terça-feira, 12 de dezembro de 2017

Nós, Transmontanos, Sefarditas e Marranos - MANUEL FERNANDES VILA REAL (1608 – 1652, RELAXADO)

Como o sobrenome sugere, trata-se de uma família Transmontana de Vila Real. E a história desta família na inquisição já nesse tempo era muito grande. Acaso, seria o ambiente de insegurança e medo que em Vila Real se vivia, que levou seus pais, Francisco Fernandes Vila Real e Violante Dias, a rumar a Lisboa, estabelecendo morada e loja na Fancaria de Cima. Depressa expandiu os seus negócios, de modo a mudar-se para a Rua das Mudas. E logo ascendeu à categoria de contratador, arrematando as rendas do Priorado do Crato.
Em Lisboa, no ano de 1608, nasceria Manuel Fernandes Vila Real. Teria uma educação esmerada, à maneira da gente da nobreza, pois aos 14 anos foi com o governador D. Jorge de Mascarenhas, em serviço de armas, para a praça de Tânger. Regressou a Lisboa, dois anos e meio depois, ostentando o honroso título de “capitão”, que muitas portas lhe abriria.
De regresso a Portugal, contando 17 anos, andou pelo Alentejo na cobrança das rendas que o pai arrematara. Seguiram-se dois anos no ofício de corretor dos “reales” da câmara de Lisboa e três ao serviço da mesma câmara na região de Coimbra, empenhado na compra de cereais que eram carregados em “barcos e caravelas” para a capital, onde escasseavam.
Casaria então com sua parente, em 4º grau, Isabel Dias, que em pequena se foi de T. Montes a viver em Lisboa. A mãe de V. Real terá falecido por 1619 e o pai ainda era vivo em 1627, altura em que pagou a fiança por Violante Dias e Leonor do Vale na mesa da inquisição.
Por essa altura iniciou a sua aventura pelo mundo das letras, publicando em 1637, em Madrid, o primeiro livro: El Color Verde, a la divina Celia.
Em Castela, andou por Madrid, Sevilha e Málaga, interessando-se particularmente pela navegação marítima e projetando a aquisição de um barco. Com esse espírito dirigiu-se para a Ruão, cidade portuária próxima da foz do rio Sena, onde estavam estabelecidos dois sobrinhos seus, filhos de sua irmã Branca Dias, e seu marido Luís Fernandes. Efetivamente, em parceria com seus cunhados (de Ruão e do Porto) comprou um barco que mandou alterar “acrescentando-lhe 20 palmos de quilha.” Certamente que os seus negócios passavam pela rede familiar, estendendo-se do Brasil, ao Porto, (1) a Lisboa e a Ruão.
Aproveitamos para dizer que Manuel Fernandes tinha dois irmãos e cinco irmãs. Um dos irmãos, Pantaleão Martins, foi para o Brasil, sítio do Cabo de Santo Agostinho e o outro, chamado Gonçalo Dias, tinha loja de mercearia na Rua Nova, em Lisboa. Das irmãs, referimos a Isabel Henriques, que era casada com António Rodrigues Mogadouro, grande mercador estabelecido na Rua das Mudas.
Em Ruão, o nosso biografado continuou exercitando a sua vida de escritor e meteu-se pelos caminhos da edição, impressão, tradução e venda de livros. (2) Assim o vemos traduzir do italiano e publicar, em 1639, logo depois de chegar a Ruão, um livro de Malvezzi, intitulado A Vida do Conde Duque de Olivares.
Dois anos depois publicou os seus Discursos Políticos, onde sobreleva a defesa da liberdade de consciência. No ano de 1643, na sequência da batalha de Rocroi, em que ele atuou como “consul” do rei de Portugal na libertação de prisioneiros lusos, escreveu o Anti-Caramuel em defesa do Manifesto do Reino de Portugal. Seguiu-se, em 1645, a edição da Década XII, de Diogo Couto.
Entretanto, a mulher e a filha, que ficaram em Lisboa, foram juntar-se-lhe em Ruão, munidas de passaporte do rei D. João IV. Ele, porém, passava a maior parte do tempo em Paris, em atividade diplomática, ao serviço do rei de Portugal. Ganhou a confiança do poderoso chefe do governo de França, o cardeal duque de Richelieu e sobre ele escreveu o seu livro mais famoso: Epítome Genealógico do Eminentíssimo Cardeal Duque de Richelieu e Discursos Políticos sobre Algumas Acções da Sua Vida. (3) Aliás, terá sido ele que, no Natal de 1640, levou pessoalmente e em primeira mão a Richelieu a notícia da revolução portuguesa, solicitando o apoio da França ao novo regime.
Ao início de abril de 1649, Manuel Fernandes Vila Real recebeu uma importante missão do rei D. João IV: acompanhar e prestar todo o apoio na Corte de Paris ao marquês de Nisa que ali foi na qualidade de embaixador. Não era esta, aliás, a primeira vez que Manuel Fernandes recebia e acompanhava os embaixadores portugueses no acesso aos corredores do poder em França. Desta vez, porém, o Marquês levava por secretário, Francisco de Santo Agostinho de Macedo, um frade muito ambicioso, “seu inimigo e concorrente literário” (palavras de Borges Coelho) e por confessor o franciscano António de Serpa.
Vila Real tinha prestado imensos serviços a Portugal e foi então convidado a regressar ao reino, onde seria agraciado por Sua Alteza Real. Desembarcaram em Lisboa a 30 de abril e na bagagem Manuel Fernandes trazia uns 500 livros. Foi vistoriada pelos homens da inquisição que encontraram uns 30 livros proibidos pelo seu índex. E esta foi uma primeira prova para decretarem a sua prisão. Outras haveriam de aparecer.
Entretanto, o nosso biografado ficou instalado na Rua das Mudas onde as casas de morada e de comércio da família se impunham. Certamente que os esbirros da inquisição o mantinham debaixo de vigilância constante. Meio ano depois, em 30.10.1649, Manuel Fernandes Vila Real era recolhido nos cárceres secretos da inquisição de Lisboa. (4)
Para além dos livros proibidos que lhe apreenderam na bagagem, os “mestres” e “qualificadores” do santo ofício esquadrinharam os escritos de Vila Real e neles encontraram “proposições que foram censuradas e mandadas riscar”, nomeadamente no Político Cristianíssimo… editado, aliás, sem visto prévio da autoridade censória.
Sobreveio o testemunho de frei António de Serpa dizendo que sempre o teve por judeu. Mais incisivas foram ainda as denúncias feitas por frei Agostinho de Macedo dizendo que Manuel Vila Real levava propositadamente a mulher para Ruão (5) para ali celebrar a páscoa dos judeus e que ele recebia e vendia livros compostos por hereges, indicando especialmente António Gomes Henriques, (6) “morador em Ruão, grande amigo de Vila Real”. Acrescentou Macedo que “ele se jactava de ser israelita e da tribo de Levi e que profetizava, por ter sangue de profeta”.
A ligação de Manuel Fernandes ao “escritor pícaro” António Gomes Henriques foi confirmada por João de Águila, um cristão-novo que aos 9 anos foi para Amesterdão, onde se circuncidou e viveu como judeu até aos 20 anos, altura em que se apresentou na inquisição de Lisboa a renegar a fé judaica e pedir o batismo, denunciando quantidade de antigos correligionários.
Dramático o processo de Manuel Fernandes, homem que tantos serviços prestou à Pátria. Abandonado pelo próprio Rei que, em outros tempos, o tratava como “cavaleiro fidalgo da minha casa”, Vila Real acabou queimado nas fogueiras do grandioso auto de fé do 1º de dezembro de 1652, especialmente preparado para celebrar o 12º aniversário da Revolução.

