sexta-feira, 6 de julho de 2018

A pecuária em Bragança no século XIX

Foto: Paulo Ricca
Em 1852, procedeu-se a um primeiro recenseamento do gado do Continente. Por ele se verifica, quanto ao gado bovino, a sua pulverização no País, não registando o Concelho de Bragança qualquer particularidade de relevo. Mas o mesmo não podemos dizer quanto ao gado ovino, uma vez que o Município de Bragança detinha o maior número das cabeças deste gado no Norte de Portugal (o gado ovino do Concelho de Bragança integrava-se no ovino galego), a revelar igualmente a importância da sua produção de lã.
Quanto a suínos e gado caprino, Bragança mantinha-se na média de numerosos concelhos, mas no domínio dos gados cavalares, muares e asininos, volta a registar efetivos consideráveis, sobretudo quanto aos asininos.
Entre 1856 e 1870, verificamos uma certa discrepância quanto aos valores apresentados, parecendo, contudo, fazer sentido quanto ao gado cavalar, asinino, vacum, lanígero e suíno. Os efetivos pecuários significativos, no Concelho de Bragança, diziam respeito, principalmente, ao gado lanígero, bovino e suíno (Quadro n.º 36).


Em 1870 procedeu-se a novo recenseamento geral de gado em Portugal. Durante a operação de recenseamento houve povos onde as comissões encarregadas do mesmo “tiveram de fugir às ameaças de populaça que se concitava com rebates nas torres das freguesias”, assim como houve outros que mataram todo o gado suíno, a fim de iludirem o arrolamento, “julgando-se “em véspera de uma violenta espoliação”.
Segundo o apuramento de 1870, existiam no Concelho de Bragança 62 875 cabeças de gado de todas as espécies, na importância total de 261 020$100 réis, sendo o mais importante, sem contes-tação, o gado bovino, cujo valor médio por cabeça era de 25$000 réis (Quadros n.ºs 37 e 38).


Das 1 214 vacas, pouco ou nenhum leite se aproveitava. As vacas eram pouco leiteiras, sujeitas a trabalho constante. Na sua maioria eram produção da terra, conhecida por bragancesa, filha do cruzamento de gado galego e mirandês, regulando o seu valor médio por 25$000 réis.
O gado bragancês era “um tanto mais encorpado que o mirandês genuíno, tendo a cabeça mais grossa, mais curta, de nuca menos larga e convexa e menos poupa, mais larga de chapa, e um tanto convexa na cana nasal, chifres não tão descaídos na origem, mas mais grossos e com a mesma projeção. Cor pelo geral castanho bem retinto. Tinha bastante semelhança com o boi espanhol leonês.” Mais tarde, Joaquim Ferreira irá referir que, na sequência da extinção do tratado do comércio livre de gados com a Espanha, em 1913, de que resultou deixar de entrar em Trás-os-Montes o gado leonês, a sub-raça bovina bragancesa, pertencente ou derivada do gado espanhol, começou a aproximar-se do genuíno mirandês, uma vez que este passou a substituir o gado vindo do país vizinho. Os quatro touros empregues na cobrição das vacas constituíam produção da terra. As vacas, no geral, eram cobertas por bezerros de ano ou pouco mais, sendo, após este serviço, castrados e submetidos ao jugo.
O regime de alimentação seguido era misto. De dia, quando o serviço o permitia, este gado era conduzido ao campo, e ali permanecia até à noite, sendo depois recolhido aos currais, onde se lhe dava algum feno ou palha.
No tempo calmoso, mantinha-se nas pastagens. A engorda era desconhecida no Concelho de Bragança, nem tão pouco o gado se prestava a tal, por falta de aptidão.
A criação bovina cresceu significativamente no Concelho de Bragança, passando das 4 895 cabeças em 1870 para as 7 332 em 1925.
De gado asinino registava o Concelho 1 674 cabeças, sendo o valor médio de cada cabeça, apenas de 6$00 réis. Todo produzido na terra, constituía uma criação “desprezível”. De pequeno talhe, eram muito enfezados pelo excessivo trabalho a que andavam sujeitos, pelos maus tratos que recebiam e pela deficiência de alimentação.
Era o animal do pobre, e quando muito da pequena lavoura, que se compadecia mais com este gado, pouco exigente e sofredor. Não se procurava melhorar esta produção, nem se fazia escolha alguma dos reprodutores.

