hábitos sem permissão da autoridade eclesiástica e por isso lha pede.
O governador do bispado deu o seguinte despacho.

«Julgo da exclusiva attribuição da meza a concessão do vistuario da figura – a Morte – mas, se isso depende da minha auctoridade, concedo a licença pedida.

Bragança, 1 de Março de 1870. Martins».

Ainda junto aos mesmos documentos vem outro requerimento dirigido ao governador do bispado que diz:

«A meza da veneravel Ordem Terceira, não querendo por si só resolver uma questão que muito interessa ao respeito da Religião; vem perante V. Ex.cia R.ma como Governador d’este Bispado tomar conselho, como sendo pessoa a quem principalmente incumbe o velar pelo decoro das coisas da Igreja.
Entre as figuras, que compõe a procissão de Cinza, nesta cidade, tem lugar a figura Morte, destinada a symbolizar o salutar avizo pulvis es, et in pulverem reverteris.
Com ella se pretende lembrar que a quadra da quaresma, começada em quarta feira de Cinza, deve ser consagrada a cuidar da vida futura, que para todos é certa, e que pode abrir-se inesperadamente, porque o sopro da vida é menos firme que a luz da alampada agitada pelo vento.
Por um abuso e por uma condescendencia, talves censuraveis, fez-se da figura da Morte uma figura carnavalesca, que, longe de chamar as almas para ideias de piedade, provoca scenas de descomposta folia e não poucas vezes de desordem. Pode dizer-se que a figura da Morte tem feito de quarta feira de Cinza, do primeiro dia em que mais particularmente se celebram os misterios da Igreja, e se commemora a paixão do Redemptor, o quarto dia do carnaval.
E isto facilmente se avalia sabendo-se que os fatos daquela figura se allugavam a razão de 480 réis por hora.
Á meza da veneravel Ordem Terceira parece vergonhoso especular com as coisas da igreja, e sobretudo acha altamente offensivo ao respeito devido á Religião que se faça de quarta feira de Cinza um dia de carnaval, e que o – pulvis es – que a Igreja manda memorar, seja esquecido e offuscado por actos improprios de quem pensa na vida futura.
Por isso, apoiada no exemplo d’alguns Governadores Civis que ultimamente prohibiram que pelas ruas divagasse a figura da morte, a meza da veneravel Ordem Terceira é de parecer que esta prohibição se mantenha. E como os turbulentos podem atribuir a más intenções esta prohibição, a meza deseja que V. Ex.cia lhe confirme ou reprove esta deliberação, para que, firme com a respeitabilidade de V. Ex.cia, possa responder aos que a calumniarem.

E. R. M.ê
Bragança, 1 de Março de 1870».

Assinam este requerimento os mesmos atrás mencionados no dirigido ao governador civil e mais:Manuel António Martins, Bruno Lobato e António José Diegues.

O despacho da autoridade eclesiástica diz:

«A meza deliberará como o julgar mais conveniente á Ordem, e á religião, recorrendo, se for necessario, á auctoridade administrativa para que providencie sobre a conservação da ordem publica.

Bragança, 1 de Março de 1870. Martins, Governador».

O seguinte documento esclarece o assunto e mostra a perduração do costume:

«Ex.mo Snr. Comissario da Policia Civil – Levo ao conhecimento de V. Ex.cia que hoje por 7 horas da manhã, junto ao matadouro publico, onde estavamos de serviço para evitar a saida da Morte, ali apareceu Manuel Augusto Marvão solteiro de 21 anos de idade, com fatos da Morte, e mandando-me o cabo 10 que o prendesse dirigi-me a ele Marvão, fazendo-me figas com o braço e dizendo-me: olhe se se f... seu cara de ...... que a mim não me prende, eu então corri sobre ele escapando-se-me para uma casa saindo logo por outra porta, e por essa ocasião disparei um tiro por o ter já intimado a dar-se á prizão e com o fim de o amendrontar, e passados alguns momentos voltou a aparecer com as mesmas arruaças detendo-o então por essa occasião.

Testemunhas:Manuel Barata e guardas civis n.os 7 e 22 e cabo 10.

Bragança, 23 de Fevereiro de 1914. O guarda civil nº 20 – Antonio Sebastião».

Memórias Arqueológico-Históricas do Distrito de Bragança

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