Notas:
1-No Porto eram correspondentes António Rodrigues de Morais, seu cunhado, falecido em 1640 e o irmão deste, Manuel Fernandes de Morais.
2-António Borges Coelho, referindo-se ao Mercúrio de Portugal, gazeta por ele editada em França, considera-o um dos primeiros jornalistas portugueses.
3- O livro foi composto e impresso pelo próprio em Ruão, sem indicação do autor, em língua castelhana e indicando Pamplona como local de impressão. Logo de seguida foram feitas publicações em italiano, francês e alemão. Ficou mais conhecido pelo título da edição francesa: O Político Cristianíssimo… A primeira edição em língua portuguesa aconteceu 364 anos depois, graças ao insigne historiador da questão “judaica, marrana e sefardita” o trasmontano António Borges Coelho, com chancela da Editorial Caminho, Lisboa, 2008.
4-ANTT, inq. Lisboa, pº 7794, de Manuel Fernandes Vila Real.
5-ROTH, Cecil – Les Marranes à Rouen, in: Révue des Études Juives, p. 134: - Parmi les accusations qui furent cause de sa mort, il en est une que dirigea contre lui Fra Francisco de Santo Agostinho, celle d´avoir accoutumé de rejoindre sa femme à Rouen chaque année pour célébrer Pàque ensemble.
A respeito de sua mulher deve dizer-se que abandonou a França e se foi para Itália com a filha, quando o marido foi preso. E temos notícia de um filho, chamado José Vila Real que, em 1670 recebeu autorização do “Rei Sol” para se estabelecer em Marselha, juntamente com seu cunhado Abrão Athias e suas famílias. E eles criariam a maior empresa comercial da cidade. Por 1695 José Vila Real era professor de Grego na dita cidade, autor do livro “A Escada de Jacob”– LÉVY, Lionel – La communauté juive de Livourne.
6-ANDRADEe GUIMARÃES – Na Rota dos Judeus Celorico da Beira, ed. câmara municipal, Celorico da Beira, 2015,pp. 91-95.

Bibliografia:
ALMEIDA, A. A. Marques de – Dicionário Histórico dos Sefarditas Portugueses. Mercadores e gente de Trato, Campo da Comunicação, lisboa, 2009.
COELHO, António Borges – Cristãos-Novos Judeus e os Novos Argonautas, ed. Caminho, pp. 151 – 171, Lisboa, 1998.
SILVA, Inocêncio F. da – Declaração que faço eu Manuel Fernandes Vila Real, cristão-novo, preso neste cárcere do Santo Ofício, in: Dicionário Bibliográfico Português, Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1973, tomo XVI, p. 190.
VILA REAL, Manuel Fernandes – Epítome Genealógico do Eminentíssimo Cardeal Duque de RIchelieu e Discursos Políticos sobre Algumas Acções da Sua Vida. Edição de António Borges Coelho, Editorial Caminho, Lisboa, 2005.

António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães

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