Carro de bois tradicional de Bragança

A segunda riqueza do Concelho era o gado lanígero. As 38 694 cabeças compunham-se de 2 584 carneiros brancos e 13 549 pretos, tanto uns como outros no valor médio de 1$095 réis; de 2 263 ovelhas brancas e 14 055 pretas a 845 réis, e de 1 021 crias brancas, e de 5 222 pretas no valor médio de 470 réis a cabeça.
Os ovinos, na última década do século XIX eram, depois dos suínos, a “espécie “pecuária mais importante da região”, pelo seu número, valor e utilidade que deles tiravam os seus possuidores, pobres e ricos. Tanto valia o gado preto como o gado branco, iguais em corpulência e qualidade, e se a lã branca contabilizava mais 200 réis em arroba na exportação, a preta tinha mais valor para o consumo local, pelo facto de geralmente não ser necessário tingi-la para o fabrico dos buréis com que se vestiam as populações rurais. Este gado costumava produzir 9 854 quilos de lã branca e 54 954 quilos de lã preta. O valor desta lã, vendida a 100 réis o quilo, apenas atingia os 6 480$800 réis. Esta produção, a não ser nas imediações de Bragança, era das mais pequenas do Distrito.
Como a de todo o gado conhecido por “serrano”, a lã obtida era curta e grosseira. Para o talho não tinha grande aptidão, por ser de pouca corpulência e com pouca carne.
O gado lanígero, em partilha com o caprino, quer de verão quer de inverno, aproveitava os imensos terrenos incultos do Concelho, as terras de pousio, os restolhais e só algumas vezes os lameiros depois de bem tosados pelo gado grande, mas ordinariamente só a estes ia na época da criação. Vivia todo o ano ao ar livre, estrumando os campos de noite, em canceladas, e só era recolhido nos invernos rigorosos, ou mais geralmente, quando as neves lhe tolhiam o passo e lhe escondiam o magro alimento. Então, o seu sustento consistia apenas em alguns ramos secos de choupo e freixo. Quando saíam da quadra invernosa encontravam-se de tal maneira fracos que só depois de bem entrada a primavera é que estavam prontos para o consumo.
De criação generalizada, o número de rebanhos com mais de 100 cabeças era raro.
Havia uma importante exportação de carneiros para a Espanha, onde iam engordar com destino para os talhos de Madrid. O Concelho não importava gado lanar. Também se exportava a lã que sobrava do consumo local para outras regiões do País. Ao contrário do que aconteceu na maior parte da Terra Fria do Nordeste Trasmontano, Vergílio Taborda refere que, entre 1870 e 1930, o gado lanígero cresceu no Município bragançano – se bem que Paul Descamps refira justamente o contrário.
Todo o gado caprino de Bragança (8 074 cabeças) era produção da terra e de pouca importância, tanto pelo seu talhe, ordinário, como pela pouca fecundidade e lactação. O leite consumia-se em espécie, sobretudo na Cidade de Bragança, ou em queijos pequenos de nenhuma importância industrial. Não havia exportação nem importação deste gado. O único negócio que se fazia era tão-somente de peles de cabrito, que a Espanha importava para o fabrico de luvas.
O estado desta produção ia declinando. Por um lado, as posturas municipais restringiam a área do seu apascoamento; por outro lado, o lavrador, em vez de o manter numa meia estabulação, desfazia-se dele, porque entendia que a cabra não podia existir sem andar pelos campos a destruir todas as culturas. Apenas irá manter importância na região montanhosa do Concelho.
Segundo os mapas de apuramento, continha o Município de Bragança 8 776 cabeças de gado suíno, na importância de 63 388$940 réis. O valor médio por cabeça atingia 7$200 réis. Existia apenas uma raça de suíno no Concelho, o porco grande varudo e pernalteiro do norte, de moroso crescimento e de difícil ceva.
O regímen de alimentação a que estava submetido o gado suíno era misto: de dia apascentava-se em vezeira, sendo de noite recolhido aos cortelhos, onde aproveitava os sobejos das cozinhas, de mistura com couves, batatas, abóboras, farelos e frutas verdes. Só depois que entravam em ceva é que os porcos tinham uma espécie de estabulação, porque o seu estado não lhe facilitava o movimento. A ceva era feita no princípio de outubro, novembro e dezembro, à custa, sobretudo, de batatas e castanhas.
Pelo seu moroso crescimento e fraca aptidão “cevatriz”, o porco desta raça tornava muito dispendiosa a sua criação, e se alguma importância económica tinha era por nele se capitalizarem os sobejos da economia doméstica, que, não aproveitados assim, não dariam utilidade alguma.
Em finais do século XIX, a importância da pecuária no Concelho de Bragança, como na Terra Fria, continuava a ser a base de toda a economia rural da região, uma vez que tanto a sericicultura como a vinha tinham desparecido e a cultura dos cereais era pouco rentável. Em 1890, o Boletim da Direção Geral da Agricultura referia que os produtos da indústria pecuária davam lugar a “um vasto comércio”. As feiras e mercados eram numerosos, os preços remuneradores e em todos eles se realizavam importantes transações.
