terça-feira, 29 de maio de 2018

Nós, Transmontanos, Sefarditas e Marranos - DIOGO HENRIQUES, ALIÁS, ABRAHAM BUENO (N. MEDINA DE RIO SECO C. 1620)

Um dos filhos de António Henriques, o Fastio, chamou-se Pedro Henriques, o qual casou com Ana Vaz, irmã de Pero Henriques, o Cavaleiro. O casal morava na Rua do Concelho, em Torre de Moncorvo, aquando da visitação do inquisidor Jerónimo de Sousa, em 1583. Foram denunciados como judaizantes, por uma Ana Pires, nos seguintes termos:

- Disse mais que ela foi forneira haverá dois anos, em um forno da Fonte do Concelho e tinha por vizinhos (…) Pedro Henriques Fastio, mercador, casado com Ana Vaz (…) e as mulheres destes eram suas freguesas e coziam no seu forno, e nunca cozeram ao sábado, e nunca as viu fiar nem fazer outro serviço, levantavam-se muito tarde e abriam as suas portas e janelas tarde, o que ela via por estar atenta a isso, e que nos outros dias, assim aos domingos como pelos mais dias da semana, se levantavam sempre muito cedo, o que faziam elas e seus maridos e assim os via nos ditos sábados trazerem camisas lavadas e as mulheres toucados limpos e visitavam-se umas às outras. (1)

Talvez por não haver mais denúncias, Pedro e Ana não foram incomodados pela inquisição, naquela altura. Por 1620, na sequência da prisão de Manuel Rodrigues Isidro, certamente receando ser também presos, meteram-se em fuga para Espanha, levando consigo os filhos, que seriam dois: o Manuel e uma rapariga cujo nome ignoramos.

Ana levava no ventre um terceiro filho e, chegando a Medina de Rio Seco, não aguentou mais, dando à luz uma criança que ali batizaram com o nome de Diogo Henriques. Em Medina terão permanecido por 10 meses, posto o que se meteram a caminho de França, indo assentar casa em La Bastide de Clarence, região da Gasconha. Ali chegariam nessa mesma altura outros membros do clã familiar dos Fastio, nomeadamente, o tio paterno de Diogo, António Henriques e sua mulher Filipa da Mesquita, também sua tia, pelo lado materno. Assim como a filha destes, Filipa da Mesquita e o marido, Francisco Álvares Frade, natural de Mogadouro. (2)

Nesta parte de França haveria uma certa liberdade religiosa e os hebreus professavam mais ou menos publicamente a lei de Moisés, se bem que não lhes fosse permitido ter sinagogas, nem manifestações públicas de sua religião. Diogo seria logo mandado circuncidar, recebendo então o nome judeu de Abraham Bueno. E, se bem que frequentasse a catequese com as crianças católicas, aprenderia, em paralelo, a lei de Moisés, uma educação algo esmerada, com um mestre “judeu”. E chegado aos 12-13 anos, começaria a acompanhar o pai e os parentes na vida de mercador ambulante. Nas suas deambulações terá conhecido a cidade de Tartas, onde morava Cristóvão Luís, com sua família, fugido de Bragança, em cuja casa ficaria hospedado. A relação com um dos filhos de Cristóvão (Isaac Tartas) (3) haveria de prolongar-se por Amesterdão e Recife.

Aos 15 anos, Bueno andava comprando e vendendo pelos reinos de Castela, Aragão e Navarra, detendo-se em Madrid por espaço de 7 meses.

Por 1637, faleceu o pai, Pedro Henriques e Ana Vaz e os filhos deixaram La Bastide e foram-se a viver em Amesterdão, a grande metrópole judaica da época. Ali, sim podiam abertamente professar a lei de Moisés e apresentar-se com os nomes judeus que, entretanto tomaram, dos quais conhecemos: Rachel Baruch (Violante Henriques), Ester (Catarina) e Jacob Bueno. Escusado será dizer que, em Amesterdão encontraram os Bueno alguns parentes e muitos conhecidos e amigos de Vila Flor e Torre de Moncorvo.

Naquele tempo os Holandeses tinham uma grande marinha mercante e adotaram uma política de criação de colónias e construção de um império. E, contrariamente aos espanhóis e portugueses, onde o comércio marítimo e a defesa das colónias dependia do Estado, na Holanda criaram-se duas grandes empresas capitalistas que receberam do Estado o monopólio do comércio e responsabilidades de administração e defesa das colónias: a Companhia das Índias Orientais e a Companhia das Índias Ocidentais.

Nesta política de expansão, os holandeses, que já dominavam algumas regiões do mar das Caraíbas, tomaram o Recife, no coração da região açucareira do Brasil e implantaram ali a capital do chamado Brasil Holandês, que se estendeu pelo Rio de S. Francisco e capitania de Pernambuco. E ao Brasil Holandês acorreram muitos portugueses da nação hebreia, com financiamento e apoio comercial da Companhia das Índias Ocidentais.

