quinta-feira, 12 de julho de 2018

Ferrovia Autárquica Transmontana

Desde 2006, quando fundei o Movimento Cívico pela Linha do Tua, que aprendi imenso sobre como um autarca trasmontano gere matérias do foro ferroviário. Fosse através do MCLT, ou em nome individual, testemunhei um pouco de tudo, entre o bom e o execrável. 

Neste percurso cheguei a elaborar projectos de investimento para as Linhas do Corgo, Tua e Sabor, tendo o desta última sido publicado no livro de 2015 “A Linha do Vale do Sabor”, da editora Lema d’Origem. Todos eles foram apresentados e discutidos em debates públicos e em algumas autarquias, da Régua a Bragança e Moncorvo. Ademais, tive o privilégio de ter sido convidado pela associação RIONOR em 2017 para apresentar propostas para a ferrovia transmontana, as quais ficaram compiladas num caderno de interesses endereçado aos governantes deste território. 

Há contudo uma face mais feia na relação entre um autarca trasmontano e a ferrovia: a do dizer uma coisa agora, e afirmar o contrário depois. Hernâni Dias tem defendido, e disso fez fé numa sessão da RIONOR em Bragança, que a ferrovia não faz parte do futuro na região, nem numa ligação interna nem externa, pois se por um lado avançou na transformação da Linha do Tua numa gargantuesca ecopista de 76 km, por outro é apenas por estrada que vê uma ligação entre Bragança e a Alta Velocidade na Sanábria. Na outra ponta, foi a vez de Júlia Rodrigues proporcionar mais uma reunião absolutamente inócua a respeito da Linha do Tua, num concelho onde existe um plano de mobilidade imóvel há uma década, e que alinha na mesma inusitada ecopista.

Foi por isso com muito espanto que vi recentemente que Hernâni Dias afinal defende ser “fundamental” a passagem de uma via-férrea pela região, seja pela construção de uma nova via ou pela reabilitação de uma existente, no âmbito da discussão sobre o Plano de Investimentos 2030, e que Júlia Rodrigues, à margem de uma resolução da Comunidade Intermunicipal das Terras de Trás-os-Montes – entidade para a qual tão veementemente me encaminhou, e da qual recebi apenas silêncio sobre esta matéria – subscreve a construção de uma via que ligue o Porto a Zamora.

Daqui se podem tirar várias ilações, sendo a primeira e mais óbvia a de que é totalmente incongruente defender-se ao mesmo tempo uma ecopista na Linha do Tua e a sua reabertura à exploração ferroviária. Até mesmo o ditado “sol na eira e chuva no nabal” preconiza duas situações diferentes em dois locais diferentes, não no mesmo. Depois, é diferente defender-se um investimento na reabertura da Linha do Douro a Salamanca, ou na reabertura da Linha do Tua e prolongamento à Sanábria, ou na construção do secular projecto ferroviário da “Transversal Transmontana”, ou até mesmo da reabertura da Linha do Sabor e prolongamento directo a Zamora. Afinal de qual destas quatro hipóteses estamos a falar? Ou de nenhuma, e o que importa é que surja investimento, seja ele qual for – e a que custo for?

Agora que foi o próprio Governo a dar o exemplo, abrindo à discussão pública uma matéria tão decisiva quanto o plano de investimentos estruturantes para o país nos próximos anos, gostaria de ver o mesmo gesto a partir destas autarquias. É que, dar-se ao luxo de ignorar um conterrâneo, com conhecimento técnico em gestão, ferrovia e turismo, que lhes faz chegar a custo zero estudos e propostas para a melhoria de acessibilidades e mobilidade, num território incapaz de parar a sangria de habitantes e capitais, é deixar-se ficar, literalmente, a ver o comboio a passar. Não é crime, aos olhos da Lei; mas aos olhos dos munícipes, isso justifica-se de que forma?

Seja numa aposta arrojada, como seria divergir da Linha do Douro algures no Tâmega e acompanhar a A4 até Bragança e Sanábria; seja reabrir a Linha do Tua, construindo o famoso traçado em zigue-zague do Tua à barragem e um novo canal até à Brunheda, unilateralmente recusado pela EDP, e reabrindo com correcção de traçado de Carvalhais a Bragança, e daí à Sanábria; seja reabrir a Linha do Sabor e prolongá-la até Miranda e Zamora, ao longo do vale do Douro; seja reabrir a Linha do Douro do Pocinho a Boadilla. As hipóteses até são variadas e para todos os gostos. Lanço – mais uma vez – o desafio às autarquias locais: convidem a sociedade civil local, com conhecimentos técnicos, para a elaboração de um estudo profundo sobre a reconstrução da nossa aniquilada ferrovia. Façam o favor de unir os transmontanos à volta de um desígnio comum e transparente; poderão ficar surpreendidos com o resultado.



Daniel Conde
in:noticiasdonordeste.pt

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