Sendo o consumo de carnes, a não ser a de porco, insignificante, a pecuária alimentava um importante comércio de exportação: vendiam-se para Espanha muitos carneiros e alguns muares, e para as províncias do Minho, Douro e Beira muito gado bovino e “não poucos muares, asininos, suínos e bastantes ovinos”. A exportação para Espanha de gado muar e lanígero, que tão importante tinha sido nas décadas anteriores, encontrava-se então em franca diminuição. De Espanha continuava a ser muito importante a quantidade de gado bovino que entrava pela raia, sendo a maior parte gado de talho.
A indústria pecuária continuava a ter uma importância capital na economia da região, sendo com os lucros da sua produção e comércio que os agricultores resolviam os seus encargos e as numerosas despesas de exploração.
Em Bragança, constituía um importante auxílio para as famílias pobres que se dedicavam à criação e engorda de suínos. Nesta Cidade, calculava-se que, por 1890, eram abatidos pelos negociantes de carne fresca 500 porcos, “valendo cada um em média 6 libras ou todos 13 500$000 réis”, sendo que esta verba ficava quase toda “nas mãos de gente com poucos recursos”, representando “uma independência contra a miséria, se não uma felicidade”.
A raça predominante de suínos no Concelho de Bragança era o bísaro Yorkshire, cruzamento desenvolvido pela extinta Quinta Distrital de Bragança com excelentes resultados.
As famílias pobres dividiam o caldo com o porco quando não tinham que lhe dar, e as mulheres, quando ele “voltava de espairecer, dando um passeio pela povoação”, repeliam os filhos e acariciavam o porco que se lhes deitava aos pés.
Em conclusão, entre 1820 e a Primeira Guerra Mundial, o desenvolvimento da agricultura e da pecuária no Município de Bragança, como nos concelhos da Terra Fria do Nordeste Trasmontano, passou pelos seguintes aspetos:
• difusão da batata, que acabou por constituir, na viragem do século XIX para o século XX, um dos poucos produtos de exportação que não parou de aumentar no século XX;
• arroteamento e emparcelamento de novos terrenos, graças à diminuição dos baldios, cujo aforamento e venda se iniciou já em finais do século XVIII, mas que ganhou novo fôlego com a lei de 27 de junho de 1864, a qual isentava de pagamento quaisquer impostos quanto ao aproveitamento dos mesmos;
• expansão contínua da vinha e da oliveira, travada pela filoxera na década de 1880, mas reatada posteriormente;
• redução progressiva da cultura do linho, cujos terrenos vão dar lugar a batatais e a hortas, as quais permitiram a difusão de produtos hortícolas como o feijão, ervilha, cebola, alface, tomate e pimento a partir de finais do século XIX;
• tardia aquisição de máquinas agrícolas, como a malhadeira, sobretudo após a Primeira Guerra Mundial;
• tratamento das doenças da batata com solutos adequados, a partir de finais do século XIX;
• desenvolvimento da rede de comunicações e transportes em finais do século XIX, o que permitiu mais facilmente comercializar os produtos;
• introdução tímida dos adubos químicos, já publicitados em Bragança na viragem do século XIX para o XX, mas que só se irá difundir a partir da Segunda Guerra Mundial, o que permitiu expandir as terras de sequeiro cultivadas;
• significativo aumento da criação bovina e suína, acompanhada do apuramento das raças através da escolha cuidada dos reprodutores.
Contudo, para um melhor entendimento da evolução do quadro agrícola tradicional do Concelho de Bragança, importa enfatizar que o século XIX termina em crise (a qual, aliás, foi comum a todo o Distrito), devido ao afundamento da produção do casulo da seda e sobretudo do vinho, uma vez que Bragança era um dos mais importantes concelhos produtores vinícolas do Nordeste Trasmontano.



O Boletim de Direção Geral de Agricultura, em 1889, transcrevendo o relatório da Segunda Região Agronómica, que correspondia à Terra Fria, da província de Trás-os-Montes, resumia a situação que então se vivia nos seguintes termos: desgraçada gente e desgraçada região!
Com efeito, uma série de factos tinha mergulhado a região numa “crise extraordinária” devido ao inteiro aniquilamento da cultura do sirgo, à baixa considerável do preço do azeite, à depreciação do preço dos gados, “e por último, como se esta série de desastres não fosse por si já de incalculáveis consequências, veio ainda a quase e total destruição da viticultura”, a qual deu um “golpe fatal para a decadência e miséria da região”. Esta crise não afetou só a “classe jornaleira, outrossim envolveu todas as classes”. “Famílias inteiras, sem abrigo e a braços com a miséria extrema”, emigraram.
O preço dos gados vai recuperar nos anos seguintes. Mas a replantação dos vinhedos, que irá ser feita a partir de 1898-1899 em diante, não atingirá “todos os lugares onde outrora a vinha prosperara”.

Título: Bragança na Época Contemporânea (1820-2012)
Edição: Câmara Municipal de Bragança
Investigação: CEPESE – Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade
Coordenação: Fernando de Sousa

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