Entre os muitos dos nossos conhecidos de Vila Flor, Torre de Moncorvo e Trás-os-Montes que então deixaram Amesterdão e rumaram ao Recife e Pernambuco, contaram-se Ana Vaz, os seus 4 filhos solteiros, as duas filhas e respetivos maridos. (4) Dos filhos de Ana Vaz, apenas um terá ficado pela Europa, na região da Gasconha, em França – Jacob Bueno. (5)

A partir de 1644, quando Maurício de Nassau entrou em choque com os diretores da Companhia das Índias Ocidentais e deixou o governo do Recife, os Portugueses iniciaram a recuperação da colónia. E entre os prisioneiros que os Portugueses fizeram, mereceu tratamento especial um grupo de 10 “judeus”, entre eles o já citado Isaac de Tartas, aliás, José de Lis e o nosso biografado, pelos outros identificado como “o Judeu francês”.

Depois de preso no Rio de S. Francisco, em Maio de 1646, Abraham foi enviado para a Baía e ali interrogado pelo bispo D. Pedro da Silva. Dali foi embarcado para a inquisição de Lisboa, dando entrada nos cárceres da penitência. A qui, tratava-se de averiguar se Abraham era mesmo judeu e nunca fora batizado. Nesse caso, não seria processado pela inquisição.

Foi este o caminho que Abraão tentou seguir, na sua defesa. Disse que nunca foi batizado e logo em pequeno foi circuncidado, pois no lugar onde os pais moravam havia liberdade de crença, por um tributo que pagavam ao rei de França. Sobre isto foram ouvidas várias testemunhas, entre elas o embaixador de França em Lisboa, que todas afirmaram que só na cidade de Metz isso era possível. De resto, em toda a França era obrigatório o batismo de todas as crianças.

Acabou o prisioneiro por contar toda a verdade sobre a sua vida, confessar que foi batizado em Espanha, onde lhe puseram o nome de Diogo Henriques e que foi depois circuncidado, secretamente, tornando-se judeu, com o nome de Abraham Bueno.

Logicamente, foi então mandado meter nos cárceres secretos, (5) com sequestro de bens. O processo correu, com o promotor a formular a acusação de herege, apóstata, diminuto e fingido e a pedir que fosse relaxado à justiça secular.

Entre os companheiros de cela, teve o padre António Nabo de Mendonça, cuja missão seria ensinar-lhe a doutrina cristã, mas que, na realidade, servia de bufo, em busca de mais culpas contra ele. Foi contar aos inquisidores que Abraham era um fingido, que sabia perfeitamente a doutrina cristã e que até sabia ajudar à missa. Acrescentou que sabia latim “mostrava ter princípios de ciência e filosofia e sabia muitas escrituras do testamento velho e novo”. Mais disse que, falando da teologia sagrada, Bueno lhe dissera que a teologia de Portugal “era uma pequena de trampa e uma panela sem água e adubo e somente as nações que sabiam o hebraico tinham verdadeiro sentido da sagrada escritura”

O padre Mendonça fora também companheiro de cela de Isaac Tartas. Testemunhou que ambos argumentavam e se defendiam de maneira muito semelhante e usando argumentos parecidos. Por isso, em uma das audiências, perante os inquisidores, aventou mesmo a hipótese de Bueno e Tartas serem irmãos e que o Bueno já fora prisioneiro da inquisição de Madrid e contara ao Tartas como era a vida dentro dos cárceres. Defendeu-se o Diogo, dizendo que o padre se movia por ódio contra ele e contra o Tartas. E explicou aos senhores inquisidores que o seu arrependimento era tão verdadeiro e a vontade de ser bom cristão muito grande, que se empenhou com toda a força a aprender a doutrina cristã com os companheiros de cela, pelo que rapidamente a aprendeu.

Entrou também a denunciar familiares, amigos e conhecidos que com ele judaizaram em La Bastide de Clarence, em Amesterdão e Pernambuco. Acabou o processo com Diogo Henriques saindo condenado em cárcere e hábito perpétuo, no auto da fé de 15 de dezembro de 1647. Tinha apenas 27 anos quando ganhou a liberdade. Nós, porém, não temos informação segura sobre a sua vida a partir daí.

Notas:
1-ANTT, inq. Coimbra, livro 662, f. 65v.

2-António Henriques, a mulher, a filha e o genro foram depois para a Itália.

3-ANDRADE e GUIMARÃES, Nós Trasmontano… jornal Nordeste nº 1023, de 21 de junho de 2016.

4-A irmã Violante Henriques, aliás, Rachel Baruch, casou com Isaac Baruch. Este fora de pequeno para Itália. Catarina Henriques, a outra irmã, era casada com Jacob Levi, originário de Vila Flor, filho de Manuel Francisco Resio, conhecidos também de Amesterdão.

5-ANTT, inq. Lisboa, pº 1770, de Diogo Henriques.

António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães

Sem comentários:

Enviar um comentário