quinta-feira, 19 de julho de 2018

“A Música e os Dias; Instrumentos Populares Portugueses”

Apresentação
A coleção dos instrumentos musicais populares resultou da recolha sistemática, promovida pela Fundação Calouste Gulbenkian, sob proposta de Jorge Dias, conduzida no terreno por Ernesto Veiga de Oliveira e Benjamim Pereira entre os anos de 1960 e 1965, altura em que o museu estava a ser pensado e nasceria. O levantamento foi iniciado com base num questionário enviado a professores primários, párocos e interlocutores já conhecidos pelos membros da equipa do Centro de Estudos de Etnologia, mas foi sobretudo no contacto directo que ele se concretizou. Aliava-se à aquisição dos instrumentos localmente em uso, a preocupação de perceber as condições e situações da sua utilização, ajudando  a pensar o país na sua diversidade. Descobriram-se  músicos de relevo que se tornaram igualmente protagonistas dessa aventura. 
O sistema de classificação dos instrumentos, a sua inscrição nos tempos do calendário, a sua distribuição no país, são os principais eixos do livro de Ernesto Veiga de Oliveira, Instrumentos Musicais Populares Portugueses, publicado em 1966, e que logo se tornou na obra de referência não apenas para o conhecimento deste universo em Portugal, mas também nos estudos comparados em contexto europeu. As re-edições de 1982 e 2000, são a expressão do interesse e procura que despoletou, sendo a última um momento de grande alcance simbólico, pois com ela se celebrou a oferta ao Museu Nacional de Etnologia da coleção propriedade da Fundação Calouste Gulbenkian que aqui se encontrava em depósito. Nesta última edição, Benjamim Pereira conta a história desses anos de caminhadas pelo país, dos encontros com tocadores e comissões de festas e todos aqueles que foram interlocutores desse significativo percurso na produção de um conhecimento etnológico e de revelação do que somos. O que de mais importante se possa dizer sobre os instrumentos musicais é nesse livro que se encontra.

A Música e o Calendário
A música e, de forma mais geral, as sonoridades, participam da construção do tempo e do modo como nele nos inscrevemos e apoiamos memórias e afectos. Os instrumentos, os sons que produzem, as gestualidades que lhes estão associadas, os contextos performativos onde se manifestam, as sociabilidades que entretecem e ligam indivíduos e grupos, são parte da matéria mais densa e expressiva na construção dos colectivos. Certos instrumentos só se ouvem em determinados períodos ou dias do ano. São marcadores do tempo, das cadências e ritmos do calendário. Muitos deles preenchem ritualidade do Inverno. São quase todos idiofones. É o maior número dos que aqui mostramos. Outros emergem noutras circunstâncias ou estações do ano.
Do complexo festivo dos Impérios do Espirito Santo, os instrumentos das folias, como o tambor, o pandeiro e os testos, revelam também essa associação exclusiva. É então que se ouvem e nos ouvimos neles. Instrumentos como a flauta e o tamboril, vieram a ter na raia do Alentejo uma evidente expressão cerimonial pela sua relação com determinada festa: a Festa. Também existem casos de absoluta singularidade como a genebres que se toca na Lousa, arrastando a asa às raparigas na Festa da Senhora dos Altos Céus.
Mais aberto de possibilidades pelo seu uso em rusgas e festarolas, o reque-reque foi o instrumento dos rapazes na ida às sortes, fabricando, assim,  em simultâneo, os tempos do calendário e o tempo da vida de cada um.

Sonoridades do Inverno
No calendário de uma sociedade marcadamente rural, como foi este país até há poucas décadas, o Inverno é um tempo longo, expectante, com a comunidade voltada para si mesma e com traços de inquietação e ansiedade que se manifestam em gestualidades, linguagens, práticas rituais, que se prolongam por metade do ano, entre os primeiros magustos e a véspera da Páscoa. As máscaras, o riso, as transgressões, a presença e a relação cuidada com os mortos, trazem sonoridades que participam de uma intensa e expressiva morfologia de práticas. O universo sonoro do Inverno traz os sons cavos, agrestes, caóticos, as cacofonias, as vozes que se transformam em linguagens que exploram o risível e o grotesco e musicalidades cuja estranheza as devolve aos contornos incertos dos quotidianos.
Além do som que produzem, os instrumentos podem adquirir nomes que os devolvem a uma animalidade de que parecem reproduzir as vozes: a zorra é a raposa que regogueia, cuja voz os mascarados do inverno em Trás-os-Montes imitam, nos modulados e estridentes hi-gu-gus com que assustam, celebram e instauram a ritualidade de Natais e Carnavais. Quando a linguagem dos sinos é interdita na Semana Santa, as pancadas soturnas das matracas abrem um hiato no tempo cadenciado pelos sinais sonoros do templo, agora preenchido com sonoridades que encenam a dramaturgia cíclica da dor. Fricções, batimentos, rugidos, são matéria sonora deste período do ano que reúne além disso, chocalhos e guizos dos animais e os próprios instrumentos agrícolas usados como fonte de som: a gadanha batida com uma pedra ou um ferro, por exemplo. Por todo o país alguns dias são ainda particularmente marcados, como os dias gordos do Entrudo, a Serração da Velha, ou mesmo alguns momentos da liturgia no interior das igrejas. Por isso encontram-se aqui juntos sarroncas, matracas, zaclitraques, relas, e outros podiam estar como, os chocalhos ou os funis dos casamentos paródicos e nocturnos.

Os Intrumentos Musicais (alguns exemplos)

Do Inverno


Festas do Espírito Santo

Ida às Sortes


Ocorrências Singulares


Museu Nacional de Etnologia

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